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Delito de Opinião

A (in)utilidade do protesto pacífico

João Campos, 02.06.20

A propósito do texto desta tarde da Maria Dulce Fernandes. Muito poderia ser dito sobre descrever-se motins violentos como terrorismo, mas deixarei de lado essa divagação. Do texto ficou-me sobretudo uma das últimas frases; julgo que não terá sido exactamente isto que a Maria Dulce queria dizer, mas acabou por ser isto que disse:

Não é possível apagar um crime hediondo praticando milhares de outros que tais, igualmente injustificáveis e desprezíveis. 

Não é, de facto. Mas motins violentos e homicídio - George Floyd não foi vítima de outra coisa - não são igualmente injustificáveis e desprezíveis. Nunca serão. 

Protestos pacíficos são muito bonitos e dão fotos catitas para as redes sociais, mas o mundo não muda com toda a gente a dar as mãos e a cantar a Imagine. Protestos pacíficos são, na verdade, uma forma muito eficaz de aparentar movimento sem sair do mesmo sítio, de mostrar apoio a uma causa sem grande convicção e, sobretudo, sem grande compromisso. Sem grande sacrifício. Marcha-se um bocadinho, sorri-se para as câmaras, proferem-se palavras de ordem estridentes e vazias, manifestam-se as melhores intenções do mundo - e, no final, vai cada manifestante à sua vidinha, e o mundo continua a rodar no mesmo sentido. Quem estava bem, continua bem; quem estava assim-assim continuará assim-assim; e quem estava mal, continuará mal.

Toda a gente sabe, afinal, que lugar está cheio de boas intenções.

(Por cá orgulhamo-nos de ter feito uma revolução sem derramar sangue. Esquecemo-nos - fingimos esquecer-nos, não dá muito jeito - é dos quase cinquenta anos de ditadura que aguentámos enquanto povo, mansamente, encolhendo os ombros, incapazes de partir a loiça. Bem vistas as coisas, não foi grande coisa a nossa revolta contra a tirania; salvo raríssimas excepções, limitámo-nos a esperar que o regime caísse de podre. Como teria de cair, inevitavelmente. Calhou terem sido quase cinco décadas; podiam ter sido seis ou sete.)

Mas divago. Colin Kaepernick protestou pacificamente contra a discriminação racial e a brutalidade policial nos EUA. Serviu de muito.

As imagens de violência que chegam das cidades norte-americanas são chocantes, de facto, e a sua fúria esconderá imensas injustiças e inúmeros aproveitamentos de uma indignação mais do que legítima. Mas de todas as imagens que vi até agora dos motins e da destruição causada impressiona sequer uma fracção do que choca o vídeo da morte de George Floyd, esmagado pelo joelho de um polícia e pela indiferença de outros dois ou três. Não houve ali a mais remota tentativa de "proteger e servir", como não houve qualquer esforço de praticar algo que se aproximasse de qualquer ideal de Justiça, por mais imperfeito que esse ideal pudesse ser. Houve, sim, um homicídio. Mais um.

Talvez os protextos violentos não mudem nada, mas desta vez ninguém poderá dizer que não ouviu.

Sobre este tema, e fazendo a ligação a um outro caso muito recente que, apesar de chocante e sintomático, felizmente não acabou com ninguém morto, recomendo as palavras de Trevor Noah.

 

 

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