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Delito de Opinião

A Lisboa que muda na Lisboa que fica

Pedro Correia, 29.11.23

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Isabel Ruth e Rui Gomes no filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (1963)

 

Não houve um filme como este, não haverá um filme como este. Admirável enlace entre imagem e som, com os acordes sofridos de Carlos Paredes a sublinhar este drama de gente desenraizada nos dédalos de uma cidade que se reinventava naqueles dias de ilusória quietação pressagiando tempos de turbulência.

É um filme que bebe inspiração sobretudo no cinema italiano que lhe era contemporâneo. Há aqui muito Antonioni, há aqui muito do inesquecível início da Dolce Vita, com uma imagem de Cristo a sobrevoar de helicóptero os novos subúrbios de Roma, espécie de sorridente alegoria ao milagre económico italiano.

Era um cinema de intervenção, certamente. Mas muito mais no plano estético do que no plano político. Era um cinema que olhava com veneração para a arquitectura e acreditava com sinceridade que os arquitectos eram os novos profetas da modernidade, capazes de - com as suas linhas ousadas e arrojadas - abraçar o futuro e edificar os alicerces de uma sociedade diferente, habitada pelo homem novo.
Utopias urbanísticas tornadas pouco antes realidade, como sucedeu com a Brasília de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conduziam a isso. Daí a veneração quase infantil que Paulo Rocha demonstra pela arquitectura, pondo as suas personagens a deambular constantemente pelos espaços mais modernos da Lisboa daquele início da década de 60 - Avenida dos EUA, Avenida de Roma, Cidade Universitária...

 

Como se viu depois, a arquitectura serve para muito mas não para moldar o homem novo, que aliás permanecerá eternamente por criar. E a vanguarda de anteontem torna-se rapidamente uma obsoleta mercadoria académica aos olhos dos que nascem depois de amanhã.
O Cinema Novo tornou-se rapidamente prisioneiro das suas contradições, abraçando um neo-realismo tardio (em obras como Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, e A Promessa, de António de Macedo), quase sempre a preto e branco, como metáfora permanente de um regime que parecia imutável mas que se tornou também espelho de fronteiras artísticas demasiado estreitas.

Derrubado o regime, também de algum modo os seus opositores no campo artístico se tornaram anacrónicos. O fabuloso Berlamino (1964) escapa a esta sina porque recusou logo à partida encerrar-se naquela tendência de contrapor ao miserabilismo da ditadura uma linguagem artística também tocada pelo miserabilismo de circunstância.

 

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Cena do filme rodada na Avenida de Roma, em Lisboa, junto à pastelaria Suprema


Os Verdes Anos, com as suas evidentes fragilidades, interessa-me hoje sobretudo pela sua vertente documental. Era um cinema feito na rua, que recusava o estúdio, também por inspiração italiana - e este filme, que constitui uma declaração de amor a Lisboa, acaba por ter portanto as rugas que a própria cidade ostenta. Neste aspecto, como noutros, diremos que a arte imita a vida...
Ainda há dias passei pela oficina de sapateiro do Raul/Rui Furtado, naquela cave situada mesmo ao lado da Suprema: tudo tal e qual como vem no filme. Excepto que a fresta, hoje gradeada, já não está aberta à rua. Ou o Vá Vá, onde decorre a cena final: está praticamente na mesma. Inversamente, a Floresta do Ginjal, que bem conheci na outra banda e era local de romaria gastronómica ao fim de semana, está há muito encerrada - sintoma de incompreensível decadência numa localização privilegiada, onde se obtêm as melhores vistas sobre a capital.
O filme confirma que, por detrás de uma Lisboa que muda, há uma Lisboa que permanece. Outros, antes dele, fizeram o mesmo - mas talvez nenhum com a transparência e a admirável sinceridade deste. Ao som hipnótico da guitarra de Paredes e revendo para sempre o belo rosto de Ilda/Isabel Ruth, em eterno desafio às inclemências do tempo com um fulgor que só a magia do cinema dá.

 

Texto reeditado, no dia do 60.º aniversário da estreia d' Os Verdes Anos

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