A Fantasia dos Nossos Tempos Dá Cá Uma Trabalheira
Quando eu era pequena era normal acreditar-se em quase tudo. Acreditavamos no Pai Natal e, em simultâneo, no Menino Jesus, acreditavamos no coelho da Páscoa, no homem do saco, no palhaço Batatinha, no lobo mau, na avózinha, nos glutões do Presto, em fadas e em duendes.
Como não havia cento e tal canais de televisão, muito menos internet, e não se falava ao telefone trezentas vezes ao dia, não havia hipótese de nos virem com caraminholas que trouxessem a angústia da dúvida ao nosso imaginário. Acreditavamos em tudo, piamente, e até muito tarde.
Nos dias que correm, torna-se cada vez mais difícil manter as tradições seculares no que toca a enganar a criançada.
Ora cá em casa, na senda dos ensinamentos do meu pai, o Ratón Pérez é a entidade oficial que toma conta da ocorrência cada vez que um dente de leite resolve dar o ar da sua graça.
No meu tempo a logística era simples: o dente caía, nós deixavamo-lo dentro de um copo de água na mesinha de cabeceira, e o rato lá vinha durante a noite para deixar uma lembrança.
Uma vez a minha irmã Luísa cometeu a heresia de apregoar aos quatro ventos que “isso do Ratón Pérez é uma grande treta” e teve o dissabor de, em vez da habitual lembrança, receber uma pesarosa carta em castelhano, remetida pelo próprio Ratón, a dizer que “si no creía en el, no la podria regalar”. É evidente que, em nossa casa, nunca mais ninguém se atreveu a duvidar da existência do bom e velho Pérez, pelo menos até à chegada da maioridade.
Já eu, que pertenço à geração de mães do novo milénio, vejo-me grega para prolongar o mito. Tive de me adaptar aos novos tempos e arranjar uma data de argumentos para tornar credível o facto de haver um rato se mete à estrada a partir de Espanha com um embrulho às costas.
No século XXI, como é sabido, qualquer actividade tem de ter um interesse económico, senão cheira logo a aldrabice. De maneira que o Ratón Pérez é evidentemente um coleccionador de dentes que só deixa um presente porque está interessado em aumentar o espólio. E é sabido que quando um dente se apresenta em mau estado não há qualquer hipótese de “regalo”.
Como o castelhano não é o forte cá de casa, optou-se por lhe dar uma origem galega, o que, em caso de missiva, fornece alibi perfeito para os portunhólicos pontapés na gramática da língua de Cervantes.
A água do copo tem de ser bebida quase até ao fim porque o pobre rato vem a alta velocidade desde Espanha e chega cá sedento. Por vezes, chego mesmo a ser obrigada a deixar um bocadito de queijo Emmental (que sou forçada a mordiscar lá pela uma da manhã) porque é natural que, à chegada, o amigo Ratón traga uma certa larica.
Isto tem-me dado uma trabalheira, sobretudo quando tenho de puxar pela memória para manter a coerência dos factos, mas o que é certo é que, até à data, nunca dei pelo menor resquício de dúvida face à existência do Ratón Pérez.
Já no Pai Natal ninguém acredita. Que isso de haver um velho gordo puxado num trenó voador por meia dúzia de renas está-se mesmo a ver que é fantasia.