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Delito de Opinião

A Mardis fechou

Sérgio de Almeida Correia, 06.02.15

i.axd.jpgForam poucos dias. Suficientes para encarar a realidade que deixei para trás. Quando se está fora é sempre mais fácil olhar para dentro. Para trás idem. E imaginar como tudo teria sido se também eu tivesse ficado. Quando se vê o fio dos dias sem se conhecer o dia seguinte, vendo a esperança esvair-se na confrontação do seu reflexo, o que de material se possa ter deixado perde significado. Só o reconhecemos ao mergulhar de novo na piscina de onde se saiu e onde agora tantos tentam manter-se à tona.

Fiz múltiplas tentativas. Fui às páginas brancas e às amarelas. Procurei na Internet. Nada. Havia números que continuavam a chamar, outros com uma gravação que dizia que não estavam atribuídos, e os que restavam nem sequer davam sinal. Seria possível terem alterado todos os números? Decidi-me a passar por lá quando fosse a Lisboa. Conhecia a casa há mais de vinte anos. Desde o momento em que consegui comprar o meu primeiro Alfa Romeo, os meus carros nunca conheceram outras mãos. Primeiro sob a batuta do Sr. Augusto, até este dar uma queda e se reformar. Depois com a atenção do Leonel, que se tornaria no chefe da oficina, e dos seus colegas. As meninas da recepção, senhoras, sempre atenciosas. Ali, eu sabia que aquela gente não perdia tempo, conhecia os pormenores, não confundia o barulho de um amortecedor velho ou danificado com um apoio do motor partido. Sabiam o que faziam e faziam-no bem, de forma competente, razoavelmente económica, não esquecendo que os meus carros eram, para além de uma paixão, uma extensão prática de mim, pelo que tinham pouco tempo para se entregarem aos seus cuidados. De quando em vez lá ficavam mais um dia, para uma revisão mais profunda, mas era raro. Sempre impecáveis, sempre a brilharem, com uma sonoridade única.

Quando lá cheguei dei com as portas fechadas. Os vidros cheios de pó. Estacionei e fui ler o aviso amarelado que estava afixado: Estimados Clientes: Informamos V. Exas. de que esta oficina estará encerrada entre os dias 11 e 30 de Agosto. Percebi logo o filme. Sem saber o que fazer, aventurei-me a entrar pela drogaria do lado e perguntei ao proprietário se sabia o que tinha acontecido aos vizinhos da oficina, se sabia onde parava o pessoal. O homem levantou os olhos, olhou-me fixamente e disse: "Fecharam e nunca mais abriram. Uma casa com mais de quarenta anos. Às vezes ainda passa por aí um dos mais velhos para levantar a correspondência, mas há muito tempo que não vejo ninguém. Isto está uma desgraça. Não sei onde irá parar".

Eu também não sei. Normalmente, quando não cai, a montanha-russa só pára no fim. Não se consegue sair a meio. Logo agora, ao fim deste tempo todo, e com o pouco tempo que tenho, ter de ir à procura de alguém que saiba olhar para os meus carros, que conheça a marca, a história, a tradição. Das últimas vezes já desconfiara da falta de stocks, da necessidade de combinar primeiro o que queria fazer para depois passar por lá. Agora acabou-se. A Mardis fechou. Finou-se.

A Mardis é apenas um caso. Ficava ali na Luciano Cordeiro. E no seu meio era uma casa cujas máquinas eram tão afamadas quanto as do seu não menos conhecido vizinho. Cada um no seu ramo, é certo. Mas embora trabalhando a horas diferentes, penso que não se podia dizer que a qualidade de serviço da Mardis fosse inferior à do Elefante Branco.

Casos como o da Mardis repetem-se por esse país. Muito antes fora assim no Algarve. Faro desertificara. A Rua de Santo António já era em 2013 uma sombra do passado. Até o Constantino, do Baía, fechara portas e abalara. Ficou o António Manuel. Para ir ficando com os espaços que fechavam. Em Cascais fora o mesmo. É só começar a descer a Rua Direita. É porta sim, porta sim. Tudo às moscas. Num restaurante, que em tempos foi uma referência e um ex-libris da vila, há gente com três meses de salários em atraso. E parece que a patroa se amofinou quando a mulher de um dos trabalhadores lá foi tirar satisfações. Queria saber quando é que o marido iria receber. A fidalga.

Penso que nunca comi tão barato como nas últimas semanas. As lojas de roupa sobrevivem com vestuário a preços que quase não deve dar para pagar a matéria-prima. Sapatos quase de borla. As prateleiras cheias. Clientes nem vê-los. Da FNAC à Labrador, da Bulhosa à Bertrand, da Wesley à Boss, da Hélio à Loja das Meias. Nesta última, ali nas Amoreiras, eram mais os empregados que os clientes. Alguém terá de lhes pagar os ordenados.

Andei por aí. Fui ao Lidl, ao Jumbo, ao Continente. Olhei para as pessoas. Sem querer, reparava no que levavam enquanto esperava a minha vez nas caixas. Algumas vezes me senti desconfortável com o que trazia. Nada de especial. Mas quando se compram duas garrafas de um vinho decente e mais meia-dúzia de coisas que perfazem mais de uma centena de euros e se encontra alguém na caixa, com idade para ser minha avó, a quem falta 1,20 euros para pagar uma conta de 13,00 euros de um pequeno cabaz de iogurtes, leite, pão e duas maçãs, a gente fica sem jeito. Deixe estar, minha senhora, pode levar as compras. Eu pago o que falta. O olhar agradecido, envergonhado, um obrigado recolhido enquanto guardava os poucos cêntimos que restavam.

Ao mesmo tempo, na Urgência do Hospital de Cascais não havia lugares para uma pessoa se sentar. Eu ia para ficar à espera. Não era utente, quero dizer. Na TSF, num desses habituais fóruns onde se bota discurso, discutiam-se as mortes nas urgências, as taxas moderadoras. Alguém falava em cerca de  30,00 pela consulta e pelo exame que lhe mandaram fazer. Na farmácia fiquei a saber que os medicamentos para as hemorróidas não tinham comparticipação. O das unhas também não. Um fulano perguntava se de um outro medicamento não havia genérico. O farmacêutico dizia que sim, havia mas não lhe podia vender porque o médico colocara a cruzinha. E o homem insistia. Queria o genérico. Não tinha dinheiro. Havia um parecido, mais barato, não era bem aquilo, mas fazia o mesmo efeito. Não ia voltar à consulta e a médica não saberia de nada. Então levo esse, disse ele.

De caminho passei por duas universidades. Almocei numa delas. Dois estudantes vieram sentar-se ao pé de mim. Tinham vindo colaborar com a organização e assistir à conferência. Afáveis, eu era convidado, ali ficaram. Fizeram-me companhia. Falei com eles. Eu comi o prato do dia, bebi um refrigerante, no final a sobremesa e um café. Tudo por menos de cinco euros. Eles comeram uma sanduíche de ovo e beberam água. Pão e água. Falei com eles. Senti-me mal, como fosse responsável pela sua situação. Nenhum deles se queixou. Queriam acabar os cursos. Um era músico nas horas vagas. Iria nesse fim-de-semana para um bailarico. No Alentejo. Sempre era uma ajuda para as propinas. Nesse dia jantei em Lisboa. Ali para o Príncipe Real. Quando no final me pediram 16,00 euros pensei que se tinham enganado. Com o que comemos? Sim, está tudo incluído, o vinho também. Fiquei em silêncio. Paguei a minha parte. Como se pertencesse a outro mundo. A outra gente.

Não posso voltar para trás. Ninguém pode. Lá atrás só ficam os que não conseguem escapar. E os que roubaram. Dois milhões é obra. Falo de pobres. A raspadinha não é o BES nem a SLN. Não dá tanto.

Em Portugal, a urze cresce em qualquer lado. A pobreza é uma espécie de urze. Os pobres vivem dentro das suas possibilidades. Quando se vive dentro das possibilidades não se pode voltar para trás. Não há dinheiro para isso. Os pobres vivem dentro das suas possibilidades. Os pobres são como os velhos: também não podem voltar para trás. Pelo menos enquanto respirarem. Depois também não voltam para trás. Já ficaram para trás. Eles e as suas necessidades.

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