Afinal quem é que «abana a cauda»?
Vladimir Putin dizia recentemente que os europeus «vão acabar por abanar a cauda a Trump». Elegantíssima expressão. Não admira, vinda de onde vem.
Afinal, por estes dias, parece ser Donald Trump quem «abana a cauda» ao ditador russo, de tal modo que nem hesita em adoptar quase ponto por ponto o argumentário do Kremlin para denegrir Volodímir Zelenski.
Tanto em declarações feitas anteontem como num alucinado pedaço de prosa ontem divulgado na sua rede digital, o novo-velho inquilino da Casa Branca dispara um chorrilho de insultos ao Chefe do Estado ucraniano que em nada diferem das habituais invectivas de Moscovo - incluindo "comediante sem sucesso" e "ditador", entre outras expressões próprias de um inimigo, não de um aliado.
Garante que ele só tem hoje «4% de aprovação» entre os ucranianos. Chega a culpá-lo de iniciar a guerra, numa inversão total dos factos. Como se o bombardeamento de Pearl Harbor em Dezembro de 1941 tivesse sido feito pela aviação norte-americana em vez do Japão. E acusa-o de suspender eleições na Ucrânia, que se encontra desde Fevereiro de 2022 sob lei marcial em resposta à agressão russa, o que inviabiliza qualquer processo eleitoral - como aliás aconteceu no Reino Unido, sob a liderança de Winston Churchill, entre 1940 e 1945. Além de que a própria Constituição da Ucrânia interdita a realização de eleições com o país em estado de guerra, o que não causa qualquer surpresa.
Sobre a manifesta falta de democracia na Rússia, nem uma palavra. Sobre o facto de Putin - ele sim - ser um tirano, nem um sussurro.
Esticou-se de tal maneira que forçou Boris Johnson a sair em defesa de Zelenski, também numa plataforma digital.
O antigo primeiro-ministro conservador britânico, sem papas na língua, desmonta as falácias de Trump, repondo a verdade. Foi obviamente Moscovo a iniciar a guerra, é impossível um país sob invasão estrangeira organizar eleições presidenciais, a quota de popularidade de Zelenski equivale à de Trump.
As falsas alegações do norte-americano forçaram o seu antigo vice-presidente, Mike Pence, a sair igualmente em socorro da verdade: «Senhor Presidente, a Ucrânia não iniciou esta guerra. A Rússia lançou uma invasão brutal e não provocada, ceifando centenas de milhares de vidas. O Caminho para a Paz deve ser construído sobre a Verdade.»
Na mesma linha se pronunciou John Bolton, que foi conselheiro nacional de segurança no primeiro mandato de Trump: «Caracterizar assim Zelenski e a Ucrânia é uma das observações mais vergonhosas alguma vez feitas por um Presidente dos EUA. O nosso apoio à Ucrânia nunca foi uma questão de caridade, pois a maneira como vivemos em casa depende da nossa força no exterior.»
Esforços louváveis, mas inglórios. Não é segredo que o antecessor/sucessor de Joe Biden é imune ao rigor factual. Só lhe interessa a matéria ficcional que vai compondo como narrativa para mobilizar os mais fanáticos - incluindo os que moram deste lado do Atlântico.
Lá no seu búnquer de Moscovo, Putin tem amplos motivos para sorrir. Já conseguiu que o putativo "homem mais poderoso do mundo" se portasse perante ele como um potro amestrado. E ainda só decorreu um mês: esperem pelo que aí vem.
ADENDA 1: Por imposição dos EUA, a expressão "agressão russa" não deve constar do comunicado conjunto do G7 que assinala o terceiro aniversário da invasão da Ucrânia.
ADENDA 2: Washington recusa apoiar resolução da ONU de condenação da guerra desencadeada por Moscovo em 2022 no país vizinho.