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Delito de Opinião

A viagem do Lancia Dedra (1)

A ideia

Paulo Sousa, 16.09.24

Só fazendo uns telefonemas é que consigo confirmar uma data mais precisa, mas tudo isto ocorreu no início dos anos 90.

Um dos colegas de umas das bolhas das minhas amizades emigrou para França. Tinha nascido lá, filho da emigração dos anos 60, e depois de alguns anos de trabalho no início da vida adulta quis regressar à procura dos salários que a nossa economia não conseguia pagar. Por não ter querido regressar à pequena vila onde tinha nascido, e onde ainda tinha uns tios, o nosso jovem amigo escolheu ir para os arredores de Paris, onde aterrou no meio dos desenraizados das periferias.

À falta de telemóveis, que existindo para nós era como se ainda não tivessem sido inventados, do contacto quase diário passamos para um silêncio que era apenas interrompido por intermédio do seu irmão, que permaneceu dentro da nossa bolha, e que nos ia pondo a par das últimas novidades.

O grupo era dono de uma razoável criatividade, por vezes enviesada por uma malandragem na fronteira da decência. Hoje, os episódios mais escabrosos é como se nunca tivessem acontecido e não é nenhum desses que aqui irei abordar. Ciente da fama desta trupe, em casa havia quem me avisasse para ter cuidado com as más companhias, ao que eu, arguto, me justificava dizendo que eu é que era a boa companhia deles. Apesar de muitas derrotas e inúmeros votos vencidos, vezes houve em que isso terá acabado por acontecer.

A ideia surgiu quando o tampo da mesa do café ainda só ia a meio de copos de imperial vazios. Deviam ser por isso umas onze e pouco. Alguém tinha visto que o aluguer de um carro por uma semana, a respectiva gasolina e uma idas ao supermercado, tudo apertadinho e bem espremido, a dividir por cinco, o irmão dele incluído, talvez coubesse nos nossos orçamentos. A ideia foi aprovada por unanimidade e a data foi marcada.

O carro que nos saiu na rifa foi um respeitável Lancia Dedra 1.6 a gasolina com injecção electrónica. Um carro de ministro, como um de nós logo o classificou. E se não fosse de ministro, era no mínimo de gente séria, nunca um carro de bandidos. Talvez por isso, pelo potencial embuste, ficamos logo a adorar o veículo. Não fossem os avanços que o ponteiro do combustível levava sempre que íamos mais de 20 minutos acima dos 160 km/h (chegou-se a pensar que o depósito pudesse estar roto) e teria sido o melhor carro da nossa juventude. Mesmo carregado com cinco marmanjos e respectivas tralhas, em toda a EN1 e IP5, ninguém se atreveu a ultrapassar-nos.

À época isso nem era assunto, mas sendo o único que não fumava, só nas visitas aos baños, ou às toilettes (os nomes foram mudando ao longo da viagem), é que eu conseguia respirar ar propriamente dito. O meu alívio pulmonar era inversamente proporcional à folga de dinheiro que tínhamos para a viagem. O depósito do Dedra 1.6 i.e. era um prodígio da física e certamente que o modelo mereceu muitos encómios e saudades entre as monarquias do golfo pérsico.

A Espanha atravessou-se com o entusiasmo de quem vai para a festa. Ao romper da madrugada, passámos a fronteira de Hendaye e já estávamos em França. Desavisados, relaxamos no empenho necessário para vencer aqueles dois mil e tal quilómetros e as paragens tornaram-se mais frequentes e mais longas. O condutor já acusava a falta de descanso. Artista de primeira água ao volante que era, e continua a ser, impressionava-me a sua capacidade de conduzir dezenas de horas sem vacilar, nem baixar a guarda. Quando o último dos quatro passageiros adormecia, desatava a berrar palavrões e a distribuir belinhas. E lá se fazia mais uma paragem e se compravam mais umas tretas para enganar o estômago. A moral já arrastava os pés e os fumadores, com os últimos cigarros SGs incinerados em Espanha, já se tinham virado para os Gauloises. Aquele cheiro rijo do tabaco francês, mesmo com as portas fechadas, já se sentia na rua. Um dos poucos assuntos de conversa andava à volta de se tentar saber quem é que tinha tido aquela ideia de merda de ir para França a conduzir. O almoço em casa hoje ia ser frango assado, dizia um, língua de vaca estufada, respondia o outro. E o ambiente não melhorava.

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