A carta aberta às televisões e o sindicato dos jornalistas
Será, até estatisticamente, pacífico dizer que as estratégias estatais para enfrentar o Covid-19 neste corrente Inverno foram um fracasso. Estamos confinados, com os custos económicos e sociais gigantescos presentes e futuros. Mas andámos qual "ilha no topo do mundo" devastado pela doença. E isto depois do "milagre que é Portugal", o sucesso (enfim...) da Primavera passada. Um caso óbvio de "tarde piaram" os possidentes. Nesse âmbito o que acontece? Um conjunto de "cidadãos muito respeitáveis" (como são definidos num editorial algo incomodado de um jornal de "referência"), um feixe da "nobreza de toga", por assim dizer, faz uma "Carta Aberta" insurgindo-se contra: a) a extensão dos telejornais (matéria bem antiga, inscrita na concorrência por audiências, como todos sabem); b) o estilo confrontacional dos entrevistadores televisivos (bem, pelo menos já José Sócrates, aquele político que nenhum destes "cidadãos respeitáveis" criticou em carta pública, manipulava pressões políticas, financiamentos públicos e empresariais para afastar alguns destes "confrontacionistas"); c) a tendência para criticar governo e administração pública, que vem sendo dita antipatriótica. E terminam com: d) a denúncia de agendas políticas subterrâneas e inditas, quais "mão invisível", ligadas ao capital privado mas capazes de poluir o serviço estatal, manipuladoras do jornalismo.
Não elaborarei muito sobre este documento. Pois cada cabeça sua sentença. Mas lembrou-me que, em 2018, o peculiar presidente do Sporting Clube de Portugal, dr. Bruno de Carvalho, na efervescência de uma Assembleia-Geral do clube, lançou o repto a associados e adeptos (o agora dito "Universo Sporting") para que não comprassem jornais nem vissem as televisões (ou seja, não lhes consumissem a publicidade). As reacções foram indignadas, em particular da "classe" (ou "corporação") jornalística. O próprio Sindicato de Jornalistas contestou as declarações desse presidente de uma colectividade desportiva considerada instituição de utilidade, dizendo-as um atentado à liberdade de imprensa. Entenda-se bem, o presidente de um clube disse: "não vejam as estações generalistas, não comprem jornais". E o sindicato notou um atentado à liberdade de imprensa. Isabel Nery, da revista Visão e dirigente sindical, anunciou que o Sindicato recorreria às entidades tutelares em defesa dos profissionais do sector, até mesmo juridicamente, soube-se depois. Explicitando que essa é uma posição estrutural do sindicato pois "estamos a falar de desporto mas se estivéssemos a falar de outra coisa qualquer a posição do sindicato seria idêntica".
Passaram três anos. Surge esta posição intrusiva sobre o jornalismo, que intenta cercear e moldar o espírito crítico, de forma muito mais aguda do que fez o peculiar Carvalho havia feito, e até explicitando serem os jornalistas agentes de agendas inditas, falhos de deontologia. Gente galardoada (Carvalho e Horta são prémio APE, Alice Vieira - viúva de Mário Castrim, caramba, a prestar-se a uma coisa destas! - já tem escola com seu nome, Lourenço é oficial superior e Benavente foi governante, como exemplos). Mas muito mais significativo que isso, alguns dos signatários dirigem actualmente instituições estatais ou articuladas com o Estado - que eu saiba pelo menos Bebiano, Silva, Rodrigues e a "directora do Museu do Aljube que não sabe o que é o Gulag", Rato. Ou seja, altos quadros da administração pública e da sociedade civil convocam alterações no livre-arbítrio jornalístico e explicitamente põem em causa deontologia de largos sectores da classe. E exigem a cessação de críticas ao Governo e à Administração Pública. Enquanto especulam sobre interesses clandestinos aos quais os jornalistas estarão algemados.
E que diz o Sindicato dos Jornalistas sobre estas acusações? Nada! Pois o respeitinho pelo governo é muito bonito. Mesmo...