Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

A Nova Ordem da Culpa

Rui Rocha, 08.05.17

Assistimos periodicamente à introdução de determinados temas na discussão pública que seguem os interesses de uma determinada agenda. Foi o que aconteceu, recentemente, com vários textos que pretendem fundamentar um direito de regresso (direito de regresso de quem é aliás coisa que em geral não nos conseguem explicar) sobre o apuramento e a imputação de responsabilidades pela escravatura. Vejamos:
1º Não é sem espanto que constatamos que num momento histórico em que Deus se vai progressivamente retirando do espaço público, se é que não morreu como nos afiançou Nietzsche, a ideia de culpa que era inerente e fundamental em territórios tomados pelo divino, longe de partir para parte incerta, é apropriada por alguns para construir uma nova condenação decalcada sobre a ideia de pecado original (já lá iremos no ponto 2º ao esclarecimento de que pecado é esse afinal) num sistema construído para proporcionar a esses mesmos uma redenção final sem necessidade sequer de confissão e contrição (como se verá no ponto 3º). Por agora, é suficiente sublinhar o primeiro traço da hipocrisia: são os mais ferozes soldados da guerra santa pela erradicação de Deus e da religião da comunidade que, longe de nos libertarem das amarras da heteronormatividade imposta pelo divino, quase sempre alicerçada nos conceitos operacionais de culpa e de expiação, tomam para si a missão de anunciar, evangelizar e, se os deixássemos, punir, a partir de uma ideia de culpa de cujas escrituras se arrogam agora ser os únicos intérpretes. Pense-se o que se quiser sobre a culpa com Deus (ou por Deus, ou contra Deus), mas parece óbvio que não ficaremos melhor com uma culpa que persiste sem Deus, ainda por cima com tais pastores.
2º Num mundo interconectado, com acesso amplo a informação, é fácil promover a expansão da culpa (de uma determinada culpa) no tempo e no espaço. A nossa culpa, se a quisermos tomar ou se nos deixarmos convencer dela, pode estender-se à pobreza extrema de África, à exploração do trabalho na Ásia ou às catástrofes ambientais na América. Note-se que num estado inicial, a culpa perante Deus era individual ou de um grupo, mas suportava-se num nexo de causalidade com actos próprios de que o indivíduo ou a comunidade eram responsáveis. A divindade castigava por um comportamento concreto (devassidão, apostasia, etc.) e com uma consequência directa (perda das colheitas, cheias, uma doença, para só dar alguns exemplos). Agora, o nexo de causalidade e punição perderam a sua relação unívoca com o prevaricador. A culpa tem o tamanho do mundo. Qualquer acto meu de consumo pode aparentemente desencadear a barbárie a milhares de quilómetros. Qualquer acto meu pode desencadear a punição não de mim ou dos meus, mas de pessoas que não conheço que são castigadas com incêndios ou inundações do outro lado do mundo. Esta é uma culpa universal e expansionista. Uma culpa incontrolável e insaciável. Uma culpa que se estende também no tempo. Somos culpados aqui e agora. Mas também somos culpados pelo que aconteceu há 200 anos. Ou mais, se for preciso. Mas não há então limites a essa culpa? Há, claro. Para percebermos quem e o que fica aquém e além dessa culpa é necessário interpretarmos os textos dos acólitos que nos querem impingir este novo tempo. E o traço comum a esta Nova Ordem da Culpa é a sua natureza unidireccional. Embora persistente e expansível até ao infinito no espaço e no tempo, esta culpa é apenas a da civilização ocidental. Sim, temos culpa pelo esclavagismo em África. Mas jamais poderemos culpar os muçulmanos pela invasão da Península Ibérica. Ou criticar os maridos que lêem no Corão que a palavra de Deus é infligir maus tratos às mulheres como forma de reforçar os sagrados laços do casamento. Para um determinado acto, a existência da culpa não é determinada pelo seu valor intrínseco mas pela condição de quem o pratica. É ocidental? Culpado. Não é? Então não temos nada que nos meter nisso. Temos então aqui esclarecido o novo fundamento teológico da culpa. O novo pecado original é o pecado ocidental. A culpa que interessa impôr é então infinita no espaço e no tempo mas é simultaneamente descontínua. Ali onde não se possa imputar à civilização ocidental, entendida como aquela que resulta das democracias liberais, da economia de mercado e, trema-se, do modo de produção capitalista, simplesmente não existe culpa. É este entendimento que permite a um estrénuo defensor do pecado ocidental que nos faz responsáveis pela escravatura do século XVIII, fechar no momento seguinte os olhos à carnificina de Estaline, ao genocídio de Pol Pot, à tortura de Fidel Castro ou à violência de Estado na Venezuela. Não integram no património genético o cromossoma fundador da civilização ocidental? Não são culpados, coitados. Está então desmascarado o 2º traço da hipocrisia dos sacerdotes do Templo da Culpa Ocidental: derrotados pela História, confrontados com os resultados de uma ideologia que desembocou invariavelmente na miséria, na morte e na repressão, não desistem de um impulso de desforra, ainda que para isso tenham que incorrer na mais tortuosa arbitrariedade.
3º Esta culpa que nos querem vender é então uma culpa só dos ocidentais. Mas de todos os ocidentais? Não, na verdade. Qualquer sistema de culpa inclui uma hipótese de redenção. Os judeus acertavam contas pelo sacrifício de bodes expiatórios. Os católicos redimem-se pela contrição, pela confissão e pelas avés-marias. Os vigários da Nova Ordem da Culpa encontraram um mecanismo mais sofisticado. A confissão, por exemplo, pressupõe a assunção de culpa. Os vigários querem a alma lavada mas não assumem culpa nenhuma. Para se eximirem ao pecado ocidental, identificam-se com a vítima. Quando pedem o pagamento de uma reparação pela escravatura, colocam-se do lado de lá. É como se eles próprios tivessem sido levados da costa de África em barcos de negreiros para trabalhos forçados nas roças de café do Brasil. E é isto mesmo que lhes permite usar um Iphone sem problemas de consciência. Bebem do fino mas não estão disponíveis para pagarem por ele. É este o 3º traço de hipocrisia e, no final, aquele que desmascara definitivamente a imoralidade do sistema de culpa, expiação e redenção que nos propõem e que nunca os inclui como réus do julgamento que pretendem conduzir.

NOTAS FINAIS:
1) O sistema de culpa baseado no pecado ocidental funciona, mutatis mutandis, para outras questões como o colonialismo ou as questões ambientais.
2) Sou ateu mas não sou parvo (creio que ainda me vou arrepender de ter usado a adversativa). Entre culpa julgada pelo Deus do Antigo Testamento ou a vida virtuosa orientada de acordo com os ensinamentos de um Livro das Expiações ditado por Boaventura Sousa Santos, fico como o Burro de Buridan: que venha o Diabo e escolha.

17 comentários

Comentar post