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Delito de Opinião

A causa é justa

José Meireles Graça, 04.04.22

 

Confesso: houve muitos discursos no Congresso do CDS, no qual estive como convidado, que não ouvi.

Não por sobranceria: para muito militante é a oportunidade de se dirigirem aos seus camaradas (não gosto de “colegas”, que é paleio de putas, digo-o sem desprezo nem por elas nem pela profissão, nem de “companheiros”, que é coisa de sociais-democratas, t’arrenego) e significar que o partido devia fazer assim e assado, e o país deveria ir por aqui e por ali, e tudo isso em poucos minutos. Tanto pior se isto atira a duração pela noite dentro – a alternativa dos discursos alinhados e a coreografia severamente controlada não tem lugar no CDS e ainda bem.

Ouviria mais se se pudesse fumar lá dentro e as cadeiras não fizessem doer o rabo, mas sem ir ao extremo de me coibir de vir arejar – cá fora, ocasionalmente, encontro um ou outro amigo que aprecia, como eu, uma boa desconversa, e lá dentro a maior parte dos discursos são, fatalmente, chatos, faz parte.

À chegada, os convidados pagavam 20 Euros (os congressistas mais) e achei muito bem: se o partido está falido e já não tem subvenções públicas, só quem com ele simpatiza o pode aguentar. Incidentalmente, um congressista insurgiu-se contra a punção (portuguesmente: somos completamente a favor de sacrifícios desde que sejam outros a fazê-los), mas pouca gente aplaudiu.

Coisa curiosa e, creio, inovadora: um grande pavilhão cheio de gente que não tem, pela sua esmagadora maioria, esperança de conquistar ou manter lugares, e que paga para estar ali a defender, ou contribuir para a defesa, de uma certa ideia de país.

O CDS é o CDS e as suas três famílias apareceram, veementes, a liberal muito mal representada por vários dos seus corifeus ou terem abandonado o partido ou se terem posto à margem.

O discurso do líder cessante foi lamentável, por não ter resistido a um acertar de contas: por muitas razões de queixa que tenha da oposição interna – e mais surda ou menos surda nunca ela cessou de existir no partido – e difíceis as circunstâncias objectivas em que começou e viveu o seu mandato, sair com elegância implicava reconhecer esta verdade simples: perdeu nas urnas e explicar a derrota como uma consequência da oposição interna é o mesmo que dizer que o eleitor, porque é burro, não levou isso em conta. Francisco Rodrigues dos Santos, que teve assinaláveis méritos (recordo o surpreendente desempenho num frente-a-frente com Ventura, por exemplo), nunca deu sinais de perceber o eleitorado do CDS, que sempre julgou ser apenas o que cabe nos limites estreitos de uma democracia-cristã muito feita de proclamações, e muito centrada em questões sociais fracturantes. Nem, num momento crucial da vida do partido, entendeu que recorrer a pretextos jesuítico-jurídicos para se eximir a ir a votos só podia cair mal nos militantes e na opinião pública. É curto. Ademais, no campeonato das indignações sortidas, a fazer as vezes de um estudo cuidado de soluções a apresentar, o espaço já estava razoavelmente preenchido pelo condottiere Ventura.

Outros dirigentes apareceram, carregando na mesma tecla: ai que se os derrotados do Congresso de Aveiro se tivessem mantido calados o resultado eleitoral teria sido outro. E Cristas (a mesma que teve um resultado notável em Lisboa, in illo tempore, e que tirava, nos debates no Parlamento, Costa do sério), e até Portas, também chegaram a levar pela medida grande, este último porque parece que tem influência, e não a deveria ter. A compreensão do problema que representam o Chega! e a IL, ambos pescando no mesmo eleitorado que dantes era, em parte, cativo, foi pouco aflorada.

Este poder deposto vai agora renascer como oposição interna. E está muito bem assim, que isso faz parte da tradição do partido. Espera-se que Nuno Melo, se não conseguir levar água ao seu moinho, não sirva, na hora da despedida, o discurso da vitimização, nem se preocupe excessivamente com o que dizem ou deixam de dizer os defensores da linha justa. Estes tendem a achar que o CDS ideal é o que coincide com as suas ideias, nunca se dando conta que partidos bacteriologicamente puros há dois: o MRPP, que existe como curiosidade, e o PCP que, curiosamente, ainda existe.

Num excelente (como peça de oratória) discurso, Manuel Monteiro repescou os seus cavalos de batalha nacionalista e eurocéptico, a par de um programa económico que incluía coisas discutíveis como a recuperação do aeroporto de Beja, tudo envolto num dedo em riste algo prometeico. O Congresso aplaudiu, entusiástico: a qualidade do discurso, a figura que faz parte da história do partido que serviu e o apoio, algo contrafeito, a Nuno Melo. Eu também: receber condignamente um ex-dirigente é uma obrigação, a boa-fé e integridade da personagem inegável, e do bloco de ideias fixas alguma coisa compro.

Paulo Portas apareceu, de manhã, a horas em que eu ainda meditava no quente. E não deve ter sido pequeno sacrifício vir de Lisboa e regressar no mesmo dia, porque à noite tinha o seu programa habitual na TV. Deve ter achado que devia dar o seu contributo para que não lhe escaqueirassem de vez a herança, e deu.

Nuno Melo tem pela frente uma dificílima tarefa: os liberais dos quatro costados têm a IL, os indignados da democracia e que querem meter todos os parasitas, todos os corruptos, todos os maus condutores, e infiéis aos seus cônjuges, e drogados, e criminosos, na cadeia, o Chega!, de modo que as sobras ficam para o CDS. A gente que julga que o país se pode governar pela encíclica Rerum Novarum não é suficiente, e nada garante que o PSD de Rio, que é um socialista de boas contas, e que por isso afastou o eleitorado que preferiu o original ao sucedâneo, não venha a evoluir para a direita.

Porém. Porém. O sucesso da IL e o do Chega! são, a prazo, o seu insucesso, porque o tempo mostrará que ambos são partidos fatalmente sujeitos às mesmas vicissitudes dos outros, desaparecendo o encanto da novidade; e o PSD clássico, isto é, o albergue espanhol que está na sua natureza, nunca foi incompatível com a existência do CDS. Finalmente, a tribalização do espaço político à direita não é por si incompatível com o sucesso eleitoral e governativo. De modo que o CDS, a senhora madura que já passou por muitos assados, talvez tenha duas ou três coisas a ensinar a essas jovenzinhas cheias de tesão e com uma forte corrente de ar entre as orelhas. Veremos.

Amanhã refilio-me. Desconfio que a quota não será a miséria que era dantes, porque os tempos são outros. Mas a causa é justa.

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