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Delito de Opinião

A Casa da Sabedoria

Zélia Parreira, 18.12.21

A 25 de março de 1805, Frei Manuel do Cenáculo fez registar no seu diário, para memória futura, o acto de ter colocado o primeiro livro nas estantes da “sua livraria”. Iniciava-se, com esse gesto, um caminho de mais de dois séculos para uma biblioteca extraordinária.

O propósito do então Arcebispo de Évora foi nobre e louvável: disponibilizar à cidade e à região o acesso ao saber disponível na época, materializado na sua vasta colecção, compilada ao longo de muitos anos e fruto de uma curiosidade e sede de conhecimento notáveis, próprias de um grande vulto do Iluminismo. Desta generosidade nasceu a Biblioteca Pública de Évora, a primeira “biblioteca pública” – no sentido de serviço público, aberto a toda a comunidade – em Portugal.

De então até aos nossos dias, tem sido incrível a viagem desta Biblioteca. Devassada pelas invasões francesas, enriquecida pelos fundos dos extintos conventos e transferida para a esfera estatal, veio a ser verdadeiramente organizada e a tomar uma forma próxima da que hoje conhecemos pela mão de dois grandes bibliotecários: Joaquim Heliodoro Cunha Rivara e Augusto Filipe Simões. O início do século XX trouxe modificações institucionais. O Gabinete de Curiosidades e a colecção de obras de arte de Cenáculo deram origem ao Museu de Évora e a Biblioteca passava a acolher o então criado Arquivo Distrital, do qual só viria a separar-se em 1997.

É de meados deste século a última obra de ampliação do edifício, com o objectivo de aumentar a capacidade de armazenamento exigida pela designação da BPE como uma das beneficiárias do depósito legal. Desde 1931, a BPE recebe a produção cultural e científica impressa no nosso país e dela faz usufruto em benefício dos seus leitores, através do serviço de leitura pública e empréstimo domiciliário.

Ao contrário das suas congéneres que viram as colecções patrimoniais e de leitura pública serem separadas, dando origem a instituições distintas, a BPE mantém-se una e indivisa, assegurando, numa só entidade, a biblioteca patrimonial herdada de Cenáculo e a leitura pública, alimentada pelas novidades editoriais que nunca param de chegar. Mantém-se igualmente na esfera estatal, enquanto unidade orgânica dependente da Biblioteca Nacional de Portugal, o que atesta bem a sua especificidade e relevância.

Na portaria da Biblioteca cruzam-se quotidianamente famílias com bebés de colo, investigadores eruditos, leitores mais ou menos compulsivos ou consumidores dos jornais diários. O que os move é o mesmo: entender o mundo. Uns descobrem-no através das histórias infantis, outros decifram as intrincadas caligrafias de outros séculos, outros procuram novas visões de um mesmo mundo, enquanto outros procuram estar a par da actualidade. Para todos, a Biblioteca Pública de Évora é uma bússola que os guia no caminho do conhecimento. Porque, como tão bem escreveu Cenáculo, “para se conseguir a sabedoria, nada há de tão útil como uma biblioteca pública”.

Texto originalmente publicado no Jornal Público de 16 dezembro, p. 31

 

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Nas imagens:
Visita de um jardim-de infância; Entrega ao domicílio de livros da colecção de empréstimo;
Entrada no diário de Frei Manuel do Cenáculo, com o registo da colocação do primeiro livro nas estantes;
Primeiro fólio do prólogo da mais antiga cópia conhecida do Esmeraldo de Situ Orbis

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