Admirável prosa panfletária
Portugal Contemporâneo é um monumento, equivalente naquilo que hoje se convencionou chamar escrita de “não-ficção” a esse ponto cimeiro do romance intitulado Os Maias. Não por acaso, Joaquim Pedro Oliveira Martins e Eça de Queiroz eram amigos, companheiros de geração e de múltiplas tertúlias (sob o lema Vencidos da Vida), além de cúmplices no essencial das ideias – a primeira das quais era a urgente reforma das mentalidades portuguesas, o que no entender de ambos deveria ser precedido de uma profunda alteração das instituições políticas. Sob pena de o atraso estrutural do País se tornar irrecuperável, fragilizando a própria independência nacional.
«Há ou não recursos bastantes, intelectuais, morais, sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo, dentro das estreitas fronteiras portuguesas?», interroga-se o autor em prefácio à terceira edição, redigido em Abril de 1894, quatro meses antes da sua morte prematura, aos 49 anos.
Oliveira Martins, que chegou a abraçar teses iberistas, temia que a resposta fosse negativa. Por isso este seu copioso livro, com mais de 600 páginas, assenta na procura incessante das causas da decadência deste povo peninsular, parafraseando a consagrada expressão de Antero de Quental, outro “vencido da vida”.
O “Portugal Contemporâneo” a que alude o título – com edição original de 1881, em dois volumes – estende-se da morte de D. João VI, em 1826, à revolta da Janeirinha, que pôs fim ao período da Regeneração, em 1868.
O balanço do Portugal oitocentista, na óptica do autor, não podia ser mais negativo: o País vivera sob sucessivas ocupações estrangeiras, com duas décadas de soberania militar e política inglesa na sequência das invasões francesas, e atravessou quase todo o século sob o espectro da bancarrota. Situação muito agravada pela traumática independência do Brasil, em 1822, só reconhecida três anos depois por Lisboa, e pela dilacerante guerra dinástica que se estendeu de 1828 a 1834, fracturando o reino entre absolutistas e liberais.
Cáusticos parágrafos
A obra destila pessimismo. Sobre um tempo em que, segundo OIiveira Martins, o «antigo comunismo monástico», varrido com a deposição e o banimento perpétuo de D. Miguel, dera lugar ao «comunismo burocrático» das décadas liberais.
Nesta sucessão de episódios trágicos ou burlescos, com uma peculiar liberdade de interpretação dos factos e um extraordinário poder descritivo, perpassa uma galeria de personagens sujeitas aos cáusticos parágrafos do narrador. Quase ninguém escapa ileso: D. João VI legara-nos um «calamitoso reinado». A infanta D. Isabel Maria, sua filha que exerceu como regente, «era histérica e beata». D. Miguel revelou-se «bronco, violento, brutal». D. Pedro IV era encarado pelo povo como «traidor ao pai e à Nação, ladrão da coroa brasileira». Sá da Bandeira, «fraco e virtuoso». Saldanha teve uma «triste vida de guerrilheiro liberal». Salvam-se Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Alexandre Herculano – poucos mais. Em muitas páginas, cada adjectivo soa a punhalada.
Personalidade contraditória, Oliveira Martins oscilou entre a crença no socialismo utópico e a irreprimível nostalgia do País antigo, erguido em Aljubarrota e na Restauração. Chegou a abraçar o ideal republicano mas quase no fim da vida aceitou o convite do Rei D. Carlos para ministro da Fazenda, com as finanças nacionais novamente destroçadas. Sentindo-se traído pelo liberalismo – a seu ver um regime anárquico na economia e sem raízes nacionais – conclui em admirável prosa panfletária, coim laivos maniqueístas, que «a anarquia do reino reproduzia-se na anarquia dos partidos» e «Portugal e o seu governo eram um corpo inerte».
A Bookbuilders presta um serviço público ao relançar este marco da historiografia nacional, reunindo os dois tomos num volume, enriquecido com verbetes biográficos alusivos às figuras aqui retratadas. Nada mais útil, para apreendermos o País de hoje, do que mergulharmos nestas páginas corrosivas e vertiginosas, redigidas em prosa de qualidade intemporal.