A armadilha
Se pensarmos bem, é provável que tenhamos caído (quase) todos numa monumental armadilha. Chocados, voluntariosos, acabámos a contrapor a valentia dos caricaturistas do Charlie Hebdo à cobardia dos terroristas. Isto é, condenámos a carnificina, mas deixámos que a discussão orbitasse em torno de uma resposta (brutal e intolerável, é certo) a uma provocação. Mas isto implica admitir uma racionalização do comportamento terrorista a partir da conduta da vítima. Da mesma forma que o juiz num processo de violação racionaliza a agressão no momento em que refere que a agredida se vestia de forma provocante. A racionalização opera, num caso e no outro, e ainda que a condenação do comportamento se mantenha sem contemplações, como uma cedência à narrativa do agressor. A verdade, todavia, é que ninguém viola alguém por causa de uma minissaia. Da mesma forma que os terroristas não matam em resposta a provocações. Os que morreram no 11 de Setembro, ou em Londres e Madrid, não tinham provocado ninguém. Dizer que o ataque aconteceu porque foram publicadas as caricaturas implica reconhecer que os agressores teriam vivido pacatos e serenos se o Charlie Hebdo não as tivesse publicado. E isso vale por desenhar, pelo medo, uma mordaça na boca de cada um de nós. Mas o certo é que aqueles ou outros teriam sido atacados, mais tarde ou mais cedo, independentemente de desenharem ou não. Terror é terror e para um terrorista todos os alvos são legítimos. Que o digam os muçulmanos que são vítimas, diariamente, dos mais abjectos comportamentos. Terroristas e violadores não precisam de um motivo. Precisam apenas de um pretexto.