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Delito de Opinião

A independência da Catalunha.

Luís Menezes Leitão, 05.10.17

Costuma dizer-se que os homens se dividem entre os que perguntam porquê e os que perguntam porque não. As aspirações à independência de um povo raramente se situam no plano meramente factual, entrando frequentemente na esfera do mito. Em termos de mito, a Sérvia considera que a fundação do seu país ocorreu na batalha do Kosovo de 1389, em que o Príncipe Lázaro defontou as tropas do Império Otomano. Em termos de factos, o resultado da batalha foi uma vitória esmagadora do Império Otomano, que passaria a dominar a Sérvia durante mais de cinco séculos. Mas a ideia da independência sérvia ficou, o que levou à sua proclamação em 1804. Quanto ao Kosovo, que passou a ser considerado pelo mito o berço da nação sérvia, só seria efectivamente conquistado pelos sérvios em 1912. Mas apesar disso, o mito justificou que os sérvios se opusessem ferozmente à independência do Kosovo, apesar de mais de 90% da sua população ser albanesa. Mas o Kosovo declarou unilateralmente a sua independência em 2008, rapidamente reconhecida por inúmeros países, e declarada legal pelo Tribunal Internacional de Justiça de Haia, apesar de não ter havido qualquer acordo com a Sérvia.

 

No caso da Catalunha, em virtude da obstinação do Estado espanhol, com uma actuação irresponsável do governo, e um discurso disparatado do Rei, caminhamos para um resultado semelhante. Quando até o líder catalão pede mediação, mesmo depois da estrondosa vitória política que obteve, e a mesma é recusada por Espanha por ilegalidade, só pode acontecer uma declaração unilateral de independência da Catalunha. E aí uma de duas. Ou a Espanha reage mais uma vez à bruta, invoca o art. 155 da Constituição, manda avançar o exército e prende os independentistas catalães, ou se limita a ignorar a declaração. No primeiro caso, usará uma bomba atómica que também lhe pode explodir nas mãos, pois pode não conseguir vergar a determinação catalã, criando imagens que internacionalmente farão imenso sucesso, com novos Jan Palach catalães à frente dos tanques espanhóis. Mesmo que consiga estancar a revolta numa primeira fase, arrisca-se a fazer a figura dos ingleses na Índia ou do regime do apartheid na África do Sul, criando uma série de mártires na prisão que, cedo ou tarde, imporão a sua lei. No segundo caso, o resultado será que a Catalunha cortará as relações com Espanha, estabelecerá as suas fronteiras, e paulatinamente haverá Estados que irão reconhecendo a independência da Catalunha, até serem a maioria e a Catalunha ser admitida na ONU, com ou sem o acordo de Espanha.

 

Tudo isto poderia ser evitado com o diálogo entre as partes, que várias instituições se disponibilizaram para mediar, o que poderia salvar a unidade de Espanha, com uma maior autonomia para a Catalunha que, no fundo foi o que resultou do Estatuto de 2006, irresponsavelmente declarado inconstitucional em 2010. Mas a Espanha parece paralisada, sendo incapaz de encontrar uma solução pragmática, que só a mediação pode fornecer. Pelo contrário, assistimos a contínuas provocações dos espanhóis aos catalães, como os cânticos da Guardia Civil em Barcelona, como se fossem uma força da ocupação, ou os insultos que Gerard Piquè tem recebido na selecção espanhola, onde joga desde os 16 anos. E assim as coisas só podem acabar mal.

 

Há muita gente que dirá, e com razão, que a independência da Catalunha é uma loucura, implicando a saída da União Europeia, do euro, e a perda de acesso ao mercado único. Têm razão, mas como dizia o nosso poeta: "Sem a loucura que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?". À força das ideias não se responde com o imobilismo dos factos. Porque o grande poder de uma ideia é precisamente o de conseguir mudar o mundo.

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