A razão dos senhores do Castelo
Um dos maiores problemas da União Europeia é sem dúvida o défice democrático e de transparência no processo de tomada de decisões. Já aqui escrevi que a UE contemporânea faz lembrar o genial romance de Franz Kafka, O Castelo, onde não se entende muito bem como funciona a hierarquia, quem manda nela, como se decide e que intenções têm os burocratas que a compõem, muito menos se percebe a quem respondem e quem os controla. Os eleitores não são ali chamados. A UE tem um percursor, a monarquia dual austro-húngara, que era uma entidade política genuinamente multicultural, onde conviviam povos diferentes, em língua e religião, mas numa harmonia invulgar nessa época. O império era democrático, próspero e relativamente pacífico (suicidou-se por causa da insensatez de alguns idiotas), mas tinha fortes contradições, como bem assinalaram os grandes escritores que viveram neste espaço político. Tal como Kafka fantasiou a partir dessa realidade, há hoje contradições na UE que desafiam a razão. Como se justifica que um presidente da Comissão consiga no mesmo discurso dizer aos britânicos que estes, ao saírem da UE, não podem pertencer ao mercado único (que ajudaram a construir e do qual cumprem todas as regras), e nas frases seguintes o mesmo presidente defenda a ratificação urgente de acordos de livre comércio com países terceiros? O Canadá, por exemplo, verá anuladas as tarifas a 98% dos produtos transaccionados. A Noruega, que não é membro da UE, tem acesso pleno ao mercado único. O Japão negociou um acordo de livre comércio (e ainda bem que o fez). Ora, os ingleses, que, repito, cumprem toda a legislação, têm direito a um Brexit punitivo e os comentadores aplaudem, contentes com esse evidente absurdo. Se isto não se parece com os senhores do castelo, então é parecido com o quê?