A censura do censurável
A moda de reescrever a história não é nova, mas tem tido recentemente novos episódios. Os registos históricos podem por vezes ser, e são, incómodos por nos mostrarem a forma como no passado decidimos, como nos relacionamos, o que dissemos, e no geral o que fizemos.
A excelência dos textos de Mark Twain, a forma como denuncia a desumanidade do tratamento a que escravos africanos e índios eram sujeitos, nada pesa ao lado do uso da palavra “nigger”.
Será que, na actualidade, entenderíamos a dimensão dos abusos cometidos se o autor tivesse evitado as palavras que à época eram banais? Será crime, relatar ou romancear um crime?
O britânico The Guardian condena a censura a que as obras de Mark Twain estão a ser sujeitas, mas ainda assim, refere-se à palavra “nigger” como “n-word”.
Os Maias de Eça de Queirós já foram também usados como rampa para uma palerma que se está a lançar na promissora carreira de denunciadora de serviço. Já todos ouvimos falar nisso, e a jogada correu-lhe tão bem que não precisa do tráfego adicional que um link meu lhe poderia proporcionar.
Terminei há pouco tempo a leitura dos Avieiros de Alves Redol, e de entre outras impressões, registo a importância da imortalidade literária garantida por este livro. Além das terríveis condições em que estes ciganos do rio Tejo tentavam sobreviver, não faltam no livro referências à violência doméstica.
Numa conversa entre iguais, José da Vala, o marido da Olinda Carramilo é desafiado:
- “Aposto que nunca lhe deste um murro...
Hesitou o da Vala:
- Quantas vezes!... Até mia. Isto de mulheres é pão na canhota e porrada na outra, pois então! Lá no barco falta tudo menos isso.
- Ena, que grande tainha com barbas!”
Quando José da Vala chega de uma vacada, ressacado, fora de horas e com a camisa rasgada, Olinda confronta-o com a situação:
- “Como vens Tóino!
- Como venho? Essa agora! Que falas são essas?!... O homem sou eu ouviste?
Ela saltou para a praia a querer ampará-lo, agarrou-lhe o braço, mas ele sacudiu-a; olhou depois a mancha cerrada de vultos e correu para a mulher, numa corrida curta meio tombada, que ela segurou com o corpo.
Tóino da Vala recuou um passo para lhe atirar uma punhada à cara. Ela só baixou a cabeça, lembrando-se do que a sogra lhe dissera; esperou pelo resto, outra e mais outra, estava ali para apanhar o que ele quisesse, só punha a condição de não chorar, embora o coração lhe sangrasse de vergonha.
Interveio o João Marujo para afastá-lo, mas ela sacudiu-o.
- Vocês agora viram todos o homem que é ele – disse Olinda com raiva – Deixa lá o homem bater à vontade na mulher que lhe pertence.”
Existem outras passagens onde o autor mostra quão cruel era o mundo dos avieiros, que construiam os seus barracos com tábuas apanhadas na corrente e que apenas podiam ocupar o solo arenoso, que o rio Tejo, no intervalo entre as cheias, lhes emprestava.
Da mesma forma que ninguém consegue encontrar nenhum gáudio pela violência da escravatura em Mark Twain, também não o pode fazer com a violência conjugal nesta obra de Alves Redol.
Ambos produziram literatura a partir da realidade que os rodeava, e graças ao que escreveram é-nos hoje possível saber como se viveu no passado e até imaginar o que infelizmente continua a acontecer.
A censura de obras, ou parte delas, no que respeita a passagens do que hoje consideramos inaceitável, é também ela inaceitável. Corrigir por omissão impede, mais do que qualquer outra coisa, de que nos agoniemos com práticas com que nos devemos agoniar. Omiti-las será a melhor forma de permitir que perdurarem.

