Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Adeus

José Meireles Graça, 13.12.20

Ontem reuniu-se o Conselho Nacional do CDS e, soube-se ao fim do dia, o partido apoiará Marcelo nas próximas eleições presidenciais.

É um gravíssimo erro. Explico porquê:

O CDS chegou, por razões circunstanciais, tarde à distribuição de cargos no aparelho de Estado, incluindo autarquias, o que, num país clientelar como é o nosso (aliás crescentemente) explica, em conjunto com outras razões que não vou esmiuçar, a sua condição de parente pobre do poder democrático.

Durante muito tempo albergou toda a direita democrática. O PSD, que tem uma génese e uma história muito diferente, foi sempre um partido equívoco por em vários momentos ter encabeçado a reacção à estatização do país e aos sucessivos desastres da governação socialista, o que consolidou a ideia de se tratar de um partido de direita. Mas aprovou a Constituição, cripto-cubana na sua versão inicial, foi sempre ferozmente europeísta, ainda antes do estado de necessidade que tornou qualquer veleidade de condução dos destinos nacionais, em certos aspectos, uma quimera, e nunca pôs verdadeiramente em causa, salvo no consulado de Passos Coelho, a irreversibilidade da crença no papel central do Estado, que é o pano de fundo do inelutável deslizar do país para os últimos lugares do desenvolvimento. Servido embora de pessoal tecnicamente mais qualificado, e sem algumas das máculas que tornam o PS a mão negra que se abateu sobre o país, só por distorção de conceitos se pode considerar um partido de direita, ainda que tenha não poucos votantes e dirigentes que estariam igualmente bem, se não fosse o quererem atrelar-se a carros vencedores, no CDS.

Albergar toda a direita sempre quis dizer democratas-cristãos, liberais, nacionalistas e tutti quanti não fossem socialistas. Este era o cimento, e cada uma das capelas convivia com as outras com algum desconforto, vários próceres defendendo que o verdadeiro CDS era o da sua, e as outras equivocadas. Os sucessivos líderes, por sua vez, navegavam conforme podiam no meio das “sensibilidades” e tendiam a ter a autoridade que o seu perfil, e a percepção da aceitação pelo eleitorado, lhes permitia.

Este cimento abriu brechas com os novos partidos, um liberal e o outro troglodítico-oportunista (com perdão a muitos militantes que conheço, e que não cabem nessa qualificação). Nem um nem outro, porém, têm a curto-prazo mais aspiração (e se a tiverem estão a nanar) do que fazerem parte de uma futura solução encabeçada pelo PSD, no caso provável de o pavio do PS se extinguir.

Entram aqui os cálculos marcelófilos. Este é encarado como um facilitador de uma futura solução ao actual estado de coisas pantanoso.

Mal. Porque Marcelo não tem nem nunca teve nenhuma ideia para o país que fosse além da democracia, europeísmo e o resto da vulgata de ideias consensuais e pacíficas. Não tem estratégia, apenas táctica; não lidera a multidão, apenas quer saber para onde ela quer ir, para a encabeçar cavalgando num trote risonho e, com frequência, ridículo; diz todas  as verdades, se forem agradáveis; leu todos os livros, se tiverem sucesso; lisonjeia todas as costelas patrioteiras, se isso não implicar mais do que discursos de chacha e gestos vácuos; e, sobretudo, aprecia a estabilidade, que é invariavelmente a da sua permanência num poder fátuo com geral aprovação, sem jamais lhe ocorrer que ela só é útil ao serviço de políticas profícuas, que de toda a maneira não sabe quais são.

Pense-se o que se pensar sobre Costa (e eu devo ter escrito dispersamente um livro de dimensão média a execrar o homem), é inegável que é um sobrevivente, um mestre da propaganda e manipulação, e um escravo consistente de ideias deletérias, que são as da esquerda que sufoca o país. Pois Costa apoia Marcelo e os senhores 153 conselheiros do CDS acham que não sabe o que está a fazer – eles é que sabem e Costa, em devido tempo, descobrirá que enfiou um grande barrete.

Não enfiou. Porque Marcelo só não o recompensará se a relação de forças no país mudar e a opinião pública, e a comunicação social, deixarem de carregar o andor socialista.

Isso sucederá, dependendo do tempo que levarem os patrões europeus a quererem começar a puxar a brida da dívida. Mas, quando suceder, não é imaginável que o concurso de Marcelo, com os poderes limitadíssimos que tem, o seu característico conjunto de convicções de plasticina, que passa por habilidade florentina, e a sua obsessão com a popularidade, sejam verdadeiramente úteis.

De modo que vender a alma ao diabo, se é justificável em tempos de guerra ou perigos mortais, não o é agora; ajudar a ganhar uma batalha, que aliás já está ganha com ou sem CDS, não é a mesma coisa que ajudar a ganhar a guerra; uma futura coligação de direita far-se-á em torno de um menor denominador comum, mas os equívocos não ajudam; e o CDS que votou contra a Constituição ou tinha um candidato próprio para ser derrotado com honra ou não apoiava ninguém porque nenhum candidato merece o seu apoio.

É certo que noutra maré o CDS se coligou com o PS, com a habitual retórica do interesse nacional e pé-ré-pé-pé – durou sete meses. Nessa época não era filiado, agora sou.

Sou mas vou deixar de ser. Nunca ninguém me censurou por pensar pela minha cabeça e dizer sempre o que me parece, e não estou certo de que seja apenas a minha irrelevância que sempre me protegeu – também a cultura partidária, de há muito habituada a conviver com vozes dissonantes.

Mas. Mas. Marcelo pode vir a fazer parte de uma solução para o país, se não houver outro remédio, mas não é por ser apoiado agora que se ganham créditos seja para o que for; não quero ser associado a soluções pastosas e oportunistas; não tenho nem nunca tive problemas em conviver com gente mais ou menos liberal do que eu, mais europeísta do que eu, mais ou menos nacionalista do que eu, até mesmo com quem julga que o manual para governar o país é a encíclica Rerum Novarum. Mas com nevoeiros onde difusamente se percebe o apelo do poder sem princípios, cálculos sem consistência e ambições sem tino – não.

Regressarei quando o tempo clarear.

18 comentários

Comentar post