A irresponsabilidade e ignorância do corte na investigação
A opinião de um especialista em física aplicada sobre as declarações de Pires de Lima.
Os cortes nas bolsas de doutoramento e pós-doutoramento são sobejamente conhecidas e qualquer pessoa com um mínimo de lucidez reconhece o retrocesso que representam na busca de uma política moderna de conhecimento. Não vou entrar por aí nem pela questão de mais uma fuga de cérebros porque são assuntos óbvios e fáceis.
Prefiro referir as declarações inacreditavelmente ignorantes (ou outra coisa bem pior se não foram motivadas por ignorância) de Pires de Lima, o ministro da Economia. O essencial das suas declarações focava o facto de as bolsas não chegarem «à economia real». Apontar a Pires de Lima que o conhecimento nunca é mau e que se gera a si mesmo; que muitas descobertas científicas só têm aplicação prática muito mais tarde; que a aplicação de conhecimento em forma de resultados económicos é normalmente resultado de um processo cumulativo dedicado a gerar uma massa crítica; apontar todos estes aspectos é, penso eu, falar para a parede. Ou Pires de Lima não o compreende ou não quer compreender.
Há no entanto dois aspectos, muito práticos, que Pires de Lima deveria tentar perceber. O primeiro prende-se com os critérios de atribuição de bolsas a projectos, o segundo com os modelos de investigação em universidades e institutos.
1 - Quando se elabora um projecto de investigação é frequentemente necessário ver em que chamada se enquadra. Há chamadas dedicadas à ciência fundamental e chamadas dedicadas à ciência aplicada. As primeiras ajudam cientistas a descobrir pormenores sobre o efeito fotoeléctrico ou novas reacções químicas. As segundas usam as descobertas das primeiras para produzir melhores sensores ou novos materiais. Isto só falando das ciências naturais e engenharias (por desconhecimento evito outras ciências). Como se pode ver, é necessário gerar conhecimento fundamental para haver quem pense em como aplicar esse conhecimento. Os cientistas brilhantes capazes de fazer ambos num único passo pertencem ao domínio do cinema. Relembro que o cientista mais celebrado da história humana - Einstein, pois claro - nada fez no lado da aplicação, mas que as suas descobertas levaram a muitas aplicações que geram biliões à economia mundial.
Um outro aspecto a saber em relação às chamadas - e que descobri quando elaborei as minhas - é que muitas vezes o financiamento, mesmo quando para projectos que contem com empresas, não é atribuído se a entidade financiadora chegar à conclusão que o projecto não envolve risco e que as empresas o podem desenvolver independentemente. Ou seja, se uma empresa considera que pode pagar os custos do projecto e que os resultados são relativamente certos (há já muito boas indicações que a ideia funcionará), o projecto não será financiado. Não é função das entidades financiadoras (nacionais ou europeias) dar dinheiro que as empresas estão dispostas a pagar.
Ou seja, se o Estado (ou a UE, ou outro) não financiar certos projectos com um certo grau de risco, não serão as empresas a compensar esse financiamento. Como a maioria dos projectos já levam tal raciocínio em conta, resulta daqui que a esmagadora maioria dos projectos nunca começará porque ninguém os financiará.
2 - No passado, a Alemanha teve um modelo interessante de financiamento das suas universidades (especialmente as técnicas que, mais uma vez, conheço melhor). Além de terem criado 3 institutos de investigação com pólos por todo o país (Max Planck, investigação fundamental; Fraunhofer, aplicada; e Leibnitz, algures a meio) também criaram vários tipos de financiamentos para projectos científicos a nível estatal e nacional. As universidades têm portanto muito por onde escolher. Só que as universidades tinham uma outra fonte: as empresas. E como funciona(va) esta hipótese? Muito simplesmente as empresas decidiam desenvolver um novo produto, processo ou ideia e, em vez de encherem a empresa de investigadores que noutros períodos pouco teriam para fazer, dariam o dinheiro previsto no orçamento a uma universidade que faria a investigação. No final a empresa teria uma resposta e a universidade teria mais um doutorado (ou o doutorando teria mais um tema para a tese).
O problema é que as universidades começam cada vez mais a adoptar o modelo americano, o qual dá um peso enorme aos artigos publicados por peer-review. Nada tenho contra o sistema, que é a base da ciência moderna e serve simultaneamente de filtro de qualidade e de disseminação de informação. Para lá dos problemas que a internet e a pressão de publicar está a trazer a esse sistema (qualidade, preços, liberdade de informação, etc), também começa a destruir esse sistema de investigação aplicada que era patrocinado pelas empresas. As universidades têm como objectivo lógico a publicação (quanto mais artigos, melhores os resultados) e as empresas querem manter o segredo do que fazem. Disto resulta um conflito dificilmente sanável (que prejudica inclusivamente os trabalhos de mestrado em empresas, as quais exigem cláusulas de confidencialidade extremamente rigorosas) e que reduz substancialmente os incentivos das empresas para trabalharem com universidades.
Num exemplo muito simples, a Galp poderia não entrar num projecto juntamente com o Instituto Superior Técnico para desenvolver um aditivo para gasolina porque o IST quereria publicar os resultados e a Galp quereria mantê-los secretos. Numa empresa grande, isto não será necessariamente um problema (têm investigadores próprios), mas para muitas empresas pequenas isto pode ser uma catástrofe.
Conclusão: a esperada. Reduzir (especialmente desta forma) o financiamento da investigação científica em Portugal é um desastre. É-o sob muitos aspectos que vão desde a geração do conhecimento "for knowledge sake" à aplicação do mesmo como resultado de uma massa crítica no fim de um processo cumulativo. Mas é-o também por uma questão prática, porque a «economia real» não terá incentivos (especialmente em períodos de crise) para compensar essa redução. Em termos práticos, teremos um país menos inteligente, mais ignorante e com piores perspectivas de futuro (são jovens que se vão embora). Mais medieval, portanto. Como a cabeça de Pires de Lima.