A entrevista
Pessoas com um deficiente sentido da arquitectura constitucional do regime democrático, que são quase todas, concentram-se no que a PGR disse na entrevista, e não no facto singelo de a ter dado.
Mas esse é o busílis. Porque o Parlamento “convidou” a PGR e a senhora optou por adiar e ir mazé à televisão dirigir-se directamente ao país.
Tivesse a senhora Procuradora-Geral o hábito de falar frequentemente e poder-se-ia dizer que era mais uma entrevista, tão anódina como as outras. Mas não: que me lembre foi a primeira à televisão, anunciada com a relevância e significado que realmente teve.
O significado é este: O Ministério Público não deve explicações ao Parlamento mas preferentemente à comunicação social – no formato e no momento que entenda.
Sucede que nem a comunicação social representa o Povo nem o Ministério Público, ainda que seja titular da acção penal, tem as prerrogativas do poder judicial, ao qual não pertence. O que significa que, ao destratar o Parlamento, o que está a fazer é lisonjear não o povo mas a populaça.
Isto é tão grave, e tão denunciador da cultura corporativa do MP, que o “mais alto magistrado da Nação”, na consagrada e oca expressão, a deveria ter chamado e dito: A Senhora até pode ir à televisão antes de ao Parlamento mas, se insistir, fá-lo-á na qualidade de ex-PGR. E se o Presidente para tanto não tem poderes (não sei, e não me dou ao trabalho de escabichar) deveria usar da sua autoridade e dar também ele uma entrevista, explicando os rudimentos do papel que, constitucional e legalmente, tem aquela magistratura.
É certo que a opinião pública respeita bastante quem tem por missão perseguir criminosos, e menos os eleitos para legislar, dos quais suspeita generalizadamente, e mais ainda quando são governantes.
Mas há aqui um equívoco: A dignidade do Parlamento não é apenas a soma da dignidade de cada um dos deputados porque o órgão é o único, além do PR (e das câmaras municipais e parlamentos regionais, mas que não detêm poderes de soberania) que resulta de uma escolha directa do eleitorado, o que não se modifica quer a sua composição seja assim ou assado. Aqui ao leme sou mais do que eu, disse o Poeta.
Quase metade do eleitorado não se dá normalmente ao trabalho de votar, exercendo o direito de não dizer coisa alguma. Isto é assim porque os eleitores abstencionistas constatam que um voto isolado (o de cada um deles) não influenciaria nada, infeliz circunstância que lhes fere a vaidade; e porque muitos acham que “isto” não tem conserto porque a sociedade que desejariam não é a que o eleitorado subscreve.
Há várias alternativas à democracia, tantas quantos os tipos de ditadura. E portanto os cépticos estão disponíveis, mais do que os outros, para acreditar em poderes isentos da podridão da luta partidária, como se as paixões que nos afligem a todos poupassem um grupo, imune a elas por definição. Divina, no caso, porque derivada de escolha popular é que não é.
Ora ora, exageros retóricos: onde estão os poderes do MP se certas decisões, nomeadamente as privadoras de liberdade, têm de ser convalidadas por juízes de instrução, e as acusações apreciadas em tribunal por juízes na verdadeira acepção da palavra?
Estão nas consequências e nos prazos: Quando se aceita pacificamente que as prisões preventivas excedam o prazo legal sem um estremecimento de indignação, ou quando o julgamento venha a desaguar em absolvição por falta de provas sem que haja penalização de carreiras por inépcia acusatória; quando, debaixo do chapéu das necessidades de investigação, se escutam personalidades anos a fio (porque, se não são desonestos, o que é facto é que o parecem, e depois às tantas até têm substâncias ilícitas em casa); quando vazam para a opinião pública factos alegados que por si destroem reputações sem que num prazo razoável daí decorram acusações das quais os visados se possam defender no lugar indicado, que é o tribunal; ou quando se influenciam decisivamente processos eleitorais com base em suspeitas que deviam estar confinadas ao âmbito da investigação (como o célebre parágrafo do comunicado desta senhora PGR): do que estamos a falar é de uma corporação que se julga no direito de escavacar reputações em nome dos vagares do seu modo de funcionamento, opaco por necessidade e inimputável porque lho consentem.
Consentem porquê? Por cobardia e oportunismo. Cobardia do poder político perante uma opinião pública que interpretará toda a limitação dos poderes do MP como cedência aos interesses ocultos de quem detém o poder de falsear a concorrência e de se enriquecer ilegitimamente, caminho que favoreceria fatalmente o tribuno Ventura, campeão, na sua shinning armour, da tese de que é melhor grelhar uns inocentes do que deixar criminosos à solta, com isso trazendo a Justiça para a rua e os tascos.
E oportunismo de não poucos corifeus do espaço mais lúcido do espectro político, que calha ser o meu, que constatando que quem está ao lume são sobretudo próceres do poder que temos tido, isto é, socialistas, e cegos pela aversão a tais espécimes, acreditam que é uma ideia razoável aceitar o exercício de poderes demasiado latos por uma categoria de empregados do Estado às qual se concedem poderes majestáticos. Sem curar de que em todos os meandros, opiniões, declarações e posições há sempre um ausente, que é o cidadão anónimo que por uma razão ou outra se vê envolvido com o MP. O qual, se assim trata quem pode, e tem bons advogados, e apoiantes e detractores na comunicação social e nas redes, o que não fará a quem não tenha nada disso?
E então, a entrevista? Tivesse a Senhora Procuradora-Geral já ido ao Parlamento, como deveria, e lá dito as mesmas coisas que disse na tv, e com gosto me dedicaria a desmontar os raciocínios capciosos, a irrefragável sobranceria e a desnoção do que deveria ser o seu papel.
Dispenso-me porém dessa corveia: já me basta explicar porque esteve onde não devia, sem que me obrigue a perorar sobre as suficiências com que preopinou.