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Delito de Opinião

A noite em que não vi nem ouvi Charlie Haden

José Navarro de Andrade, 12.07.14

A única explicação que encontro é de isto se ter passado no Cretácico Inferior, por altura dos primeiros mamíferos.

Era normal um rapazola de 12 anos gostar de jazz? Em 1971 não seria inteiramente anormal, embora as discussões se inclinassem para os Emerson, Lake & Palmer (“Tarkus”, a mais bela capa de disco até hoje – não é verdade, mas era o que se dizia na altura), os Yes (“Fragile”, a mais bela capa de sempre – idem), Procol Harum (“A Whiter shade of pale” e “Conquistador”, as mais belas canções alguma vez cantadas – ibidem) e Jethro Tull (“Aqualung”, nunca houve capa tão feia). Os do pátio sul do Liceu Camões, uns idosos de 16 anos, ouviam as coisas de adultos que passavam no “Em órbita”: “Imagine” de Lennon, “Who’s next” dos The Who, ou “L.A. Woman” dos The Doors. Em nota de rodapé seja testemunhado que os Genesis, isto é, “Selling England By the Pound”, e os Pink Floyd, ou seja “Dark Side of the Moon”, vieram noutra glaciação, dois anos depois. Temos assim que a minha pancada pelo jazz era suficientemente excêntrica para dar assunto, mas não de modo a taxar-me entre os putos charilas da turma, o que seria a morte súbita destinada aos apreciadores dos Bee Gees.

Não consigo hoje perceber minimamente como foi possível que o meu pai me tivesse deixado ir ao Festival de Jazz de Cascais de 1971. Porque: 1) Ia dar sarilho – 10.000 barbudos rodeados de polícia de choque por todos os lados? 2) Aquilo era tardíssimo, estava marcado para as 21h30 o que, segundo os fusos horários da época, queria dizer que não começaria antes das 22h30; 3) Era longíssimo, ou seja, na estância balnear de Cascais onde passávamos férias.

Postos os argumentos sensatos, porque diabo se deu o meu pai ao trabalho de pedir ao Luís Andrade (a RTP gravou todo o Festival) que me introduzisse no Dramático, o majestoso e nóvel pavilhão de hóquei convertido em sala de espectáculos, com acústica e conforto a condizer com a modalidade dos patins? Apresentei-me no carro de exteriores bem antes do início da récita, às dez horas portanto, um técnico enfiou-me um par de auscultadores na mão e entrei com a caravana que dava assistência às câmaras – “está connosco” foi o que laconicamente disseram ao Cérbero da porta que implacavelmente rechaçava a legião de borlistas. Não teria sido preciso tanto John LeCarré: o pessoal da RTP havia sequestrado uma grade de cerveja do bar e partilhou-a toda a noite com porteiro e com o polícia de turno enquanto lá dentro decorria a “macacada” – expressão deles).

Mas como se não bastasse tanta irresponsabilidade paterna, os meus pais ainda me levaram até Cascais e ficaram ali à espera que eu me extraísse da mole ululante de 10.000 hippies, yé-yés e playboys que no âmago do Dramático se amontoava até ao tecto. Uma condição: “sais à meia-noite”.

Seria alguém hoje capaz de imolar um filho de 12 anos às fauces deste Baal de charros e subversão, sob a ameaça latente de uma carga policial, que eram famosamente vesgas e bestiais? Claro que não.

Do espectáculo só registo duas memórias: as calças de cetim verde de Miles Davis e, quando entrei, um músico de bochechas aerostáticas a fazer um scat, sozinho à entrada do camarim, que me piscou um olho perante o meu indiscreto estarrecimento com aquele rosto inflado (era Dizzy Gillespie, o que na minha ignorância bíblica só vim a saber muito depois). Que mais impressões poderia um pré-adolescente apedeuta e apagado recordar da primeira noite em que saiu sozinho, ouviu jazz ao vivo e esteve metido numa multidão hirsurta até à mítica hora da Cinderela?

Por isso, pela parte que me cabe agradeço do fundo da alma a Charlie Haden. Não que o tivesse visto, ou ouvido a sua célebre dedicação do tema “Song for Che” aos movimentos de libertação das colónias que, contaram, provocou um sururu homérico no Dramático, mas porque ele fez virtualmente parte da noite em que perdi a virgindade existencial e em que vi a liberdade pela primeira vez.

Quanto Charlie Haden, o contrabaixista, o mínimo que se pode dizer é que deu a volta ao universo, começando no despertar do free em “The shape of jazz to come” (1959) de Ornette Coleman e culminando o seu percurso estelar no sereníssimo, belíssimo e tradicionalíssimo (nunca haverá demasiados superlativos para ele) “Come Sunday” (2006) em dueto com o pianista Hank Jones que faleceria logo a seguir à gravação. Venha quem faça melhor…

 

Quem quiser saber a sério como foi o 1º Festival de jazz de Cascais leia aqui e aqui.

O alfa e o ómega da trajectória de Charlie Haden.

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