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Delito de Opinião

A História e o pedestal

João André, 30.06.20

Faz-me pena a questão das estátuas vandalizadas ou derrubadas, não porque isso não faça necessariamente sentido, mas porque acima de tudo distrai do essencial: várias (quase todas, diria) sociedades são de facto estruturalmente racistas, mesmo que apenas como herança do passado.

É hoje indiscutível que as condições em que cada pessoa nasce e cresce condiciona fortemente o seu futuro. Há quem destrua todas as condições de privilégio em que nasce e outros que ultrapassam as limitações do seu ambiente. Em geral, contudo, quem nasce pobre tem de subir um plano inclinado e quem nasce mais confortável terá uma inclinação mais suave pela frente.

O racismo passado criou condições para múltiplas pessoas serem condicionadas fortemente a terem montanhas bem íngremes pela frente só devido à cor da pele dos seus antepassados. O similarity bias continua a garantir que tais montanhas se mantenham inclementes mesmo quando se consegue começar a subir. Isto é também indiscutível. Há casos em que certos grupos conseguem ultrapassar essas dificuldades mas habitualmente obtêm um patamar intermédio entre o grupo dominante e o grupo mais fortemente discriminado. Um exemplo extremo eram os indianos na África do Sul, discriminados mas acima dos negros (situação que continuará).

No fundo tudo se resume a um aspecto simples: acreditamos que há grupos que são mais ou menos capazes devido à cor da sua pele ou à sua origem geográfica? Se sim, então a visão é racista (os estudos honestos modernos continuam a negar tal conceito) mas a situação actual é compreensível e uma consequência destas diferenças. Se se entender (como eu) que não há qualquer diferença significativa nas capacidades das pessoas de grupos diferentes, então é a sociedade que é racista se não virmos uma representação em cargos públicos, nos quadros das empresas, nas universidades, etc, razoavelmente equivalente à distribuição dos diferentes grupos na sociedade.

Esta é a realidade actual e não é por o presidente anterior dos EUA ser negro (ou mestiço) ou o primeiro-ministro português ser de descendência goesa que o resto da sociedade é não-racista. E se é racista, é normal que haja grupos cujas frustrações colectivas mantidas ao longo de séculos a certa altura extravasam. Ainda mais normal é que estas se manifestem em símbolos desse passado, sejam estes símbolos do racismo (nos EUA, Jefferson Davis) ou apenas representantes do seu tempo (George Washington ou Thomas Jefferson, que possuíram escravos).

Relembremos: as estátuas não são a priori história, antes representam figuras históricas. Nalguns casos as estátuas pertencem à história, pelo que representam, pelo que demonstram, pela arte que as construiu. Não devem por isso ser destruídas, mas não significa que tenham que ser mantidas. Não devemos simplesmente juntar uma turba furiosa para as derrubar, mas a presença de tal exigência deveria levar a uma reflexão sobre o valor da mesma estátua e a validade de a manter. Isso sim, ajudaria a pensar a história. O resto é apenas esconder o passado debaixo do pedestal.

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