A Livraria Martins
(Como ontem se inaugurou a Feira do Livro de Lisboa deixo este postal sobre uma livraria que acabo de conhecer)
Vim a Lisboa para a ver, querida e antiga amiga, companheira em Moçambique, ela andarilha lá e no mundo, agora regressada após meses, quase um ano, na "Pérola..." e a calcorrear os "distritos", para minha - até dolorosa - inveja. Abraçamo-nos, eu sigo no defeito da franqueza e "estás óptima", ela riposta, impiedosa connosco num "estou nada, estou velha!", eu rio-me, pois por mim concordo (e muito) mas não nela, que sempre lhe noto o viço do olhar límpido, esse daqueles que ainda se conseguem encantar. Com lucidez...
Sentamo-nos na esplanada, ali junta à Avenida de Roma, as cercanias dela. Encaramos o célebre - pois "dos tempos" - "Cockpit", enfrenta ela um cocktail vistoso, eu a monástica imperial, e juntos depenicamos um qualquer petisco elegante. E mergulho, até sôfrego, no que me narra sobre esse do Niassa ao Maputo que agora voltou a percorrer, dos trâmites do seu enérgico trabalho, e uns laivos (a meu pedido) sobre os amigos comuns. Não vertemos saudosismo - o muito que então nos foi bom assim nos ficou -, ambos isentos do cândido sonho de regressar ao passado. Temos, sim, interesse: o meu nela, e seus passos, e espero que tal lhe seja recíproco, apesar do baço que manco. E sobre o país, daqueles tão enviesados rumos e esdrúxulos discursos, isso tudo que quando por lá até deixamos de estranhar mas que - e felizmente - nunca se entranhou.
Finda a tarde deixo-a, e avanço à Alameda no tornar a casa. Mas, já sozinho, deixo-me cair um pouco nostálgico, talvez do quando seguíamos companhia constante e do meio e tempo em que isso aconteceu. E, ainda mais, do como eu então era e deixei de ser, um pouco por decisão, imenso por erosão. Não me deixo invadir - nunca tal me permito, repito-o - pelo anseio austral. Mas é neste (des)ânimo, não pungente mas emotivo, que absorvo esta "Av. de Roma", a de agora, onde há tanto não andava.
Pois esta é também um pouco a minha zona, desde os infantis passeios semanais sob tutela paterna, a Rodrigo da Cunha avoenga, as compras Av. da Igreja abaixo, então agitada, o barbeiro na Manuel da Maia, almoços dominicais no "Paris" e "Isaura". Para depois, sabendo dos vizinhos partidos a estudar para o "Padre..." e para a "Dona Leonor" - pois das famílias olivalenses mais esclarecidas, a safarem os filhos daquele subúrbio escolar -, fazer por crescer nas primeiras matinées dançantes, ao “Beat” e “Browns” nessa era das “Cubas livres”, naquela fileira de cinemas, e mais no "Quarteto" – só décadas depois no “King” -, e a olhar os velhos nos bilhares do "Astória", os dealers de haxe na "Sul-América" - desse tráfego um dia filmado e mostrado no telejornal então único, “grande bandeira!” disse-se… -, as namoradas dos tipos com motos na "Mexicana". E ainda, após um passo avante, a ir espreitar o "Copacabana" reduto (dos) do meu pai, jantar na “Floresta de Madrid”, a tasca mais barata que conhecíamos, encerrar a “Munique” e daí escorregar ao “Pote” a mirar os nossos mais-velhos, estes ainda de samarra e, claro, suas motos e até carros.
Depois vieram os anos dos primeiros ordenados, lautos, (também) na vasculha das charcutarias e seus bons vinhos, ali a do “CCA”, onde o Miguel Bastos tinha uma das suas livrarias - essa que o Ubaldo Ribeiro antes frequentara, e celebrizara, em cândidos soslaios para a belíssima livreira que lhe inspirava as crónicas no “O Jornal”. E naquilo do retardar até ao limite as temidas consoadas familiares, arrastando-nos no "Roma", único estaminé aberto nessas noites, abrigo de solitários e já esgarçados casais vizinhos, remanescentes viúvas, solteirões anquilosados e daquele nosso punhado de intransigentes boémios.
Foi assim tudo até ao ter-me apaixonado, atrapalhado nisso, por uma miúda que vivia no prédio do “Frutalmeidas”, tanto que anos depois lá voltámos, vindos de Maputo, a passar os primeiros meses quando nos nasceu a Carolina. Para percebermos que era ali, afinal, o tal “mapa cor-de-rosa”, entre os pastéis de massa tenra, a bica matinal mesmo ao lado no “Polana” e o almoço, simples e sempre funcional, na contracosta do “Luanda”. Tudo isto acabou por me fazer anuir a dar os passos necessários para ali, defronte ao “Vavá”, vir a remoer os "anos prateados" (pois aos "doirados" não creio assomar), o que até teria acontecido não fora entretanto ter eu tropeçado, e com estrondo.
Lembro tudo isto agora, aqui entre a “Sílvia” e a João XXI, tão entristecido fico com o que já não cruzo, pois nem uma réstia da velha azáfama nem um pouco do discreto encanto (pequeno-)burguês que recordo. É hora de jantar no Agosto lisboeta, digo-me para justificar aquele deserto debruado de hambúrgueres, fancaria chinesa e “clínicas do pêlo”. Mas nisso não alivio o cheiro da degenerescência, a da “avenida” mas que é também a minha. Já esmorecera à chegada, notando desaparecida a sapataria ao “Hotel Roma” onde durante 30 anos comprei sempre o mesmo modelo de “Portside”. Mas descalço fico agora ao cruzar a “Bertrand”, abandonada a uma descuidada montra, quatro ou cinco exemplares de cada livro exposto, preguiçoso preencher do espaço, qual velho armazém a implorar trespasse.
E mais desalento me sobra após apenas meia dúzia de passos, face à “Barata” já fechada nesta tarde ainda soalheira. Indago e vejo afixado o encerramento diário às 8.00… Recordo a casa, mesmo ainda na sua versão inicial e o seu dono original, o senhor Barata que morreu triste, e como isso condoeu a Lisboa que lhe era clientela. E também a excitação que foi, naquela cidade desse tempo, o fruto da sua remodelação, o mobiliário inovador, o soalho de calçada, o ar fresco, a abundância de livros, o bom gosto mesmo. E o horário…, o horário… E bem mais tarde, lembro agora com azeda saudade, a semestral vinda de Maputo, e logo directos para lá, visita de primeiro dia na Pátria Amada, sítio de bons livreiros e livros, bom ambiente, para vasculhar fim de tarde afora, e pela noite até… É agora uma empresarial cadeia, Leya, má rima.
E sigo, nem estanco, vou resmungando, um velhote a falar sozinho na rua, só cuido de não gesticular: “já não há valores!”, “pois pudera, não se lê!”, nem “ninguém reage”, nesta modorra desistida… Cruzo a vazia Praça de Londres, sigo à Guerra Junqueiro rumo ao metro, e logo ainda mais me exalto. Pois a velha “Mexicana” está fechada, também sob o ferrolho das “20 horas”, ela que foi antecâmara e mesmo sede da animação juvenil e refúgio do convívio de meia-idade e seus idosos… Embrulho-me em onomatopeias, eriçado de pesaroso - pois nestas redondezas nada resistiu, talvez apenas o “Matos”, ainda de farta mesa e digna adega – e estugo o passo, em fuga deste subúrbio que foi a cidade.
De súbito, já a meio da avenida, sobressalto-me… entre uma pequena esplanada e uma montra com livros, afinal mesmo uma livraria. Reconheço um escaparate montado, com gosto – feito por quem lê e chama leitores. Passo atrás, espreito e avanço cada adentro, espaçosa, elegante de discreta, e recebo um forte odor “a novo”. Baixo toca a “banda sonora”, cativante – Joni Mitchell à minha chegada, depois virão “The Crystal Ship” e “A Perfect Day” entre outros. “Alguém da minha idade escolhe a música, e com bom gosto...” digo pergunto às duas livreiras, atentas e simpáticas apostas ao balcão, e elas anuem, sorridentes, e nisso escondendo qualquer possível incómodo diante deste façanhudo e retardatário cliente. Dizem-me que a casa é mesmo nova (“quinze dias” comprovam) e eu – enquanto murmuro, admirado, “quem é que hoje se mete a vender livros?” – dou uma volta pelas secções temáticas, bem compostas, decerto que por alguém que sabe da poda. Desço à cave, bem iluminada, com outras secções e, ainda mais, um belo espaço de convívio.
Estou encantado, com a bonita livraria e, muito mais, por alguém nisto avançar aqui. Subo, uma das gentis funcionárias (“colaboradoras” dirão outros) mostra-me o bar, bem fornido mas cujas garrafas têm ainda um ar virginal, e a sala adjacente, quatro ou cinco mesas para se beber (e ler, talvez) – ornamentada por fotos dos nisto clássicos Wilde, Pessoa, Hemingway, e há uma parede vazia “para o Lowry”, digo para mim, que o tipo é sempre esquecido pelos decoradores… Continuo o passeio, e nisto dou de caras com uma secção de “futebol” – “os livros de futebol não se vendem” disse-me um amigo, autor prolixo, quando lhe perguntei se seriam publicáveis os meus textos sobre bola, de que tanto gosto – dos textos e da bola –, e por isso acabaram eles no "O Meu Sporting", Até futebol têm, e rio-me.
Há muito que jurei não comprar livros, não só pelas pilhas nas estantes que esperam a leitura devida mas, muito mais do que tudo, porque sopeso o dinheiro, agora em cansativo exclusivo para o rancho… Tal como não bebo na rua, pois qualquer uísque alhures me chega para uma Queen Margot em Nenhures. Mas estou, repito-me, deliciado, e assim com urgência em voltar a ser (um pouco) do que fui. E compro o grande Dinis Machado, decerto que pelo menos terá uma ou outra pepita, acolhido folheado já com um Famous Grouse. Pois esta cidade que resiste à parvónia por cá dominante merece ser festejada, celebrada.
Escorropicho o copo e dão-me um “A Metamorfose”, edição da casa para presentear os clientes… Fico ainda mais agradado, terão percebido que a mulher-a-dias de Gregor Samsa é uma das minhas personagens de ficção preferidas?
Estou já na “linha vermelha” do metro, sei que vou um velhote com um sorriso apatetado na carruagem. Devo-o à Livraria Martins…