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Delito de Opinião

A taxa chata - II

Paulo Sousa, 25.01.22

Por que valor estamos dispostos a trabalhar horas extra-ordinárias?

Coloco esta questão tendo em mente quanto custa ao país as horas gastas a conferir as facturas a que somos obrigados no preenchimento da declaração de IRS.

Como é obvio, o tempo gasto nesta tarefa deixa de ser tempo livre e passa a ser tempo despendido para evitar multas. Sem mudanças de trajectória governativa, não faltará muito até que isto seja considerado uma indireta forma de rendimento e naturalmente a AT estará atenta a isso, e a esfregar as mãos. A Autoridade Tributária (AT) terá forma de saber quantas horas duram as sessões abertas pelos contribuintes no seu portal, a partir daí poderíamos até estimar um custo desta obrigação fiscal mas isso nunca seria revelado.

Quando o estado nos acenou com o sorteio de um automóvel em troca do rasto digital das nossas compras, algumas vozes apontaram para o que de facto se estava a passar, mas com o deslizar do tempo, essa prática banalizou-se e poucos são os que hoje se recusam deixar que o seu número contribuinte seja associado aos seus mais pequenos consumos, permitindo assim que os seus hábitos de compra sejam rastreados. Os mapas SAF-t que mensalmente todos as empresas e estabelecimentos comerciais são obrigado a enviar à AT transportam consigo toda essa informação.

Ameaças à privacidade resultantes das novas tecnologias não faltam, já aqui postei sobre isso, mas perante o potencial pidesco do nosso sistema fiscal há uma questão que importa levantar: é o direito à privacidade um bem ou mal? Arrisco acrescentar que se é um bem, deve ser protegido e, pelo contrário se for um mal, deve ser corrigido ou eliminado.

Estamos seguros de que a existência destes registos nunca será usada para invadir a privacidade dos cidadãos? Podemos confiar que os contrapesos do sistema são suficientemente sólidos para protegerem o cidadão de um eventual uso abusivo desta informação? Faz sentido reforçar estas garantias, ou simplesmente deveríamos abdicar da produção de tais registos?

E tudo isto para chegar ao título do postal. A IL trouxe para a presente campanha eleitoral muitos dos temas que acabaram por ser os principais temas dos debates. Refiro-me às duas décadas de estagnação da nossa economia, à dimensão da nossa carga fiscal e à invasão das nossas vidas pelo estado.

Apontando para o que é feito noutros países que obtiveram muito melhores resultados que o nosso, sugeriram uma flat tax, palavrão anglo-saxónico que pode ser traduzido por taxa plana, mas que, comparando com a infinidade de parênteses, sub-parênteses e sub-sub-parênteses do nosso sistema fiscal, que deve ser traduzido por taxa chata. Para as mentes kafkianas que elaboram os mais refinados detalhes da jaula fiscal em que vivemos, simplificar os impostos iria tornar o nosso sistema fiscal numa coisa chata e aborrecida. Deixará de haver espaço para as mentes fuinhas que se sentem inflamadas sempre que têm a oportunidade de sacar de mais uma surpreendente alínea de que já ninguém se lembrava.

A flat tax proposta não pretende que todos paguem o mesmo imposto, pois a primeira faixa de rendimento, que poderia ter como referência um valor indexado ao SMN, estaria isenta. Daí em diante, quem mais ganhar mais paga, mas de forma proporcionalmente directa. Segundo o proposto, numa fase inicial existiriam duas taxas.

Para quem quiser comparar a situação actual com o que é proposto pela IL, pode espreitar aqui.

Importa sublinhar ainda um ponto importante, e que é especialmente dedicado aos que acham que é com mais impostos sobre os ricos, que em Portugal ganham 1500€ brutos, que se resolvem os problemas do mundo. Com um salário líquido superior, cada contribuinte acabará sempre por pagar mais impostos indirectos. Com mais dinheiro na algibeira o contribuinte irá sempre pagar mais IVA. Se comprar um automóvel irá pagar IA, IVA, IUC e ISP. Se comprar uma casa irá pagar IMT, IMI, Imposto de Selo e IVA sobre os consumos da casa. Se passar a fumar mais, irá pagar mais imposto sobre o tabaco e se beber mais cerveja e/ou refrigerantes não se livrará dos respectivos impostos. A lista dos impostos ultrapassa os limites de caracteres disponíveis para um postal e por isso não poderei ser exaustivo. Assim, quem ficar com mais dinheiro depois da retenção na fonte feita sobre o seu salário, acabará sempre por pagar mais impostos.

Quando falamos de que só aumentando a nossa produtividade podemos ver os nossos salários aumentados, falamos indirectamente do batalhão de funcionários das finanças, contabilistas, empresários, trabalhadores por conta de outrem que têm de lidar com o que será um dos sistemas fiscais mais complexos da Europa, ou do mundo. Quantas outras coisas produtivas poderiam ser feitas durante o tempo que se gasta a esclarecer as dúvidas resultantes da infinidade de detalhes do nosso sistema? Quantas dúvidas exigem um ou mais telefonemas, um ou dez e-mails, quantas multas indevidas acabam anuladas após a sua reclamação ou ida a tribunal, quantas horas de bisturi em punho são exigidas a quem quer aumentar os seus empregados sem incorrer na situação do Américo, quantos trabalhos em part-time não chegam a ocorrer para não se subir de escalão e, ao fim ao cabo, quanto perdemos todos para que entreguemos ao estado a decisão do que fazer com aquilo que ganhamos com o nosso trabalho?

2 comentários

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    Paulo Sousa 25.01.2022

    Apesar do raciocínio estar errado, registo a consideração pela ansiedade dessa massa anónima que constitui a entidade "os ricos".
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