Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

A viagem do Lancia Dedra (4)

O regresso

Paulo Sousa, 19.09.24

Depois de nos despedirmos do nosso anfitrião parisiense, que até hoje por lá continua, ainda tínhamos uma tarefa a cumprir. Já bem a sul de Paris, tínhamos de parar em casa dos tios deles, que nos esperavam para um jantar. Daquele grupo de cinco jovens, o casal conhecia apenas o seu sobrinho. Os outros eram o filho deste ou daquele que se lembravam da mocidade lá na terra. Só quem conhece o emigrante português que emigrou na mesma época em que os tios destes nossos amigos o fizeram é que consegue imaginar o gosto com que tinham preparado a refeição. O primeiro dos cinco pratos que nos serviram veio a ser aquele de que se falou durante mais anos, ainda hoje nos salta à memória sempre que alguém usa a expressão que, mais adiante, divulgarei. Iguarias sem igual, saumon fumé a gasto, champignons criados num búnquer da Segunda Guerra, mais galinha da campanha, cerveja a fazer render para não dar mau aspecto e para não envergonhar o dispensa do tio, uns enormes coelhos de chocolate (lembro-me dos coelhos e por isso é provável que tenhamos ido na época da Páscoa) e ainda um melão para comer durante a viagem. É como se tivesse sido uma festa de casamento em formato compacto de duas horas. Saímos de lá mesmo bons para ir conduzir ou fazer companhia ao condutor.

Como dizia atrás, e para não seguir já para a fronteira de Espanha, a entrada do banquete era composta por uma travessa com ovos cozidos cortados ao meio, barrados com uma pasta de atum, uma verdura qualquer e ainda umas azeitonas sem caroço, cortadas às rodelas, a dar o toque final. Tudo arrumado com grande apuro e estética. A nossa simpaticíssima anfitriã, que ao longo da refeição foi sempre explicando a composição e a confecção de todos os pratos, começou logo por chamar à atenção para algo que nunca notaríamos. Faltava meio ovo para que estes estivessem em número par. Depois de “alguém” (o tio foi logo ali desmascarado) ter feito o que poderíamos designar por controlo de qualidade, ela ficou furibunda e tentou redistribuir os meios ovos de maneira a que aquela falha passasse despercebida. E redistribuiu-os impecavelmente, pois, como já disse, não fosse ela insistir na explicação do ocorrido e não estaria agora a escrever sobre isto. Incomodada com aquela falha no plano que imaginara, mal sabia ela onde é que tínhamos dormido nos últimos dias e onde é que o outro sobrinho estava a viver, e disse a frase: “Não são restos de ninguém!”. Imagino que não lhe terá soado bem, pois acrescentou “O (tio) provou ao almoço”. Hum… silêncio incómodo. “Mas, não são restos de ninguém!” “O (tio) provou só um bocadinho ao almoço”. Nesta parte, tenho ideia que entrou em loop e voltou a repetir a explicação. Não fosse o tio a dizer-lhe “Deixa lá isso, oh mulher! Serve mas é a comida!” e lá teríamos continuado ainda mais tempo, incomodados com o incómodo da senhora, tão empenhada em nos agradar. Desde então, como já disse, não posso ouvir a expressão “isto não são restos” sem logo me lembrar da viagem do Lancia Dedra.

De regresso à estrada, o último episódio digno de registo ocorreu na madrugada seguinte, já na entrada em Espanha. Dois polícias, perante tanta olheira, barbas por fazer e a nuvem de Gauloises que nunca largava o carro, ordenaram a toda a gente que saísse. Chamaram um colega com um cão, as bagagens foram todas retiradas do carro e o perro para ali andou, para a frente e para trás, a meter o focinho em todo o lado, até que nos mandaram seguir. Não sem que alguns largassem uns pinguinhos.

Dali em diante, parece que foi sempre a descer. Um de nós lá conseguiu convencer o condutor a ceder o lugar e provavelmente vim a dormir até Vilar Formoso, pois não me lembro dessa travessia de Espanha.

Nota final: Felizmente tudo isto ocorreu numa época em que o projecto de integração europeia ainda não estava suficientemente consolidado que permitisse que as multas parisienses fossem remetidas para as empresas de aluguer de automóveis nacionais, o que tornou a memória dos flashes disparados sobre nós no Périphérique ainda mais divertida.

6 comentários

Comentar post