A implacável purga de palavras
Fiquei a saber, lendo o excelente blogue de Maria do Rosário Pedreira, que alguma luminária com assento no Instituto Camões decidiu carimbar com o rótulo palavras mortas «todas aquelas que não tenham sido utilizadas nos últimos três anos».
Não imagino como os burocratas desse instituto irão averiguar tal coisa. Sei, isso sim, que o tal organismo existe para preservar e valorizar a língua portuguesa, não para emitir certidões de óbito às palavras do nosso idioma. Se tivesse competência para tal, aliás, o Instituto Camões começaria por decretar «mortas» centenas de palavras impressas na obra maior do poeta que lhe dá nome. Palavras como ditosa [pátria], ínclita [geração], infidas [gentes], benignidade [real], avena [agreste], valerosos [feitos], procelosa [tempestade], fermosas [Ninfas], terríbil [Albuquerque].
Nem é necessário recuar tanto no tempo. No próprio século XX, muitas páginas escritas por Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, Tomaz de Figueiredo, Agustina Bessa-Luís e outros escritores estarão pejadas de «palavras mortas» à luz do tal critério daqueles anónimos burocratas.
«A redução de vocabulário nos últimos anos tem sido dramática. Não apenas do vocabulário culto que, não há muito tempo, faria parte do dia-a-dia numa família medianamente instruída. Mas daquele que transportava uma tradição ancestral», alertou-nos Mário de Carvalho no seu luminoso manual de escrita intitulado Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão.
Maria do Rosário Pedreira dá exemplos de vocábulos que, segundo o mesmo padrão, já podem ser considerados letra morta: flausina, mastragança, bazulaque, amásia, lambisgóia. Aguarda-as o tal carimbo? Se isso acontecer, outros irão merecer extrema unção a um ritmo cada vez mais acelerado, como a escritora antecipa aqui. E não apenas palavras: também expressões idiomáticas.
De purga em purga, de depuração em depuração - até toda a riqueza semântica do nosso idioma, alicerçada num lastro de muitos séculos, se dissolver no básico linguajar de cafres que já polui o quotidiano, começando pelo das televisões e dos jornais. Que geram títulos como estes, encontrados na imprensa de hoje: «O dark side do Porto, anos 90»; «Sítio abre cowork em Aveiro»; «Como escapar ao burnout?»; «Traficantes go fast condenados por associação criminosa»; «58% dos trabalhadores remotos sentem-se engaged.».
Parecemos condenados, em grau crescente, a balbuciar e rabiscar broken english: talvez isto mereça medalha do Instituto Camões.
P. S. - Sugiro aos leitores que escrevam aqui palavras raras, de que gostem, evitando assim que lhes seja emitida certidão de óbito.