A televisão feita cinema
Ao longo dos anos tenho visto excelentes séries na televisão. Mas poucas tão boas como House of Cards, uma impressionante e quase hipnótica digressão pelos bastidores da política. Centrada na teia de interesses que se vai tecendo em torno da Casa Branca, e com naturais particularidades da vida pública norte-americana, mas com pistas de reflexão sobre o implacável exercício do poder que podem funcionar para qualquer tempo e qualquer lugar.
Ray Donovan
Com a viragem do século o cinema foi-se infantilizando e comercializando. Ganhou ainda maior dimensão industrial à medida que perdia fulgor criativo. Cada vez mais passou a privilegiar o embrulho pirotécnico, destinado ao consumo alucinante de pipocas. E a dimensão lúdica daquilo a que noutros tempos se chamava Sétima Arte deixou de ser um meio para se declarar um fim.
A crítica cinematográfica transformou-se num veículo de difusão publicitária, confundindo qualidade com receitas de bilheteira. E a forma de contar uma história com impacto visual, diálogos credíveis e sólida construção de personagens foi-se desvalorizando até à caricatura. O pensamento deu lugar ao divertimento acéfalo. E a mediania acabou promovida a patamares de excelência pela absoluta falta de critério dominante – como aliás ficou bem visível na recente distribuição de estatuetas douradas ocorrida em Hollywood.
Um Crime, Um Castigo (Engrenages, no original)
Felizmente a televisão tem caminhado em sentido contrário. Enquanto nas décadas anteriores os realizadores faziam o percurso dos plateaux televisivos para os estúdios cinematográficos como modo de progressão artística, hoje assistimos ao fenómeno inverso: as produtoras televisivas contam com o talento comprovado dos maiores cineastas - incluindo Steven Spielberg, Martin Scorsese e Woody Allen, para nos quedarmos só nos EUA.
A televisão tornou-se mais exigente, mais criteriosa, mais adulta. E foi lá que passámos a encontrar o melhor sucedâneo do bom cinema. Em séries americanas como Os Sopranos, 24, Mad Men, Segurança Nacional, Boss, Ray Donovan, Fargo, Wayward Pines, True Detective, The Affair, Odisseia, American Crime, Olive Kitteridge. Ou nas dinamarquesas Forbrydelsen, Bron, Arvingerne e Borgen. Ou nas francesas Os Influentes e Um Crime, um Castigo (esta agora em reposição na RTP 2: espreitem a quarta temporada, talvez a melhor de todas). Ou nas britânicas The Honourable Woman e The Fall, esta com Gillian Anderson no melhor papel da sua carreira.
The Fall
Serei o último a propor a definitiva troca da sala escura de cinema pela resignada mansidão do sofá. Mas confesso-me espectador assíduo e entusiasta de todas aquelas séries, já exibidas ou em exibição. E cada vez mais me rendo à escrita, às interpretações e aos enredos que irrompem da televisão. Já não apenas com o fito de nos distrair, mas com a intenção deliberada de nos fazer pensar.
E termino como comecei. A dar as boas-vindas ao maior aprendiz vivo de Maquiavel: o Presidente dos Estados Unidos da América, Francis J. Underwood – soberba criação de Kevin Spacey, que ultrapassou todos os seus memoráveis papéis no cinema, incluindo o Roger Kint d’Os Suspeitos do Costume e o Lester Burnham de Beleza Americana, que lhe valeram Óscares. Sem esquecer a bela, perversa e trágica Claire Underwood, tão bem interpretada por Robin Wright, belle toujours.
House of Cards
Estenda-se a passadeira vermelha à quarta temporada de House of Cards. Estreia logo à noite, a partir das 23 horas, no canal TV Séries. A televisão feita cinema. Cada vez mais arrebatadora, cada vez mais perturbante. Cada vez melhor.