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Delito de Opinião

A viagem do Lancia Dedra (2)

Na periferia de Paris

Paulo Sousa, 17.09.24

A navegação à volta de Paris era em si uma tarefa. Os GPS eram ficção científica e por isso socorremo-nos de um mapa emprestado dos 60 km à volta da capital francesa, que juntamente com uns binóculos comprados em Ceuta na candonga, permitiam ver as saídas das autoroutes com 300 ou 400 metros de antecedência e assim antecipar as decisões. Quando nos aproximávamos do que parecia ser a saída que procurávamos, reduzia-se a velocidade para evitar as argoladas. Se alguém que viesse atrás apitasse por causa da marcha lenta, saía logo o tradicional "passa mas é por cima ó cabrão", o que aconteceu várias vezes até que encontrássemos o bairro do nosso destino, onde chegámos ao escurecer.

Foi já com o carro estacionado que procurámos a rua que trazíamos escrita num papel e foi um português que nos acudiu na aproximação final. Quando chegámos à porta tão desejada, ninguém apareceu. No fuso horário dos nossos estômagos, era hora de jantar e ali estávamos nós, ainda a pensar no frango assado e na língua de vaca estufada. O nosso amigo não tinha número fixo e nós não tínhamos vagar para esperar que inventassem os telemóveis. Mais umas cigarradas e uns palavrões para entreter. Mademoiselles para descansar a vista, nem vê-las. Árabes era à fartura e a vizinhança no geral era pouco privilegiada. Ainda demorou umas horas até que vislumbrámos a silhueta do nosso compincha no fundo da rua.

- Já aqui estão, c...? Não era só amanhã? Estive a fazer uma horas, que tínhamos uma encomenda para acabar. Vamos a uma loja de conveniência que há ali ao fundo.

E foi nessa primeira loja que adquirimos os víveres para aquela noite e foi ali também que reparámos que, como um pack de cerveja tem apenas seis garrafas, de cada vez que se bebesse uma mini, desaparecia uma embalagem inteira.

Dali seguimos para o último piso onde nos íamos acomodar. O alojamento era algo sui generis. Com um corredor ao centro, o espaço, que afinal era apenas um sótão, tinha três portas de cada lado e com três fechaduras cada, o que, contando com a da rua, perfazia um total de dez chaves. Três divisões eram dele, nossas nesses dias, e nas restantes viviam alguns árabes, nunca cheguei a saber quantos. Da nossa, importa saber, uma era a cozinha, que tinha um fogão, uma mesa para um e um frigorifico que quando se abria a porta obrigava a desviar-se a cadeira; a outra era a toilette apetrechada com uma sanita turca, também conhecida por buraco no chão; por fim, o quarto, que tinha um colchão individual para o nosso anfitrião e chão de madeira para os demais. Se as bagagens ficassem na cozinha, cabíamos todos quase à vontade.

Enquanto se cozinhou a primeira galinha da campanha no forno, o sacana já falava assim, emigrês, eu fui o primeiro a ir tomar um banho. Há coisas que dizem que me acontecem mais do que a outras pessoas e não é que o único sabonete da casa me escorregou das mãos molhadas, dando uma enorme volta, percorrendo toda o minúsculo espaço, batendo várias vezes em todas as três paredes, e mais duas ou três vezes na porta, para só encontrar sossego depois de desaparecer, para todo o sempre, dentro do buraco do cagadouro? Azar do caraças. Pior do que tomar banho com água e shampoo foi ouvi-los o resto do serão, e da viagem, a falar no raio do sabonete.

O jantar foi farto. Baguete com queijo camembert, um frango a dividir por seis esfomeados e pobremente regado. A loja de conveniência tinha pouco stock e aquelas minis da 1664 mal chegavam para encher a cova de um dente. Como bem dizia Hemingway, Paris é uma festa.

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