A peanha de Gagarin em Oeiras
Vai polémica com este monumento aos 60 anos de Yuri Gagarin no espaço, colocado num jardim de Oeiras. O representante do Taguspark responde, decerto que algo enfastiado, que o monumento se insere num museu que se quer "disruptivo" e instalado num "ecossistema com empresas dedicadas à aeronáutica". Eu resmungo com esta "apropriação cultural" do termo "ecossistema" pois se é certo que não é uma total incorrecção - em última análise as empresas de facto pertencem ao tal ecossistema -, a utilização do conceito é uma analogia típica do economês obscurantista. Quanto ao resto, se o Taguspark fosse um "ecossistema" integrando empresas cinematográfricas colocaria no seu "disruptivo" museu um monumento a Leni Riefenstahl, em cima de uma peanha decorada com a bandeira do III Reich? Ou, sendo menos radical, será que neste tétrico actual ambiente "woke" onde tantos intelectuais e docentes, para além dos jornalistas a la "Público", clamam a necessidade de retirar ou "contextualizar" obras de autores como Mark Twain, Eça de Queirós, Goscinny, entre tantos outros, devido às malevolências ideológicas que terão propagandeado ao longos das suas ocidentais (e portanto pérfidas) obras, neste ambiente, dizia, não será de exigir uma "contextualização" ao lado daquele monumento, explicitando aos incautos passantes o que foi a URSS e o movimento comunista em XX? Ou será que as pessoas se tornam traficantes de escravos, frades inquisitoriais e genocidas das alteridades ao cruzarem o pequeno mamarracho feito a António Vieira, lerem o "O Escudo de Arverne" ou o "Huck Finn", mas nada são influenciados quando lhes espetam no parque onde vão namorar, piquenicar ou fumar uns charros, a bandeira do feroz regime soviético?
Com toda a franqueza julgo que não. O monumento, no seu paupérrimo formato, é um evidente acto de propaganda russa, saudosista (e se calhar até revanchista, coisa que será das dinâmicas lá do país deles), emanado de um quadro cultural risível - quem o deu foi a "Fundação Internacional de Caridade", denominação que tudo diz, e que poria a antiga "esquerda" em guarda mas colhe agora muita simpatia, o que bem mostra a degenerescência do pensamento "gauchiste" actual. De facto, o único problema do monumento é ser bimbo. Alguns virão com a léria de que "gostos não se discutem" mas erram nisso, os gostos discutem-se. Mas deixemo-nos de coisas, num jardim de Oeiras instalaram uma bimbalhice a homenagear o primeiro astronauta (ou "cosmonauta", como diz o Taguspark, fiel ao vocabulário da Guerra Fria, no qual o Oeste chamava "astronautas" a Armstrong e seguintes e o Leste chamava "cosmonautas" a Gagarin e seguintes. Que patético e anacrónico seguidismo do "museu" daquele "ecossistema"...). Não vem nenhum mal ao país e ao mundo. E não se justifica vir agora defender o "cancel culture", nesta particular volúpia de apagar a memória da URSS.
Julgo que o debatível está alhures. Trata-se do manuseio estatal (por encomenda, indução ou mera permissão) do espaço público através da representação da História, o qual quer constituir e sedimentar a comunidade nacional, imaginar-lhe conteúdos e contornos, e articulações com o global. Mas a crítica actual a esses conteúdos simbólicos que o Estado promove, e assim inculca, segue a la carte - como se vê nesta irritação com a peanha soviética ou, de quando em vez, com um ou outro menir metálico de legitimidade contemporânea.
Tudo isto traduz um silêncio sobre o papel da "arte pública". E uma peculiar (e atrapalhada) hierarquização moralista dos factos do passado, e das respectivas potencialidades de malvadez e exclusão social que as refracções da sua simbolização actual transportam. Nisso direccionando uma atenção crítica selectiva que demonstra que não se está a discutir as modalidades históricas da discriminação em Portugal mas sim a reproduzir debates oriundos do estrangeiro, em particular dos EUA, dali decalcando as tensões sociais e o material cultural que as exprime.
Este "affaire Gagarin" é disso prova. Algumas pessoas irritam-se com o pequeno mono, lá no recôndito jardim que celebra um momento extraordinário. E esquecem tantas outras coisas - ou nelas nem reparam. Ou seja, naturalizam-nas, impensando-as pois delas se vão impregnando. Recordo que no mesmo ano da instalação da estatueta de Vieira e seus bons meninos índios, os infantes "nobres selvagens", coisa da lavra de Medina e Santana Lopes que tanta polémica levantou, brotou este mural na Graça lisboeta. Insere-se na institucionalização da chamada "arte de rua" (street art), uma nobilitação (agora diz-se "gentrificação") destas expressões pictóricas que por cá vem acontecendo desde meados da década passada (ver este artigo já de 2015), promovida pelos poderes estatais e instituições privadas, em particular empresas imobiliárias. Estes murais de grande dimensão, que servem de "ajardinamento" vertical, vão abundando, no país e em Lisboa (ver aqui ou aqui).
Tenho as minhas reservas sobre o gosto prevalecente, pejado de resquícios da já vetusta pop-art e de transposições de grande escala do grafismo "comics", que promove um figurativo que não me atrai e, em muitos casos, me lembra os trejeitos de "Pierrot com lágrima" (a homenagem aos "profissionais de saúde" num hospital do Porto em 2020 por um renomado artista, que colheu o comoção generalizada, é mesmo disso exemplo)... Mas isso é apenas o meu gosto, nada posso opor ao gosto dominante das franjas da nossa pequeno-burguesia autopercepcionadas como "rebeldes". Mas ainda assim franzi o cenho a este mural da Graça.
Desencontro-lhe relevância "estética", chamando-lhe assim para evitar outros debates. Mas face à sua simplicidade formal permito-me interpretá-la cingindo-me ao facialmente patente. Trata-se de uma obra do americano Shepard Fairey, afamado no género até pelo eco do seu retrato do ícone Obama. Fairey veio expor a Lisboa em 2017 e, com toda a certeza dado o gigantismo da obra, teve autorização estatal para esta "intervenção" (fez outra, também de grande escala, uma cara de mulher - sem a tal lágrima, mas quase ... - que ocupa o alçado de um prédio). A arte não tem que ser realista nem historicamente correcta. E um artista que trabalha no estrangeiro não tem que ali se restringir ao país que o acolhe.
Mas ainda assim pergunto-me, o que é esta obra de 2017, que faz aqui, o que sufragou esta paisagem encomendada? Uma La Pasionaria, com flor no cano da arma, assim aportuguesada numa piscadela de olho à iconografia do 25 de Abril? Terá o autor, distraidamente, aportado à Península Ibérica, ficado retido em Hemingway e Orwell, sonhando-se membro da brigada Abraham Lincoln, tomando Portugal como algo de Espanha, típico erro de gringo? Pois, numa interpretação mais simpática, isto poderá parecer uma algo desajeitada, pois descabida, alusão ao Exército Republicano da guerra civil espanhola, na sua boina preta de estrela vermelha, filiando a "revolução dos cravos" nessa iconografia. Se assim for é um atrapalhado, distraído e ignaro, desrespeito pela especificidade portuguesa. Aceite, apoiado, talvez financiado pela autarquia da capital. Aceite, indiscutido, pelos munícipes.
Ou então não é isso, trata-se de algo mais "moderno", como me parece. Trata-se da edificação pictórica, a grande escala, no centro de Lisboa, de uma simbiose entre o advento da democracia portuguesa e o movimento comunista internacional, reduzindo o 25 de Abril ao comunismo a la Ernesto Guevara.
Enfim, procurei mas não encontrei uma "memória descritiva". Mas deverá ser possível detectá-la ...
Mas encontrei esta entrevista, dada na sua estada lisboeta. E o que explicita aqui é que a sua adesão a esta estética nem ancora num qualquer "soviet chic", esse execrável modismo que sobressaiu no final do comunismo russo. Trata-se mesmo de uma inaceitável e perversa deturpação da história recente portuguesa. Não é "punk" - como Fairey identifica algumas suas raízes culturais. É bem-comportadinha, burguesota, inscrita neste "esquerda" folclórica de festiva. Uma obra bimba. E falsária. E ninguém protesta com esta tralha abjecta. Nem mesmo os que agora tanto se irritam com a modesta peanha do herói Gagarin, lá no relvado de Oeiras.