A maralha avança sempre em manada
Imagens RTP
Não sou entendido em antropologia, mas há coisas interessantes e divertidas no comportamento das pessoas.
Olhando para o que foram as celebrações do cinquentenário da revolução, já agora 25 de Abril sempre, ditadura nunca mais, não pude deixar de me pôr a imaginar quantos daqueles milhares que ontem festejaram a liberdade seriam capazes de arriscar a sua vida por ela. Claro que hoje a festejam, e todos os dias, felizmente, mas quantos daqueles seriam capazes de, como em Tiananmen, abrir os braços para fazer parar um blindado? Quantos teriam coragem de se manifestar na Praça Vermelha com uma folha de papel em branco? Quantos se atreveriam a questionar a divindade do herdeiro de turno da dinastia norte-coreana?
Serão os portugueses gente de uma gesta diferente dos chineses, russos ou norte-coreanos? Fomos, enquanto povo, capazes de algo impossível para outros?
Acredito que 99% da população mundial não pretende ir além de uma vida mais ou menos serena, sem a pretensão de deixar uma marca na história da humanidade. Isso está reservado a uma estreita minoria, que, custe o que custar, fazendo o que tiverem de fazer, consomem todas as suas energias em liderar os demais. Desses, alguns são pontualmente decentes, enquanto outros são gente do pior.
Enquanto isso, o grosso da maralha avança sempre em manada, aplaude quando vê aplaudir, assobia quando ouve assobios e até pode saltar a barricada, mas só depois de alguém a ter derrubado. E os que deitam abaixo as barricadas pertencem aos tais 1% de desalinhados.
Dizia Ortega y Gasset que o homem não pode ser separado da sua circunstância. Dizem-me que Otelo chorou copiosamente nas cerimónias fúnebres de Salazar. Os homens também choram, desde que colocados numa circunstância que a isso justifique. O mesmo Otelo que, noutra circunstância, foi determinante no desenrolar da operação “Fim do Regime”, não hesitou em avançar para o terrorismo bombista contra uma jovem democracia. Que personagem este Otelo! Destemperado, honesto e desconfiado, crédulo e excessivo, tal como o seu homónimo, o Mouro de Veneza.
Não tenho dúvidas que um dia, no futuro, os russos celebrarão o fim do putinismo. Não podemos imaginar como isso vai ocorrer, mas se não for por obra humana, nem sob a ameaça do seu arsenal nuclear, a lei da vida lhe abrirá uma excepção. Nessa circunstância, os que agora se acomodam respeitosa e silenciosamente um dia também irão para a rua celebrar e contar como era a vida no tempo de antigamente.
À excepção de uns quantos, escassos, que hoje estiveram nas cerimónias, assim como de outros, que já cá não estão, poucos dos que ontem cantaram, celebraram e folgaram seriam capazes de dar o primeiro passo contra os esbirros do Estado Novo.