A semente da tirania
Romances e política VIII - CONVERSA NA CATEDRAL (1969)
A corrupção política no Peru, no Governo autoritário do general Manuel Odría, entre 1948 e 1956, é o pano de fundo do terceiro e mais célebre romance de Mario Vargas Llosa, funcionando como exemplar autópsia dos regimes que ao longo do século XX condenaram a América do Sul ao grau extremo da penúria.
O escritor hispano-peruano centra a narrativa num diálogo à mesa do bar A Catedral, em Lima, entre o jornalista Santiago Zavala - ou Zavalita, autor de editoriais que redigia «de nariz tapado» - e o antigo motorista do seu pai, Fermin Zavala, próspero empresário apoiante da ditadura entretanto derrubada. A conversa decorre na década de 60, quando Zavalita e o velho Ambrosio trocam inesperadas confidências sobre aquele decrépito consulado e o confrangedor encarceramento físico e moral a que Odría condenou os peruanos. Anos de perseguições políticas, de censura à imprensa, de impunidade total dos esbirros do tirano - começando pelo seu braço-direito, o repulsivo Cayo Bermúdez, alcunhado de Cayo Mierda, especializado em torturar opositores. Com Ambrosio a conduzir-lhe a viatura oficial enquanto os jovens como Zavalita se viam remetidos a uma espécie de exílio interior.
«Toda a vida a fazer coisas sem acreditar, toda a vida a fingir», desabafa o editorialista ao seu interlocutor, noite adiante, na Catedral. Ou, na síntese de um colega, «bebedeiras sem convicção, coitos sem convicção, jornalismo sem convicção».
Recorrendo à técnica da diluição cronológica, Vargas Llosa povoa esta magnífica obra de múltiplas personagens e narrativas secundárias sem abandonar a denúncia dos governos que suprimem a liberdade e condenam sucessivas gerações a um futuro sem esperança. Sabendo de antemão que a semente da tirania, naqueles anos negros, estava muito longe de permanecer circunscrita ao seu Peru natal e ao subcontinente a que por vezes só por ironia continuamos a chamar Novo Mundo.