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Delito de Opinião

A tradição dos sermões

Luís Naves, 04.07.18

Liga-se a televisão e, se há um debate sobre política, surge inevitavelmente alguém a lamentar a ascensão do populismo na Europa ou a necessidade urgente de ter uma política humanista na questão dos refugiados. Portugal é um país que pouco tem a dizer sobre a crise migratória europeia, pois esteve fora dela, mas por aqui aprecia-se um bom sermão. Entre nós, a narrativa dominante descreve um mundo dividido entre o bem e o mal, e nós estamos do lado do bem. Nunca se refere que, segundo os tratados, as questões de asilo, fronteiras e imigração exigem unanimidade na UE, pelo que será improvável uma solução europeia, pelo menos enquanto não estiverem controladas as fronteiras externas. Geralmente, estes debates cheios de boas intenções são contaminados pela amálgama que os participantes fazem entre migrantes que procuram escapar à pobreza e os refugiados que fogem de perseguições. Mas será assim tão humanista deixar entrar todos os primeiros, sem que se possam livrar da miséria, a dormir em tendas debaixo de pontes, sem trabalho legal, sujeitos à violência de traficantes e condenados à exploração a que nunca escapam aqueles que não possuem direitos? Será assim tão humanista reduzi-los a habitantes de cidades de lama ou permitir que atravessem os Alpes para morrer na neve? E em relação aos segundos, os que fogem da guerra (cinco milhões de sírios na Turquia, Líbano e Jordânia) não se pode ir buscá-los em grande número directamente aos campos de refugiados? O outro debate enviesado diz respeito ao populismo, que nunca se define antes da conversa. Neste momento, a palavra equivale a um insulto, embora se aplique a protestos eleitorais inteiramente legítimos (por exemplo, em Itália) contra partidos tradicionais que governaram durante sete décadas e que, mais recentemente, falharam de forma estrondosa. Sendo o populismo uma rebelião contra as elites políticas, então temos de o encontrar em mais sítios, por exemplo, em França, onde Emmanuel Macron deu cabo do sistema partidário criando um movimento, En Marche, que tem as iniciais do seu nome, além das raízes no descontentamento popular. É aliás o mesmo Macron que agora sonha em estoirar com os equilíbrios tradicionais do Parlamento Europeu, através do triunfo de um novo bloco liberal e centrista que ainda não existe, mas talvez obtenha bons resultados contra os partidos do sistema, os tais que falharam e agora pagam a factura nas urnas. Aliás, segundo esta definição, nos países de Visegrado que segundo a doutrina são hoje autoritários, não há contestação de elites, mas da ordem pós-comunista que tomou como reféns as jovens instituições democráticas e controlou demasiados aspectos da transição entre 1990 e 2010. Na Polónia, a actual luta pelo poder é entre liberais urbanos da Plataforma Cívica e conservadores católicos e rurais da Lei e Justiça, ou seja, duas formações que remeteram o voto pós-comunista a pouco menos de 15% (mas nenhuma delas é populista no sentido que referi). Na Hungria, o centro no poder é dominado pelos conservadores (Fidesz) e a oposição pelo Jobbik, um partido de extrema-direita anti-cigano e anti-Europa, esse com evidente carácter populista; à esquerda, há dois partidos pós-comunistas, hoje remetidos a menos de 20%. Enfim, as críticas míopes à rebelião do Leste nada têm a ver com uma pretensa ascensão do autoritarismo, recuo da democracia ou avanço populista, pelo contrário, desprezam a vontade popular nestes países e, sobretudo, reflectem um conflito mais profundo sobre o futuro da União Europeia, do qual depende o equilíbrio que se fará entre a soberania dos pequenos Estados e o poder das potências dominantes. Portugal, endividado até ao osso, parece ser um mero observador nesse debate, mas fiel à sua longa tradição fradesca, prega lições de moral a toda a gente.

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