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Delito de Opinião

A vaga anti-democrática europeia

Luís Naves, 13.09.18

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Confesso a minha perplexidade em relação ao que se passou no Parlamento Europeu, assunto a que o jpt faz referência aqui, e sobre o qual tenho lido textos verdadeiramente delirantes na imprensa portuguesa. Não imagino a lógica do voto do PCP, admito que seja a enunciada no post, mas julgo que isso é uma discussão muito cá da paróquia. Sou jornalista há trinta anos, fui repórter em três guerras e nunca assisti a tal dissonância entre realidade e percepção pública, como aconteceu neste caso do relatório Sargentini e da ameaça de suspensão de votos que paira sobre o governo húngaro. O relatório que os eurodeputados aprovaram é uma estranha mistura de mentiras, opiniões e histórias antigas, ultrapassadas após cedências já feitas pelo governo acusado. O relatório cria uma narrativa falseada da realidade e, tal como o PM húngaro disse nos sete minutos que lhe deram para falar, o resultado estava decidido à partida. A aprovação do documento teve mais a ver com a relação futura entre Alemanha e França, com as angústias do centro-direita antes das eleições europeias ou com a histeria federalista. Uma coisa é certa: um país de pequena dimensão foi punido de maneira exemplar, num sério aviso a todos os pequeninos que se atrevam a sair da linha justa. É um exemplo do que se pretende para a nova ordem europeia.

 

 

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O primeiro parágrafo do post do jpt é um exemplo claro da triunfante narrativa fantasista. O caso é apresentado como a «defesa da democracia húngara». Orbán é um «populista» e o «decano da extrema-direita no poder no interior da UE», sendo esta última uma frase enigmática que julgo querer dizer que o PM húngaro é de extrema-direita (algo estranho, pois existe na Hungria um partido da oposição que se afirma dessa tendência, o Jobbik). Na realidade, Viktor Orbán é um político liberal que, em 1989, ajudou a derrubar o muro de Berlim com um discurso histórico. O jovem atrevido não foi preso no final da intervenção e o governo comunista convenceu-se de que podia cortar impunemente o arame da cortina de ferro na fronteira com a Áustria, o que fez com coragem, desencadeando o fim do bloco socialista. Assim começou a carreira do actual líder húngaro, que atingiu o poder em duas ocasiões e dirigiu quatro governos. O seu partido ganhou as últimas dez eleições (europeias, legislativas, regionais); em 2010, 2014 e 2018 teve maioria qualificada, o que lhe permitiu redigir a nova Constituição, que sofreu emendas para ficar de acordo com as especificações da Comissão Europeia (o documento é uma coisinha curta, com 100 artigos e 50 páginas). O facto é que o partido no poder não perde eleições desde 2006 e tem sistematicamente mais votos do que todos os outros partidos juntos.

 

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Os jornais portugueses, sempre politicamente correctos, chamam-lhe «regime», mas o sistema político do país é simples: em 2010, foram derrotados os partidos pós-comunistas que durante a transição boicotaram com êxito todos os esforços dos liberais para democratizar as instituições (o mesmo vendaval aconteceu na Polónia em 2006). O Partido Socialista Húngaro, herdeiro do velho partido único (no dicionário do jpt seria o partido social-fascista) e o Partido Democrático (ligado à bancarrota de 2008) rondavam 17% das intenções de voto, mas hoje devem ter menos, pois votaram a favor do relatório Sargentini e o debate passou em directo nas televisões húngaras, para grande escândalo nas redes sociais. O maior partido da oposição é o Jobbik, formação radical que Marine Le Pen não quis no seu grupo de extrema-direita no parlamento europeu. Será este partido que os nossos democratas querem ver no poder em Budapeste ou preferem os socialistas que os húngaros rejeitam? É isto que não se entende, o que pretendem fazer? Vão tirar-lhes os fundos comunitários, apesar de terem lá seis mil empresas alemãs? forçá-los à rendição com a produção de relatórios falsos? ou enviam funcionários da troika para tomar conta do parlamento?

 

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É que os alegados factos são graves e, se fossem verdade, a Hungria devia ser expulsa da UE. O relatório que os eurodeputados aprovaram afirma que existe anti-semitismo, perseguição de ciganos, ausência de liberdade de imprensa e discriminação de minorias religiosas. É um filme de terror. Claro que a acusação sobre as minorias religiosas parece particularmente delirante, tendo em conta a história de conflitos naquela parte da Europa e o actual convívio pacífico de católicos, protestantes, ortodoxos e judeus (estarão a falar de quê, dos massacres do século XVII?). Em relação à liberdade de imprensa e de expressão, a acusação cai com a simples visita a uma banca de jornais de um supermercado: arrisco-me a dizer que pelo menos uma em cada duas publicações é anti-governamental (não estou a falar das vendas). Televisões de notícias? Há três, das quais duas são contra o governo. Talvez o relatório esteja a referir-se às abundantes revistas literárias, com muitos poemas sobre borboletas e poucos sobre o PM, ou à rádio pública, que tem demasiados programas culturais.

 

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Os nossos eurodeputados sabem muito bem que o Fidesz é um partido conservador e pró-europeu, que emana do movimento liberal de 1989; na altura foi membro do Fórum Democrático que venceu as eleições de 1990 e depois governou quatro anos em condições de grande hostilidade do aparelho pós-comunista do antigo regime, que permanecia vivo na magistratura, nas academias, nos jornais, exército e polícia. Entre 1994 e 1998, os socialistas fizeram as privatizações, que foram basicamente a transferência de bens públicos para indivíduos com informação privilegiada ou para empresas estrangeiras que pretendiam liquidar potenciais concorrentes. Fizeram-se grandes fortunas na polícia secreta. O Fidesz venceu em 1998, mas o seu programa foi sistematicamente boicotado pelos pós-comunistas, com ajuda de Bruxelas, que obteve assim uma boa derrota em 2002, após uma campanha em que houve ameaças veladas de atrasar a adesão comunitária, caso o Fidesz vencesse.

 

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a transição terminou em 2010, após oito anos de poder socialista incompetente e corrupto, com bancarrota. O Fidesz ganhou com maioria qualificada e interrompeu o programa do FMI, forçando bancos e rendas excessivas a pagar a factura da crise. Orbán será perseguido até ao túmulo por estas decisões imperdoáveis. Sei que isto é difícil de entender para um ocidental, o liberal é chamado iliberal e os ex-comunistas são defensores da liberdade, mas para um observador húngaro, a diabolização de Orbán pelos conservadores europeus é um enigma ainda maior. Há muitos liberais que não gostam do PM, mas não o interpretam como populista ou de extrema-direita, mas como conservador provinciano, que exagera na visão de um país cristão demasiado preso à nostalgia do passado mítico. Os resultados económicos, esses, são incontestáveis. Nos últimos 150 anos de História, o país enfrentou sempre um dilema: abrir-se ao exterior, com risco de diluir a identidade linguística e cultural; ou proteger a identidade, limitando a abertura ao exterior. No fundo, a escolha é entre ruptura e compromisso, revolução ou diluição, sendo que Orbán é o primeiro líder moderno a fazer o equilíbrio das duas opções aparentemente contraditórias. A geração mais jovem terá de resolver o problema e julgo que no próximo ciclo político a Hungria vai escolher diluição e compromisso.

 

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Pelo que expliquei, fico perplexo quando leio coisas insinuando que Orbán é um apaniguado de Putin, como diz a nossa estimada eurodeputada Ana Gomes (que não se incomoda nada de ter no seu grupo parlamentar deputados socialistas húngaros ligados ao passado totalitário da escola moscovita). A Hungria faz parte de uma continuidade (não linguística) do mundo germânico, da sua periferia política e económica, não tem nada a ver com a Rússia, e um homem ligado a Putin não seria eleito sequer para a associação de bombeiros. Quando leio coisas como «o iliberal Viktor Orbán», sinto um arrepio de espanto, pois esta observação resulta da visita a um universo paralelo: o observador não consegue ver o IRC de 9%, o sexto país do mundo em investimento externo, o flat tax, a legislação laboral, a concorrência, o pleno emprego, o crescimento de 4,5%. Iliberal? E que dizer da perseguição aos ciganos? Os politólogos sabem que os ciganos gostam de partidos conservadores e votam Fidesz, pois foi o partido que melhor os protegeu durante a transição. Anti-semitismo? Isso existe em Paris, Amesterdão e Berlim, não consta do relatório. Repressão da oposição? Houve em Bucareste, em Agosto deste ano da graça de 2018, durante uma manifestação pacífica contra o governo pós-comunista da Roménia (vieram os mineiros e espancaram toda a gente). Corrupção? Admito que sim, mas bem prega frei Tomás. Corrupção existe provavelmente na terrinha de Nagy Sziklás. Juízes amiguinhos? Essa história é para criancinhas! Na Hungria, em 2010, estavam ainda em função nos tribunais mais elevados juízes ligados à repressão do anterior regime e o governo antecipou-lhes a reforma, de 70 para 65 anos. Ninguém verteu uma lágrima.

 

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Há sobretudo uma coisa perigosa em certos comentadores, que é a facilidade com que descrevem aquela situação como fascismo ou um qualquer proto-nazismo. Era bom que estas pessoas percebessem que no fundo estão a dizer que o fascismo não era assim tão horrível. Ler o relatório Sargentini é penoso por causa da linguagem de pau, manifestamente desadequada para textos de ficção. Podia ter umas metáforas fofinhas, uns embelezamentos, uns sentimentalismos, mas o que se perdeu em literatura ganha-se em imaginação: é manifestamente falso que as eleições não sejam limpas, que os direitos das mulheres estejam diminuídos (comparado talvez com a violência doméstica e o homicídio de mulheres em Portugal), é falso que não haja liberdade de expressão ou liberdade religiosa e académica. E decidam-se lá, se há maus-tratos a migrantes ou se não há migrantes de todo. Estamos a ser bem enganados e é preocupante ver como foi fácil criar esta lenda e como será difícil sair dela. O que se passou ontem no Parlamento Europeu pode ter sido o «combate à vaga anti-democrática europeia», como afirma o jpt, mas pareceu-me muito mais um episódio bem triste da vaga anti-democrática europeia.

 

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