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Delito de Opinião

A hipocrisia

Pedro Correia, 15.05.17

 

Como sempre em Portugal, saltamos do oito para o oitenta - da indiferença total à lotação esgotada vai um curto passo. Canais de televisão que não mexeram um dedo para acompanhar o percurso da canção vencedora do Festival da Eurovisão em todo o processo que culminou com a final de Kiev, na noite de sábado, passaram a dedicar dezenas de minutos ao tema em sucessivos telediários mal soou a trombeta do triunfo.

Cidadãos que há muito se estavam nas tintas para eurofestivais soltam agora gritos de euforia, proclamando a “vitória de Portugal”, como se o destino da pátria estivesse em jogo. Políticos que nada fizeram nem fazem para instituir a educação musical no ensino público correm a colar-se à equipa vencedora, com o oportunismo de sempre.

 

Lamento, mas não alinho nestes coros colectivos nem me deixo iludir perante tamanha hipocrisia. A vitória na Eurovisão não foi “de Portugal”: foi de pessoas concretas. São essas que merecem os nossos parabéns. A Luísa Sobral, com talento e sensibilidade para conceber a letra e a música que estão a seduzir milhões de pessoas em todos os continentes. O Salvador Sobral, que tão bem interpretou a canção. O Luís Figueiredo, pianista e compositor de excepção, autor dos arranjos musicais que tanto valorizaram Amar Pelos Dois.

Não deixa de ser espantoso que os mesmos canais de televisão – incluindo a própria RTP – que promovem programas de formação e revelação de supostos novos talentos na música ligeira onde quase só se canta em mau inglês com dialecto americano sublinhem por estes dias a importância de se cantar em português. Como se só agora tivessem descoberto a musicalidade do nosso idioma – um facto tão notório desde as Cantigas de Amigo medievais até às trovas contemporâneas de um João Gilberto e um Caetano Veloso. Passando pela fabulosa lírica de Camões, toda ela digna de ser cantada.

 

Para serem consequentes, esses responsáveis televisivos que agora se derramam nos ecrãs a tecer loas à canção vitoriosa deviam anunciar desde já novos programas caça-talentos virados em exclusivo para a música portuguesa. Sob pena de toda esta euforia se esgotar num curto prazo e continuarmos a promover o tal “fogo de artifício” cénico de que muito bem falava o Salvador Sobral: miúdas e catraios aos saltinhos num palco, esganiçando-se em trinados num idioma de importação do qual mal conseguem arranhar uns refrões tontos, plastificados na forma e vazios de conteúdo.

Poupem-nos ao menos à retórica patrioteira. Para esse peditório não dou.

2 comentários

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    Anónimo 16.05.2017

    Peço desculpa ao Salvador e não Luís...
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