A propósito de Bolsonaro
Mais dois textos péssimos sobre Bolsonaro, o "Quem tem medo de Bolsonaro" no "Público" e o "#VocêsTambémNão" no "Observador". Ambos higienizam Bolsonaro, até dulcificando-o. O primeiro é mais simples, criticando as deputadas portuguesas por protestarem com o candidato fascista brasileiro mas sem se oporem a Maduro, o títere venezuelano, o que lhes ilegitimará a "virtude" denunciatória. Sim, tem alguma razão, e vários factores justificam a nossa atenção na Venezuela - o respeito pelos princípios democráticos logo à cabeça, a grande comunidade emigrada e lusodescendente, o facto de ser um enorme produtor de petróleo e, claro, a rábula do "Magalhães", mais um item da tramóia socratista que até hoje assombra o nosso país.
Mas este argumento, que é muito comum, tem algo que se lhe diga: é que políticos, articulistas e locutores de redes sociais que se aprestam a invectivar Maduro também se calam face a Duterte, excepto, porventura, quando o pérfido líder do maior país católico asiático insulta o papa; e se protestaram contra o (ex)marxista Mugabe nada dizem face aos desmandos do (nada)marxista Museveni; e se lhes ocorre criticar a teocracia iraniana não leio muitos "militante do CDS" - como assina Borges de Lemos, assim explicitamente associando o seu partido na tralha que alinhavou - a invectivarem a ditadura ateocida saudita, nem a do Qatar, para onde a Federação Portuguesa de Futebol, organismo tutelado pelo estado, contribuiu para enviar o apetecível negócio do Mundial de futebol. Ou seja, se isto é para criticar os zarolhos, então é melhor que o "militante do CDS" que desarticula no "Público" se dezarolhe, tal como os seus concordantes se devem dezarolhar. Porque assim estão a cuspir para o ar, a ilegitimarem as suas "virtudes" críticas, políticas.
O segundo texto, de Rui Ramos, é mais refinado, a expressão alta, editada, em voz de intelectual relevante de uma linha de textos em jornais e redes sociais de figuras menores sobre esta matéria. Confesso a minha irritação, repulsa mesmo, vendo que pessoas que se reclamam de uma direita democrática (ou mesmo de um centro-direita) - os termos valem o que valem, acima de tudo têm usucapião simbólico - diante da erupção de um tipo como Bolsonaro num país que nos é tão relevante (política, cultural e economicamente) como o Brasil, têm como pulsão da escrita não a crítica a esse energúmeno mas sim à dos críticos ao energúmeno. Para Ramos a questão da ascensão de Bolsonaro, tal como a anterior de Trump - assim elidindo que, por menos que se goste de Trump, os discursos de ambos não são compagináveis -, centra-se nisto: a malevolência dos discursos e práticas da esquerda radical. Isto não é, como faz com muito tino, Luís Menezes Leitão considerar que as modalidades histriónicas de luta anti-Bolsonaro são incompetentes, alienam opositores. Isto é apontar o cerne da questão à esquerda e não ao movimento fascizante.
Isto tem dois corolários e uma dimensão prévia: o primeiro é, que pela ausência de discursos de políticos, de intelectuais e de sub-intelectuais de direita/centro e até mesmo da esquerda democrática - e decerto que em muitos casos por higiene, pela aversão dos hipotéticos locutores em se verem misturados com o trauliterismo da extrema-esquerdalhada -, se deixa o monopólio do repúdio aos movimentos anti-democráticos às expressões dessa extrema esquerda e da esquerda folclórica. Há o abandono de um campo de (re)afirmação dos valores democráticos a esse corropio de agit-prop. E depois queixam-se que são estes desvairados movimentos que causam e/ou reforçam os fenómenos à extrema-direita. Isto tem algum fundamento? Em tudo isto há mesmo o matizar da bestialidade, que transpira condescendência: "Bolsonaro tem um jeito agressivo e grosseiro", reduz Ramos! Estará o autor a brincar? Ou está a deixar que só entre a tatuada Isabel Moreira e os enverhoxistas Rosas e Fazenda se diga o óbvio: que Bolsonaro é um fascista do piorio, completamente avesso aos valores democráticos - esses mesmos que o centro e a direita afirmam.
O segundo corolário bem que se casa com este, e vem, até por coincidência, no belo texto de ontem de Adolfo Mesquita Nunes, "A afirmação da direita" no "Diário de Notícias: uma direita politicamente deprimida e intelectuamente deficitária que pensa a realidade em função do posicionamento da esquerda (seja lá o que esta for), esta é que é o pólo dinamizador ("a esquerda não gosta do Bolsonaro?" "então eu até nem digo mal do gajo").
E nisto tudo continua-se a dizer uma semi-verdade que é de facto uma falsidade ("com a verdade me enganas"): que são estas expressões trauliteiras e maximalistas, estas tipas com as mamas e as bundas à mostra nas manifestações, que reforçam os bolsonarismos, que os causam, que é a extrema-esquerda que os "empodera" (como agora se diz em péssimo português). Não é verdade, o que potenciou Trump - fenómeno que R. Ramos associa ao de Bolsonaro - foi, em primeiríssimo lugar, a incapacidade dos republicanos (da direita americana, se se quiser) de promover dentro de si (Trump nem era do partido, convém lembrar) uma alternativa enérgica e consistente o suficiente para enfrentar uma estafada Clinton. Tal como o que reforça Bolsonaro é a incapacidade do centro e da direita brasileira (naquele espectro político demencial) de afirmarem movimentos e personalidades o q.b. significantes. Essa é a verdade factual, não são os guinchos da Isabel Moreira, quais bateres de asas da borboletas no Atlântico Austral, que há limites para isso da "fractalidade" fazer medrar o mal.
Esta esquerda folclórico-neocomunista demoniza os adversários do momento, como o RR avança? Sim. E nós, bloguistas portugueses vimos isso em Portugal, e até podemos sorrir na memória, como Pacheco Pereira do Abrupto era o diabo na terra, a reencarnação de Primo de Rivera ou coisa assim e desde que passou a ser o ideólogo da geringonça regressou ao estado humano. E notei-o, chocado, no meu regresso ao país, nesta constante invectiva dos geringôncicos socratistas aos seus críticos como "invejosos, ressentidos, ressabiados", o tal argumento que imputa deficiência moral ou doença mental (ranço/podridão, raiva) aos adversários políticos, típica modalidade bolchevique. E está espalhado esse tique velho-comunista. Mas, sem rodeios, não é essa a questão importante face ao bolsonarismo.
Finalmente, há o tal ponto subjacente. É que o matizar da relevância bolsonar, esta remetência para uma mera "grosseria", estes sorrisos que se vão vendo nos textos e sub-textos das redes sociais diante de um aparente mero "politicamente incorrecto", esta pulsão da escrita direccionada para a crítica ao críticos e não para a imundície, denota algo de profundo: em muitos, para além do paroquialismo do isabelomoreiracentrismo, há uma muito superficial (para não dizer pior) adesão aos valores democráticos. É isso que sai por todos os poros destes textos, por mais militantes ou simpatizantes do partido de Amaro da Costa, Francisco Lucas Pires ou Mesquita Nunes surjam. De facto e se, tal como o RR escreve, não há grandes diferenças entre Sanders e Trump quanto à valia dos tratados internacionais também não há grandes diferenças quanto à valia dos principios democráticos entre os Fazendas e Mortáguas e estes redutores de Bolsonaro a um atrevido algo grosseiro.