A CPLP e a Ucrânia
A votação na ONU em 2 de Março da resolução avessa à invasão russa da Ucrânia foi um assinalável sucesso (141 países a favor, 5 contra, 35 abstenções, 12 ausências) - independentemente de outras considerações mais analíticas, aludindo ao efeito efectivo destas resoluções, ao peso relativo dos países que surgiram com diferentes posições, à evolução do sentido de voto de países e/ou regiões, etc. E, acima de tudo, sobre o que o voto desta resolução significa efectivamente para cada país.
Mas há outra dimensão analítica que poderá ser interessante, o da heterogeneidade das decisões interna a cada comunidade de países. O que é normal, pois cada país decide segundo os seus interesses nacionais, suas relações bilaterais preferenciais, e também porque é comum que países pertençam a diferentes comunidades internacionais. E dessa heterogeneidade interna a cada "bloco" é exemplo muito significativo que entre os 16 países da SADC, 7 tenham votado favoravelmente, 8 se abstiveram e o Eswatini não tenha expressado a sua opção.
Neste âmbito é interessante olhar para o que aconteceu entre os países da CPLP. Entre os seus 9 países, 4 dessolidarizaram-se com esta denúncia da negação russa à auto-determinação ucraniana - Angola, Guiné Equatorial e Moçambique abstiveram-se, a Guiné-Bissau eximiu-se à votação. E nisto é preciso contar com o actual percurso brasileiro, pois sendo certo que se esse país votou favoravelmente a (de facto) simbólica condenação, o seu presidente Bolsonaro não só acaba de visitar, efusivamente, a Rússia como já depois do início da invasão reiterou a "neutralidade" do seu país face a esta situação.
Isto é muito significativo pois a CPLP tem como primeiro objectivo geral (Artigo 4º.1.a.) "A concertação político-diplomática entre os seus membros em matéria de relações internacionais, nomeadamente para o reforço da sua presença nos fora internacionais". Repito o que acima disse, é normal a existência de diferentes estratégias nacionais dentro de cada "comunidade de países", e assim este facto não justifica a armadilha das hipérboles "críticas" (o popularucho "aquilo não serve para nada").
É certo que esta guerra é de importância global, pelo peso mundial da Rússia, pelo que deixa (ante?)ver sobre os seus propósitos futuros, com uma estruturante política bélica em curso. E pelo "efeito dominó" que poderá ter noutras regiões, um reanimar do paradigma do nacionalismo de base "etno-racial", agora tão proclamado pelo presidente Putin - e tão magnificamente denunciado pelo embaixador queniano na ONU -, sempre presente mas quantas vezes adormecido ou, pelo menos, contido. Ou seja, esta votação - e até exactamente pelo seu carácter mais simbólico do que executivo - foi um dos momentos internacionais mais marcantes desde o surgimento da CPLP.
Ainda assim, e apesar dessa preocupante relevância mundial desta guerra, é normal que entre os países da CPLP ela seja sentida em Portugal com particular ansiedade: pela (relativa) proximidade geográfica; pela proximidade política, dada a integração na U.E. e na NATO; e pela pertença à não tão fluida assim (apesar de tantas críticas e negações, que se querem ilegitimadoras) a uma "identidade europeia". Nesse sentido, e sem ter em conta adesões mais ou menos ideológicas à Carta das Nações Unidas ou a um pacificismo, é normal que estas votações dos países da CPLP sejam mais descoroçoantes para os portugueses do que para os cidadãos dos outros países.
E é neste relativo desânimo - ainda que compreendendo as múltiplas influências que imprimem as legítimas estratégias de política externa de cada país - que se torna normal interrogar qual o estado da CPLP, que tipo de organicidade se conseguiu conquistar, por fluida e até conflitual que seja. Ou seja, e simplesmente, qual a consecução do seu primeiro "Objectivo Geral". Pois face a uma situação destas as lideranças austrais nada se abstraem. Mas abstêm-se. Ou retraem-se.
Seria muito redutor imputar as causas desta situação à acção de Portugal. Mas ainda assim, como portugueses olhando a tão celebrada CPLP, podemos interrogar-nos sobre o que isto representa. Sabendo que a diplomacia portuguesa é de qualidade, mostra-o o percurso internacional do país nesta II República, talvez nos possamos interrogar se a política externa portuguesa o é. E talvez este estado da CPLP possa contribuir para esse ajuizar.
Mas com toda a certeza permite, desde já, uma conclusão, ainda que de relevância muito secundária: a política externa portuguesa não ganha grande coisa com dancetaria tropical e banhos de mar em águas tépidas do seu responsável máximo. Por mais que as nossas imprensa e "opinião pública" se regozijem com esses devaneios. É preciso muito mais.