A mochila etíope (III)
Lalibela, norte da Etiópia - fotografia minha
O orfanato
A estrada de acesso ao portão principal é um atoleiro. Os carros e carroças atascados na lama obrigam a gincana apeada, com o lodo a chegar ao meio da canela. É um cenário comum durante a época de chuvas, período que vai de Junho ao final de Setembro. Dentro do recinto funciona uma clínica pediátrica e um orfanato financiados e geridos por uma ONG europeia.
As crianças ali acolhidas têm idade estimada – abandonadas na rua, ninguém sabe ao certo quando nasceram. O membro mais recente da família era uma menina que teria entre um e dois meses de idade, recolhida à beira da estrada. Como referido em posts anteriores, a berma da estrada é o centro da vida social e do comércio nas zonas rurais e, por isso, é lá que as crianças são deixadas para que alguém as encontre. Acontece, porém, que é também à beira da estrada que apodrecem os cadáveres dos animais atropelados – cães, burros, hienas, há de tudo – e que a população sem acesso a saneamento básico faz as suas necessidades. Quando a menina foi encontrada tinha o corpo entregue à sarna.
“As infecções de pele e as doenças respiratórias são os problemas mais comuns nas crianças desta região. Há casos extremos. Mas são problemas que os hábitos de higiene, o saneamento básico e o acesso a água potável eliminariam quase por completo”, explica N., médico, chefe de serviço na clínica pediátrica. “Gastam-se fortunas em apoio médico, mas 90% das doenças em pediatria resolver-se-iam com coisas simples”.
O problema com maior incidência e gravidade é a malnutrição. Os casos mais frequentes são de malnutrição severa, embora os números oficiais do Estado mostrem uma realidade diferente, onde a malnutrição moderada é a regra e a severa quase marginal.
“O Governo falseia os dados por duas razões”, explicou-me N. “Primeiro, porque pretende transmitir ao exterior uma imagem positiva do país, essencial para alcançar suas ambições de Estado dominante na região. Segundo, porque precisa de demonstrar aos patronos internacionais, estatais e não estatais, que os milhares de milhões de dólares que anualmente entram no país para combater a malnutrição infantil estão a ser bem utilizados”.
Há uma terceira razão. Na última década, entre 40% e 50% do orçamento do Ministério da Saúde proveio de financiamento exterior, tanto de Estados como de organizações internacionais. Só com este apoio a Etiópia consegue ter um serviço nacional de saúde gratuito de âmbito nacional. Mais do que cumprir uma função do Estado, a saúde pública assume um papel político, pois é usada pelo Governo para mostrar que não existe discriminação étnica e, dessa forma, mitigar pulsões nacionalistas. O sistema nacional de saúde é, até certo ponto, um instrumento para dissuadir a contestação: com este Governo há saúde para todos; com outro não se sabe.
A luta contra a malnutrição é difícil. Para que não seja inglória, M., 36 anos, coordenadora da ONG no país, conta-me que as crianças com este diagnóstico, mesmo que acompanhadas pelos pais, ficam internadas na clínica. “O tratamento é feito através da administração de um leite em pó, uma fórmula especial. Podíamos entregar este leite aos pais para que o administrassem às crianças em casa. Mas sempre que o fizemos, os pais, ao chegarem às suas aldeias e verem que há mais crianças subnutridas, partilham o leite entre todos. Conclusão: nenhum dos bebés recebe a dose de que necessita. O leite desaparece (e é um bem caro e difícil de obter aqui) e as crianças continuam subnutridas. Agora ficam internadas até que as medições e o peso indiquem que estão bem.”
Procura de trabalho, Adis Abeba - fotografia minha
O serviço nacional de saúde tem cobertura universal, mas está mal equipado, especialmente nas zonas rurais. As ONG prestam uma atenção médica fundamental e, em alguns casos, são mesmo o único apoio às populações, o que coloca uma pressão enorme sobre a gestão de recursos. “Umas noites atrás tivemos cinco casos graves de crianças com problemas respiratórios. Só havia botijas de oxigénio para quatro. E se usássemos o oxigénio com esses quatro casos, não haveria botijas para a manhã seguinte. Tivemos de fazer escolhas difíceis...apoiámos os três casos mais graves, mantivemos os outros em observação, e arrancámos para Adis Abeba para comprar mais botijas”. Num raio de 160 km, esta é a única organização com botijas de oxigénio.
Naquele orfanato, as crianças comem três vezes ao dia, têm água potável e hábitos de higiene, têm uma cama, estudam, têm assistência médica permanente, e estão protegidas da violência – em particular de agressões sexuais, crime com alguma incidência no país. São vidas privilégio quando comparadas com o que sucede fora dos muros da instituição, o que é trágico.
As carências alimentares e os demais problemas de saúde pública expõem os limites do milagre económico e suscitam sérias dúvidas sobre a política de desenvolvimento adoptada pelo Governo. Um relatório muito crítico publicado pelo Oakland Institute em 2016 refere que a crise alimentar vivida nesse ano, que deixou 18 milhões de pessoas dependentes de assistência para sobreviver, teve a sua origem, como sempre, em factores ambientais, mas foi potenciada pelo Plano de Desenvolvimento Comunal e pelo Plano Quinquenal de Crescimento e Transformação da Etiópia. Estas estratégias governamentais resultaram no realojamento forçado de 1,5 milhões de pessoas de comunidades pastoris e agro-pastoris, além de dificultarem o acesso das populações a água. As secas são crónicas na Etiópia, mas parte importante dos estudos independentes sugerem que as fomes catastróficas não têm de o ser.
O nome dos cooperantes foi omitido a pedido dos próprios. As fotografias que ilustram o texto são, intencionalmente, de regiões distantes da vila onde a ONG está sedeada.