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Delito de Opinião

A derrota do jornalismo

Pedro Correia, 30.10.18

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Durante meses, andaram a contar-nos a história mutilada, a história incompleta, a história que nos deixou cegos, surdos e quase mudos sobre a verdadeira situação do Brasil.

Forneceram-nos um quadro previsível, dicotómico, com as etiquetas todas no seu lugar. Omitindo o desastre social, económico e político em que a quarta maior democracia do globo havia mergulhado.

O jornalismo genuíno - aquele que parte para cada história de olhos bem abertos, sem catecismos, deixando os preconceitos fechados à chave numa gaveta doméstica - voltou a ser menosprezado. Desta vez na eleição presidencial brasileira.

 

Como podia um "fascista", capitão na reserva, obscura personagem de terceiro plano na hierarquia parlamentar de Brasília, ascender ao Palácio da Alvorada?

Seria imaginável o país do samba e do Carnaval amanhecer "fascista"?

Impossível, claro. A "lógica dos acontecimentos", condimentada pelo determinismo histórico e pela militância ideológica em trincheiras de luta entre o mal e o bem, contaminou o relato factual.

O jornalismo foi substituído, semanas a fio, meses a fio, pela rotulagem rápida do pronto-a-pensar politicamente correcto. Não houve histórias com gente dentro, apenas focos de propaganda política. E nem era preciso rumar ao outro lado do Atlântico: bastava falar com os novos imigrantes brasileiros que se têm fixado em Portugal: são já 80 mil, formando aquela que é, de longe, a maior comunidade estrangeira no nosso país.

Bastava perguntar-lhes por que motivo fizeram as malas e vieram.

 

O "Lulinha paz e amor", que tirou da miséria 20 milhões de brasileiros durante o primeiro mandato, na sequência das medidas iniciadas por Fernando Henrique Cardoso, prevaleceu nos relatos que nos foram chegando.

Esquecendo tudo o resto, que compõe o retrato alarmante do Brasil actual: mais de meio milhão de homicídios cometidos na última década (uma pessoa assassinada a cada nove minutos), impunes em 90% dos casos; a maior recessão de que há memória, ocorrida em 2014; inflação que quase atingiu dois dígitos; um gigantesco cortejo de 13,4 milhões de desempregados.

Esquecendo os escândalos do Mensalão e do Lava Jato.

Esquecendo que o Partido dos Trabalhadores, de Lula da Silva e Dilma Roussef, com os seus aliados no Congresso, montou gigantescos mecanismos de corrupção, alicerçados na construtora Odebrecht, a maior empreiteira da América Latina, e na empresa pública Petrobras, contaminada até ao tutano pelos novos ricos sedentos de dinheiro fácil, protagonistas de inúmeros crimes de desvio e lavagem de dinheiro enquanto o país empobrecia.

Vejam uma imprescindível série da Netflix, chamada O Mecanismo. Aprendem mais sobre o Brasil contemporâneo do que lendo ou escutando quase todas as inanidades que o discurso jornalístico corrente tem produzido sobre o mesmo tema.

 

Os "activistas políticos" travestidos de repórteres que nos andaram a contar histórias de embalar perderam de repente o fio discursivo ao perceberem que o tal obscuro capitão na reserva (que poucos ou nenhuns procuraram sequer entrevistar) havia afinal recolhido 58 milhões de votos.

Nada aprenderam com a eleição de Donald Trump. Nada aprenderam com o Brexit. Nada aprenderam com as rápidas mutações políticas ocorridas em Itália. São permanentemente surpreendidos pelos acontecimentos porque têm andado sempre a contar-nos a história errada - uma história que confunde as "boas intenções" com o iniludível peso dos factos.

 

Fernando Haddad, o representante de Lula, foi claramente derrotado nas presidenciais brasileiras. Mas não ficou isolado: o jornalismo acaba de sofrer também uma pesada derrota. Mais uma.

Receio que esteja longe de ser a última.

9 comentários

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    Pedro Correia 30.10.2018

    Recomendo vivamente essa série a todos quantos ainda não a viram, Maria Dulce.
    Infelizmente, esta ficção reflecte muito melhor a realidade brasileira do que a esmagadora maioria dos relatos jornalísticos, que confundiram militância política com reportagem séria.
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    Pedro 30.10.2018

    É questão não é a urgência de resolver o problema do Brasil. É se a estratégia de Bolsonaro é a indicada.

    "Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente." (1999)

    Tem isto alguma lógica?
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    Pedro Correia 30.10.2018

    Interessa-me pouco analisar frases do século passado, eventualmente retiradas do contexto.
    Teria muito mais interesse ouvir o que ele disse ao longo deste ano eleitoral. Infelizmente, salvo erro, nem um só órgão de informação português tomou a iniciativa de entrevistá-lo.
    É também nisto que penso ao aludir à derrota do jornalismo.
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    Sarin 30.10.2018

    Mas perante a possibilidade de debate a dois com Haddad, Bolsonaro demonstrou não estar interessado. No caso, terá sido uma boa estratégia, esta de evitar ser confrontado com questões incómodas.


    A produção de notícias e artigos de opinião foi prolixa e apaixonada, fruto da confusão que muitos formados em jornalismo fazem entre informação e opinião e talvez também da indiferenciação na leitura por quem os leu; mas não me parece que os dados tenham sido omitidos. Soterrados entre opiniões e interpretações, sim, concordo.

    Já sobre as leituras sobre votos no fascismo, discordo: as pessoas votaram no único candidato que, sendo quase desconhecido porque inactivo, não estava contaminado por proximidade. Que Bolsonaro é fascista, não tenho dúvida - mas até os candidatos ao senado que integram a sua base de apoio dizem em entrevista frases como "ele não pensa isso, apenas não sabe se exprimir" ou "isso é só frase de campanha, ele não deseja fazer isso"... ouvido numa entrevista na TSF, lido na BC e na Globo, visto em entrevistas de rua. A maioria não votou nas políticas de Bolsonaro, votou primeiro no corte total com o PT e depois na promessa de segurança nas ruas. O resto não os ouvi mencionar, aos seus votantes.
    Aguardo, com a esperança de que a segurança prometida lhes não apresente uma factura mais alta do que a que já pagam.

    E com a esperança de que o jornalismo se reencontre. Já vai ficando tarde para voltar a ser um dos pilares da democracia, para recuperar dessa coisa amorfa que se alimenta de sangue e vómito.
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    Pedro 31.10.2018

    Sarin não o vejo como fascista - não tem um corpo paramilitar e não advoga um política de expansão agressiva territorial. Julgo que é mais um proto-ditador
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    Sarin 31.10.2018

    Nem só de expansionismo vive o fascismo, Pedro.
    Ouviste as notícias das retiradas das faixas nas universidades? Foi a polícia, sem ordem de tribunais. Se isto não é um corpo paramilitar às ordens, disfarçam muito bem.
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    Pedro 31.10.2018

    No Estado Novo tinhas as mesmas coisas, e não era um regime fascista.

    No fascismo tens uma glorificação pelo passado, mítico, da virtude de caserna, militarista, com guarda pretoriana ao líder, teorias de raça pseudocientíficas, uma ideologia anticapitalista e anti burguesa, anti-financeirista (ligadas à glorificação da passado mítico - ariano, romano, etc)….isso não existe no discurso de Bolsonaro...ele é mais um Savonarola.
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    Sarin 31.10.2018

    Teorias de raças pseudocientíficas? Ok, Primo de Rivera e Franco não partilhavam essa teoria... não eram fascistas?

    Teorias anticapitaistas - discordo abertamente! Teorias capitalistas, sim, mas um capital centralizado, nada liberalizado.


    Tirando a teoria da raça (pretalhada não é sequer raça, segundo parece por alguns seus discursos antigos), encontras tudo em Bolsonaro. O passado mítico começa logo na glorificação do Regime Militar que não foi Ditadura, segue-se a guarda pretoriana infiltrada na polícia que age ao arrepio de tribunais, continuas pelas virtudes da caserna que o capitão sempre enalteceu, e segues por aí fora - a necessidade da força, os inimigos internos e externos e as conspirações, a repressão da sexualidade, o discurso limitado a chavões, a intolerância às ideias críticas, o messianismo.... caramba, está lá tudo, Pedro!
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