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Delito de Opinião

A minha vez

Luís Naves, 15.12.14

Ao passar duas horas no centro de emprego, vi os sinais da melancolia e do conformismo que alguns pensadores julgam ser a natureza mais profunda do povo português. Naquele grupo de uma centena de pessoas havia estrangeiros, mas a preponderância era de trabalhadores pouco qualificados e pessoas com baixa instrução, as maiores vítimas de um colapso económico que a elite nacional tarda em compreender. Digo isto porque muitos intelectuais ainda não perceberam que a crise social atinge sobretudo trabalhadores que não encontram emprego num mercado de trabalho que se tornou de súbito mais curto e exigente.

A senhora que meteu conversa comigo contou-me que muitos desempregados preferiam receber de uma vez o dinheiro a que tinham direito, para abrirem um negócio, mas aquilo tinha grande risco, disse-me ela, a acrescentar que sonhava em abrir uma tasca ali numa boa avenida da cidade. Não mencionei as minhas dúvidas nem lhe disse que as tascas na minha rua fecharam todas e que os negócios são difíceis, pois é preciso investir e fazer contabilidade, enfim, todas essas coisas, e de resto não há consumo. Ela continuou a falar do seu sonho, mas não explicou o que eu já adivinhara, que não lhe restava muito dinheiro para receber, apenas mais alguns meses, a um valor diário que não dava para uma refeição normal. Mostrou-me os papéis. No ecrã da televisão, os números avançavam devagar e as pessoas mantinham-se nos seus lugares, como acontece por vezes nos aeroportos à espera dos voos atrasados, sem grandes manifestações de impaciência, excepto no caso de um homem que entrou a falar alto, headphones ao pescoço, aspecto de já andar pela quinta dimensão. Naquela inesperada invasão, a senhora que meteu conversa aproveitou para me dizer que os números andavam devagar por eles serem “psicólogos”. Quem? Os que nos atendiam, respondeu. Eram psicólogos por ouvirem as pessoas. A senha dela estava a dois números do objectivo, mas aquilo ia “engasgar”, disse, num tom apenas factual, sem alarme ou fatalismo.

Na sala, havia o ruído de conversas em voz baixa, certa serenidade, à excepção do homem dos headphones, que acabou por sair, a ralhar com o mundo. Lembrei-me de alguém ter dito que este povo é demasiado manso, mas ali não valia a pena fazer barulho. Qualquer perturbação só iria atrasar o avanço dos números no ecrã, adiando a esperança de quem aguardava a vez. No painel electrónico prosseguia o avanço lento das senhas, por vezes engasgando-se a sua boa ordem, mas ninguém se importava muito com a demora num número: cada pessoa na sala esperava isso para si, que houvesse alguém, por uma vez, a escutar os seus problemas.

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