A coerência é um factor de sucesso
Esta manhã, ao ler o DN, confesso que fiquei chocado com a prosa do articulista. Tratando-se de um texto publicado na imprensa portuguesa, admiti que seria possível, enquanto leitor do jornal, inserir uma pequena resposta, na secção própria do correio dos leitores. Tal não se mostrou viável. Assim, deixo aqui, num espaço virtual de Portugal, e sujeito às suas leis, o que me pareceu pertinente dizer aos leitores do Diário de Notícias:
"O Dr. Álvaro Rodrigues, ilustre advogado de Macau e membro da Direcção da Associação dos Advogados de Macau, assinou um artigo de opinião no DN. Fico satisfeito por ver a sua lúcida aparição e dou-lhe, por isso mesmo, os parabéns. Bem-vindo ao debate.
O Dr. Álvaro Rodrigues não é publicamente conhecido pelas suas opiniões políticas ou por ter qualquer espécie de intervenção cívica. Terá, quando muito, uma intervenção de cariz mais corporativo, visto que é, talvez há duas décadas, membro da direcção da AAM. Não o critico por isso, nem pela ausência de intervenção ou participação pública opinativa nas questões sociais e políticas da RAEM. Cada um é como é.
Mas o Dr. Álvaro Rodrigues resolveu intervir, curiosamente, num jornal diário lisboeta e logo na mesma altura em que o Chefe do Executivo da RAEM está em Portugal. Ele não escreve em Macau, onde escasseia a participação, a intervenção e o debate crítico, e não é por não o deixarem. Escreve agora em Lisboa. Há coincidências que parecem coisas de bruxas.
Gostaria de esclarecer que tenho, genuinamente, o maior apreço pelo Dr. Álvaro Rodrigues, pessoa com quem regularmente convivo, que foi estagiário da AAM quando eu integrei a sua direcção em 1995. É um homem trabalhador, com indiscutíveis qualidades, que tem a virtude de falar cantonense, conciliador, com um excelente sentido de humor e um verdadeiro ginasta.
Posto isto, quero dizer, antes de mais, que concordo plenamente com o Álvaro, permitam-me que assim o trate, pois que lá fora é pelo nome, e não pelos títulos, que nos tratamos, quando afirma que “as opiniões são de quem as emite” e que ele não está à espera de que concordem “acriticamente” com ele. Ainda bem, porque eu não o faria e isso deixa-me à-vontade para dialogar publicamente com ele.
Não sei quando o Álvaro começou a acompanhar a aplicação da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau, mas concordo com ele quando escreve que o Tratado tem sido “amplamente respeitado”. Isso mesmo o disse eu próprio há dias no Público (18/04/2023).
O problema é que o Álvaro refere alguns “incidentes pelo meio, por todos reconhecidos”, esquecendo-se de dizer quais e por quem foi reconhecido. Pelo Chefe do Executivo? Pelo Gabinete de Ligação? Pelo Comissariado do MNE? Pelos tribunais? Pela AAM? Por quem?
De igual modo, se as generalizações devem ser evitáveis, e estou de acordo com isso, não será menos certo que teria sido de todo o interesse que nos tivesse esclarecido quais as decisões a nível penal – em que processos? – que se afastaram da matriz que enforma o nosso Direito (português, presumo), até porque nem todos os processos são iguais e ele, com os seus conhecimentos e a clientela que tem poderia tê-lo esclarecido, visto que me parece haver uma recorrência relativamente a um certo tipo de processos e de matérias, diria incómodas, que têm sido levadas nos últimos anos à apreciação dos tribunais. E terá sido só no penal? E no cível? E no administrativo?
Também não sei quais as matérias de direitos fundamentais a que o Álvaro se refere quando escreve que foram “em determinada ocasião restringidos em função de outros direitos fundamentais”. É certo que refere a limitação da liberdade de deslocação entre concelhos, em Portugal, durante a pandemia, mas não consta que em nenhum concelho essas restrições tivessem durado quase 3 (três anos) e no regresso as pessoas ficassem sujeitas a quarentenas de 3 semanas, ou mais, mesmo não tendo contraído Covid e estando com todas as doses disponíveis de vacinas.
Em rigor, o Álvaro opina sem nunca dizer se está de acordo, ou não, com o que vai referindo.
E o Álvaro também tem razão quando diz que há juízes independentes, que não recebem ordens ou instruções, e exercem o poder judicial de forma séria e independente. Sobre isso, pergunto apenas se ao longo dos tais 23 anos, o Álvaro foi às cerimónias de abertura do ano judicial? E se ouvia os discursos do Dr. Neto Valente, que foi até há pouco o “eterno” presidente da AAM, agora “apeado” para dar lugar a uma nova direcção, de cariz mais patriótico, mas de que o Álvaro continua a fazer parte. Assinale-se que um dos primeiros actos públicos foi visitar a exposição dedicada à Segurança Nacional, rejubilando com o evento, e estou certo que a AAM continuará a distribuir exemplares, como fez na direcção anterior, de “A Governança da China”?
Como ele bem sabe, só posso subscrever e manifestar o meu acordo, de novo, quando refere a necessidade de haver advogados independentes, livres e isentos, servidores do Direito e da Justiça, dignos da honra e da responsabilidade que lhe são inerentes.
Só que daí a aceitar tudo o que se tem passado e vê-lo como “reflexo natural da evolução de uma sociedade com as características da nossa” (quais?), hélas!, sem nada mais dizer, é pouco consentâneo com a existência de uma advocacia com advogados com as características que sublinha.
Ninguém queria que “tudo se mantivesse como estava antes de 1999 e a transição não fosse além da mudança de uma bandeira por outra”, até porque antes de 1999 muita coisa estava mal. Embora, também nesse tempo, não me recordo de saber, de ouvir ou de ler qualquer crítica ou queixume do articulista e advogado Álvaro Rodrigues, ou dos seus sócios, ao que se estava a passar.
Todavia, não posso deixar de notar o alinhamento de pontos de vista entre o Dr. Álvaro Rodrigues e Kevin Ho.
Isso e aquilo que deveria ter sido esclarecido aos leitores do DN: que o Dr. Kevin Ho, presidente da KNJ Investments Limited, é só o maior accionista da Global Media, dona do JN e do DN, o jornal onde ele escreveu. E que, para além de sobrinho do primeiro Chefe do Executivo, administrador do Banco da família, presidente, sócio e accionista de várias empresas, investidor imobiliário e da Agência Lusa, com 23,36%, é deputado em Pequim, e que, a fazer fé nas notícias publicadas no jornal HojeMacau, conhecido pela sua distância em relação às autoridades e às posições chinesas, onde o Álvaro poderia escrever com regularidade, tem dito coisas muito parecidas com as que foram vertidas no artigo do DN.
Há dias, alguém disse que não havia quaisquer limitações ao direito de manifestação, e que o que aconteceu foi serem criados “empecilhos para que acontecessem” [limitações]. Com alguns direitos fundamentais foi exactamente o mesmo. Não os do Álvaro.
Na verdade, o maior accionista do DN, onde o Álvaro opinou, considera que “nos últimos dois anos foi estabelecida uma lei da segurança nacional, mas a liberdade de expressão não foi afectada”. Como então esclareceu, “posso falar com qualquer pessoa sobre as políticas do Governo da China e do Partido Comunista Chinês (PCC)”, pois o que mudou “é que se tornou ilegal exigir a independência ou a queda do PCC”.
É claro que essa não é limitação alguma ao exercício do direito de opinião. É um constrangimento para que aconteça. Já em Portugal, e em Cabo Verde, todos os dias aparece alguém a pedir a queda do Governo e a dizer cobras e lagartos do Partido Socialista e dos outros sem que nada lhes aconteça.
Fiquei só sem perceber se o Álvaro comunga da perspectiva de Kevin Ho quanto à recusa das autoridades, ao contrário do que era norma, em autorizar a vigília do 4 de Junho, considerando que os países ocidentais não percebem a China.
Admito que sim, E calculo que a intervenção do Álvaro no DN se tenha também inserido na vontade de “proteger o jornalismo”, o rigor da informação, e ajudar a perceber a China, o que Kevin Ho se tem esforçado bastante, até em relação ao direito à greve, assunto menor, tal como o da especulação imobiliária, que aquele diz não existir em Macau, ou da sua relação com outros parceiros que lhe têm causado alguns incómodos.
Enfim, sem querer ir mais longe, também diria que há duas maneiras de estar na advocacia. Uma delas é a do Álvaro. E esta não é uma crítica. Nem todos conseguem ser advogados livres, isentos e independentes como ele. E posso garantir que bons ginastas, com a sua idade, a advogarem, com a casa cheia de empresários privados, entidades públicas e aparentadas(1), na direcção da AAM e a escreverem no DN, ainda são menos. Essa é uma prova do sucesso do desenvolvimento de Macau. Bem-haja.
P.S. Sem querer lembrei-me desta pérola, que mostra o caso de sucesso e a seriedade do texto do Dr. Álvaro Rodrigues no DN: “They say everywhere that Portuguese are part of Macau and are always welcome, part of the history. In fact, what they are doing is not what they are saying.”
(1) Incluindo instituições misericordiosas e afins.