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Delito de Opinião

A viagem do Lancia Dedra (1)

A ideia

Paulo Sousa, 16.09.24

Só fazendo uns telefonemas é que consigo confirmar uma data mais precisa, mas tudo isto ocorreu no início dos anos 90.

Um dos colegas de umas das bolhas das minhas amizades, emigrou para França. Tinha nascido lá, filho da emigração dos anos 60, e depois de alguns anos de trabalho no início da vida adulta quis regressar à procura dos salários que a nossa economia não conseguia pagar. Por não ter querido regressar à pequena vila onde tinha nascido, e onde ainda tinha uns tios, o nosso jovem amigo escolheu ir para os arredores de Paris, onde aterrou no meio dos desenraizados das periferias.

À falta de telemóveis, que existindo para nós era como se ainda não tivessem sido inventados, do contacto quase diário passamos para um silêncio que era apenas interrompido por intermédio do seu irmão, que permaneceu dentro da nossa bolha, e que nos ia pondo a par das últimas novidades.

O grupo era dono de uma razoável criatividade, por vezes enviesada por uma malandragem na fronteira da decência. Hoje, os episódios mais escabrosos é como se nunca tivessem acontecido e não é de nenhum desses que aqui irei abordar. Ciente da fama desta trupe, em casa havia quem me avisasse para ter cuidado com as más companhias, ao que eu, arguto, me justificava dizendo que eu é que era a boa companhia deles. Apesar de muitas derrotas e inúmeros votos vencidos, vezes houve em que isso terá acabado por acontecer.

A ideia surgiu quando o tampo da mesa do café ainda só ia a meio de copos de imperial vazios. Deviam ser por isso umas onze e pouco. Alguém tinha visto que o aluguer de um carro por uma semana, a respectiva gasolina e uma idas ao supermercado, tudo apertadinho e bem espremido, a dividir por cinco, o irmão dele incluído, talvez coubesse nos nossos orçamentos. A ideia foi aprovada por unanimidade e a data foi marcada.

O carro que nos saiu na rifa foi um respeitável Lancia Dedra 1.6 a gasolina com injecção electrónica. Um carro de ministro, como um de nós logo o classificou. E se não fosse de ministro, era no mínimo de gente séria, nunca um carro de bandidos. Talvez por isso, pelo potencial embuste, ficamos logo a adorar o veículo. Não fossem os avanços que o ponteiro do combustível levava sempre que íamos mais de 20 minutos acima dos 160 km/h (chegou-se a pensar que o depósito pudesse estar roto) e teria sido o melhor carro da nossa juventude. Mesmo carregado com cinco marmanjos e respectivas tralhas, em toda a EN1 e IP5, ninguém se atreveu a ultrapassar-nos.

À época isso nem era assunto, mas sendo o único que não fumava, só nas visitas aos baños, ou às toilettes (os nomes foram mudando ao longo da viagem), é que eu conseguia respirar ar propriamente dito. O meu alívio pulmonar era inversamente proporcional à folga de dinheiro que tínhamos para a viagem. O depósito do Dedra 1.6 i.e. era um prodígio da física e, certamente, que o modelo mereceu muitos encómios e saudades entre as monarquias do golfo pérsico.

A Espanha atravessou-se com o entusiasmo de quem vai para a festa. Ao romper da madrugada, passámos a fronteira de Hendaye e já estávamos em França. Desavisados, relaxamos no empenho necessário para vencer aqueles dois mil e tal quilómetros e as paragens tornaram-se mais frequentes e mais longas. O condutor já acusava a falta de descanso. Artista de primeira água ao volante que era, e continua a ser, impressionava-me a sua capacidade de conduzir dezenas de horas sem vacilar, nem baixar a guarda. Quando o último dos quatro passageiros adormecia, desatava a berrar palavrões e a distribuir belinhas. E lá se fazia mais uma paragem e se compravam mais umas tretas para enganar o estômago. A moral já arrastava os pés e os fumadores, com os últimos cigarros SGs incinerados em Espanha, já se tinham virado para os Gauloises. Aquele cheiro rijo do tabaco francês, mesmo com as portas fechadas, já se sentia na rua. Um dos poucos assuntos de conversa andava à volta de se tentar saber quem é que tinha tido aquela ideia de merda de ir para França a conduzir. O almoço em casa hoje ia ser frango assado, dizia um, língua de vaca estufada, respondia o outro. E o ambiente não melhorava.

25 Maravilhas - Edição extra XXV

Paulo Sousa, 15.09.24

25 + 25. El Ateneo Grand Splendid, Argentina (1).jpg

Biblioteca Nacional de Buenos Aires, Argentina

 

Sobre Jorge Luis Borges, que chegou a ser director desta Biblioteca.

“Um amigo do escritor conta que uma vez percorreu a Biblioteca Nacional de Buenos Aires com ele. Borges movia-se entre as prateleiras como o seu próprio habitat. Abraçava cada uma das estantes com o olhar, já quase sem vê-las nitidamente. Sabia onde estava cada livro e, ao abri-lo, encontrava logo a página precisa. Perdendo-se nos corredores forrados de livros, deslizando por entre lugares quase invisíveis, Borges abria caminho na escuridão da biblioteca com a dedicada precisão de um equilibrista.”

O infinito num junco, de Irene Vallejo

Arancini, Granita, Nero d’Avola e Aperol Spritz

Paulo Sousa, 10.09.24

Segundo a cultura popular italiana, em cada espectáculo com bilheteira, existem três tipos de clientes, cuja designação começa pela letra P. Os pagatori, aqueles que pagam pelo respectivo ingresso, os portatori, aqueles que têm consigo um bilhete, que pode ter sido roubado ou falsificado, e os portoghese, aqueles que tentam entrar sem bilhete.

Só alguns anos depois de ter ouvido falar nisto a primeira vez é que soube que esta associação à nossa identidade resultou da embaixada que Dom Manuel enviou, em 1514, ao Papa Leão X para exibir os resultados das suas conquistas e assim engrandecer o seu importância. Os representantes da coroa portuguesa chegaram a Roma ricamente vestidos e com eles traziam inúmeras pedras preciosas, um cavalo persa, uma onça de caça e até um elefante branco, este último, que o Papa viria a adoptar como sua mascote. Tamanha exibição de prestígio e riqueza não passou despercebida naquela Roma do sec. XVI, ao ponto de o Papa ter decretado que naqueles dias os portugueses não teriam de pagar nos espectáculos que ali assistissem.

Ora por abuso de alguns altos dignitários do Estado Português, ora por terceiros que por eles se terão tentado passar (aceito apostas sobre o mais provável), ainda hoje em Itália, quando alguém se tenta esgueirar sem pagar é rotulado de portoghese. A nossa chegada ao Japão tem uma aura bem mais positiva, pois para eles corresponde ao fim da sua Idade Média. Naquilo que somos, cabem todas estas glórias e misérias.

Vem isto ao caso por ter passado uns dias na Sicília. Não vale a pena descrever os detalhes do como, mas às páginas tantas cruzei-me com um avô siciliano que tem dois netos com menos de dois anos. Podia também dizer que tem duas noras, uma napolitana e outra portuguesa e por isso um dos netos é o napolitano e o outro o português. Quis o destino que tivesse chegado o momento em que o Dom Gigio (nome fictício) recebesse nos braços o neto napolitano que corria feliz. O petiz não cabia em si de contente depois de ter roubado o brinquedo ao primo. E assumiu-o. Roubei o carrinho ao primo, disse ele em italiano, a sorrir.

- Oh che piccolo Maradona. – disse ele, enquanto agitava a mão direita, depois de ter juntado a ponta dos dedos. - il portoghese non ha pagato l'auto e il napoletano l'ha rubata.

Todo o incómodo não passava da teatralidade siciliana e que deve terminar num Porca miséria, seguido de risada geral.

Foram uns dias realmente bem passados.

Em termos turísticos, a Sicília é um gigante adormecido. Tem 5 milhões de habitantes e uma área superior aos distritos de Évora, Beja e Faro juntos. Siracusa foi a segunda cidade do mundo grego, ficando então apenas atrás de Atenas. Terra de Arquimedes, do teatro grego, do templo de Apolo e classificada pela Unesco como património da humanidade. A história está presente em toda a ilha. Os vestígios pré-históricos, gregos, romanos, bárbaros, bizantinos, árabes, normandos, italianos (após a unificação), até da operação Husky na Segunda Guerra Mundial, estão por todo o lado.

Para quem gosta de estar de molho na praia, importa registar que no Verão a temperatura média da água na costa jónica, ronda os 26 graus. Para quem, como eu, cresceu a ir à Nazaré que nos dias generosos chega a atingir os 19 graus, pode achar que caiu dentro de uma panela de sopa. O limite de tempo passado dentro do mar (sem ondas e com uma amplitude de marés de 10 cm) depende da respectiva paciência e do nível de engelhar de dedos considerado aceitável. Perante a estupefacção, os locais logo explicam que ali estamos um grau de latitude a sul da Tunísia, o que, após um franzir de sobrancelhas e uma consulta do Google Maps, verificamos ser verdade.

Uma outra impressão resulta da condução pelas estreitas estradas que rondam o Etna. Não podemos esquecer este gigante que chega aos 3300 metros de altitude e que quando lhe apetece expele mais umas toneladas de cinza e interrompe a circulação aérea. A recente actividade deste monstro bloqueou sarjetas e até explica alguma da falta de asseio que se vê por todo o lado. Há também bastante lixo na beira das estradas, e nos locais menos prováveis, muito mais do que por cá se vê, mas, incrivelmente, não vi moscas.

Para ficar a conhecer decentemente esta imensidão de território, é necessário muito mais tempo do que aquele que eu tinha. Por isso, limitei a minha circulação à costa jónica. Além de Catânia, Siracusa, Giardini Naxos, do sopé do Etna, do Dom Gigio, visitei ainda Taormina (turismo de massa, mas ainda assim bastante agradável), Castelmolla e Noto, esta última igualmente classificada pela Unesco pela sua herança barroca. Muito mais ficou para ver. A banda sonora recomendada para a viagem é sempre o álbum do filme O Padrinho de Nino Rota, pelo menos até que os restantes passageiros começarem a ameaçar com uma vendetta. Com a interacção com o Dom Gigio, os mais novos já tinham aprendido a dizer “fanculo questa canzone” e que logo depois o segundo aviso evoluiu para uma proposta irrecusável. Por aqueles lados, aprender a falar inclui um exercício de braços que desafia as tendinites. O napolitano mais novo, quando queria comer já encolhia os ombros, apertava o tórax com os cotovelos e erguia as mãos com a ponta dos dedos todos juntos, enquanto gritava mangiare.

O propósito deste postal não era publicar fotos instagramáveis, mas aqui vão algumas das minhas favoritas.

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NB. O título relata algumas das iguarias produzidas nesta imensa ilha, que apesar de neste momento histórico não permitir contabiliza-la como sendo mais um país no currículo dos viajantes, vale bem a pena visitar.

O valor da TAP e os fundos Airbus

Paulo Sousa, 09.09.24

Apesar de algo arredado do regular bombardeamento noticioso, soube da divulgação do relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre a TAP. Quem for bom a fingir pode tentar convencer-me que o momento escolhido para a sua divulgação, nada tem a ver com a vinda do CEO da Lufthansa a Lisboa para reunir com o Governo, nem com a possibilidade de Maria Luis Albuquerque vir a ser comissária da UE.

Na mesa está a venda de 19,9% do capital da transportadora aérea nacional, por um valor que rondará entre 180 e 200 milhões de euros. Não é necessário nenhuma graduação em finanças para daí concluir que o valor da empresa andará entre os 900 e os 1000 milhões de euros. Todos os portugueses sabem bem, pagaram para saber, que o governo de António Costa entendeu incinerar 3200 milhões de euros dos nossos impostos de forma a salvar as caravelas do nosso destino, e que depois desse "investimento" valem apenas uma terça parte desse valor.

Os que então aplaudiram a nacionalização, gritam agora por ódaguarda que os ditos fundos da Airbus afinal não eram mais do que dinheiro da própria TAP e foi a direita, na sua infinita perfídia, que permitiu tal abuso .

A esses, convido a escutarem a explicação que Lacerda Machado, o ex-BFF de António Costa, deu na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a TAP.

Ainda a entrevista a Marta Temido

Paulo Sousa, 25.08.24

Em Junho passado, postei aqui sobre a desastrosa entrevista que e Marta Temido deu a José Rodrigues dos Santos na RTP. Desde o primeiro momento que o incómodo da própria, e do PS, foi notório e isso terá levado a que uma queixa tenha chegado à ERC, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Digo isto, mas tenho de salvaguardar que não sei de quem foi a iniciativa que levou à recente publicação de uma Deliberação deste órgão regulador.

As primeiras reacções a esta Deliberação apontavam para o alinhamento da ERC no tom condenatório do Partido Socialista. Por sua vez, José Rodrigues dos Santos reagiu num artigo no Observador. A sua resposta não é curta, mas é explicita. De entre os vários pontos destaco a seguinte passagem:

No ponto 44, a ERC diz que teci “comentários laterais a afirmações da entrevistada que se situam no plano da opinião e não no plano da factualidade”. Para sustentar esta afirmação extraordinária, a ERC invoca que, quando a entrevistada afirmou que “alguns (países) têm até situações de tal modo graves que, neste momento, equacionar esta questão levanta uma série de outras questões”, eu terei replicado “por acaso, não creio”.

Fiquei muito espantado com esta citação, porquanto não proferi a declaração que a ERC me atribui. Existe realmente um trecho perto do final em que a entrevistada fala de países candidatos à adesão com “situações de tal modo graves que, neste momento, equacionar esta questão levanta uma série de outras questões”. Ao ouvir isto, eu de facto disse algo, mas, ao contrário do que pretende a ERC, não foi “por acaso, não creio.” O que eu disse foi “o caso da Ucrânia”.

Ou seja, eu não estava a fazer nenhuma réplica, estava só a nomear o caso de um país candidato à adesão à UE que vive de facto uma situação grave, a guerra, ilustrando exactamente o que a entrevistada estava a dizer. Oiça-se a entrevista aqui, a minha frase está aos 19 minutos e 01 segundos.

Que a ERC me atribua, como base para me criticar, declarações que jamais proferi afigura-se-me absolutamente surreal."

Sinto-me dividido em como classificar os responsáveis pela ERC. Entre a singela incompetência e a desonestidade cabeluda, mais simpático que consigo ser, faz-me ficar pela primeira hipótese, mas é óbvio que este minha simpatia me está a induzir em erro.

Gentinha cinzenta

Paulo Sousa, 08.08.24

Raramente têm uma voz afirmativa. Nunca se atreveriam ir contra um qualquer mandante e o respectivo sucesso reside em se conseguirem aproximar de quem aprecie ser bajulado, de lhe ganhar a confiança e, depois disso, caninamente sempre surgir como que aparafusado ao respectivo ombro direito. O que nos grupos de forcados é reservado ao primeira ajuda e na marinharia ao imediato, em algumas organizações, e na política, é deixado para estes emplastros.

Desde que já tenham ouvido a opinião do respectivo mentor, conseguem discorrer sobre qualquer assunto. Depois disso, não vacilam em argumentar e defender o ponto de vista que importa. Quanto mais capazes sejam de o fazer, mais reforços positivos recebem. Reforço positivo é, aliás, uma expressão frequente entre quem se dedica a ensinar habilidades aos cães.

A fé desta gente, os seus princípios, os seus propósitos, assentam na lógica gravitacional da atracção dos corpos celestes. Nunca irem além de ser um reles satélite da vontade de terceiros é a sua sina, que aceitam com grata felicidade.

Se essa for a conveniência do epicentro da respectiva existência, um dia podem ter de ser largados para o seu primeiro voo. E essa é a hora em que a sua natureza é revelada ao mundo. Os que não pertencem ao grupo da “gentinha cinzenta”, seguem viagem e ganham vida própria. Os demais juntam-se aos passarinhos que morrem esbardalhados no sopé dos seus ninhos. E ali ficam, entre penas avulsas e despenteadas e alguns pequenos cocós secos.

Depois da requintada pulhice que, aquando da revelação do caso Russiagate, Fernando Medida fez, ao sacrificar um qualquer funcionário camarário, só os seus emplastros (sim, até as pulgas têm parasitas) é que insistiam em acreditar no seu potencial político.

Nada disto é novidade. A multa a que a Câmara Municipal de Lisboa foi agora condenada a pagar serviu apenas para refrescar as nossas memórias.

Depois de ter sido confrontado com o feito, a besta, por absoluta falta de senso, ainda afirmou que “o aproveitamento político é evidente”.

A verruga cabeluda no nariz da velha, e o sonso

Paulo Sousa, 31.07.24

O Partido Comunista da Venezuela, não sendo o partido de Chaves nem de Maduro, apoiou durante anos o regime chavista e madurista. Após a fraude eleitoral que decorreu no domingo passado, o PCV já veio a público apelar “às forças genuinamente democráticas, populares e patrióticas a unirem forças para defender a vontade do povo venezuelano que foi expressa neste domingo, 28 de Julho, com um clara intenção de mudança política no país”. A declaração completa pode ser lida aqui.

Em contra-mão com a vontade popular estão os regimes facínoras da Rússia, China, Cuba, Síria, Nicarágua, Irão e Coreia do Norte, que já felicitaram o ditador Maduro pela sua “vitória”. Sobre estes não há novidade nem surpresas. O alinhamento do PCP com ditaduras sanguinárias nunca causou nenhum bruaá, mas não deixa de ser curiosa esta fractura entre dois Partidos Comunistas ortodoxos.

Ou até o PC venezuelano já se vendeu ao imperialismo gringo, que ali pretende levar a cabo um "golpe de estado fascista”, ou o PCP é cada vez mais a verruga cabeluda no nariz da velha.

Por cá, assistimos ao sonso do Rui Tavares a tentar formar uma plataforma alargada de esquerda (onde pretende incluir a verruga cabeluda no nariz da velha) para governar o nosso país.

Poderá Tavares privilegiar as suas origens bloquistas e assim defender-se deste eventual incómodo? É possível, mas vamos então ver as vénias e as companhias europeias da recém-eleita Catarina Martins.

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Perante tudo isto, pelo menos no Twitter, Rui Tavares continua em silêncio.

As eleições americanas e a nossa defesa

Paulo Sousa, 26.07.24

A cada eleição presidencial nos EUA é interessante ver como deste lado do Atlântico as opiniões se inflamam e indignam com as escolhas dos americanos. Dadas as diferenças históricas e sociológicas, é comum que sejam os candidatos democratas que reúnem mais apoio entre os europeus, mas a nossa inelegibilidade para ali votar faz com que esse apoio não conte para nada.

À importância global da, ainda, maior potência da actualidade, junta-se a forma como as notícias sobre a eleição presidencial são divulgadas, em que a fronteira entre a informação e o conteúdo de entretenimento, é reduzida à escala milimétrica.

Desde o desmoronamento da União Soviética, mas especialmente desde a ascensão internacional da China, que o antigo Império do Meio passou a ser a potência desafiadora da hegemonia norte-americana. Em resultado disso, o interesse estratégico dos EUA no espaço euro-atlântico diminuiu drasticamente.

Em micro-economia existe o conceito de externalidade, que pode ser negativa ou positiva. Os exemplos são inúmeros, desde as consequências que os habitantes de uma povoação sofrem por ali se instalar uma empresa poluidora (externalidade negativa), até ao benefício substantivo no bairro onde é construída uma esquadra policial. Nenhuma destas ocorrências depende de quem delas beneficia ou por elas é prejudicado.

Durante a segunda metade do século passado, a Europa ocidental beneficiou de uma externalidade positiva, que resultava dos interesses estratégicos dos EUA. Perante tão sólido e duradouro chapéu de chuva, muita da capacidade orçamental dos países europeus foi transferida da defesa para os benefícios sociais à sua população.

É com este enquadramento como pano de fundo que assistimos à mudança geográfica da origem da maior ameaça à hegemonia americana. A sua rotação do espaço euro-atlântico para a ásia-pacifico têm consequências objectivas na segurança europeia. Regressando à comparação anterior, os EUA irão por isso transferir capacidades para outra “esquadra” devolvendo assim aos europeus parte da responsabilidade em assegurar a própria defesa.

Este facto, apesar de bastante anunciado e divulgado, deixou muitos europeus incrédulos e até chocados. No caso de uma vitória de Trump nas próximas eleições, tudo aponta para que a Nato veja reduzida a participação dos EUA, o que coloca enormes desafios aos governos europeus. Essa é a esperança de Putin e de quem lhe suceda.

Trump tem uma enorme capacidade de criar grande repulsa. Isso resulta do seu percurso pessoal e criminal, da sua propensão para o autoritarismo, do seu desprezo antidemocrático pelos adversários, da arrogância sem freio, da sua misoginia e racismo, da sua incapacidade de se rir de uma piada e da sua postura geral de pessoa desagradável. Para os europeus, a toda esta lista, junta-se o receio do anunciado enfraquecimento da Nato.

Mas como quem vota nas eleições norte-americanas são os seus cidadãos, e muitos deles são sociologicamente bastante diferentes da maioria dos europeus, não vale a pena os classificarmos como incultos, rednecks, white trash, ou o que seja, pois nada que façamos irá alterar as suas convicções, nem o seu sentido de voto. Podemos fazer figas, rezas ou desconjuros (os esconjuros já foram feitos pela nata evangélica do GOP) pela vitória da candidata democrata, mas não mais do que isso.

O que importa tomar consciência é que, sem outras mudanças, a nossa segurança actual depende de eleições nas quais não votamos. Sem Putin, ou outro ditador russo que o substitua, tal não seria um assunto de tremenda importância, mas, exactamente por isso, importa tomar consciência que nas próximas décadas a nossa relação com a defesa, o nosso empenho com as forças armadas e a relação com os nossos aliados terá de ser mais intensa e exigente. Os nossos adolescentes devem ser informados que com elevada probabilidade serão chamados para o restabelecimento do SMO. Já aqui falei sobre isso, e até já sabemos que cerca de 47% dos portugueses são favoráveis a esta ideia.

Do resultado das eleições americanas não resultará a necessidade de fazermos mudanças, mas apenas a sua urgência.

Os burros felizes

Paulo Sousa, 03.07.24

A relação da esquerda bem-pensante com os estrangeiros é profundamente bipolar.

Sempre que alguém questiona a política de portas escancaradas do governo anterior, desatam a disparar acusações de xenofobia fascista. Eles sim, são os donos dos bons sentimentos, do humanismo que recebe, que apoia e que abraça. Degredados do mundo, uni-vos e ponde os pés aos caminho. Com os socialistas a mandar, basta assinar (ou pôr o dedo) na manifestação de interesse e automaticamente ganham o direito a poder acampar nos passeios deste país de brando clima e amenos costumes.

Mas, atenção! Têm de ser pobres!

Se tiverem com que comprar uma casa, então o melhor é irem andando lá para os lados de quem vos fez as orelhas. A falta de habitação em Portugal é causada pelos ricos que vêm para cá gozar a reforma. Mundo daqui para fora! (esta é uma expressão que a minha avó usava quando os gatos cruzavam a porta da cozinha atrás do cheiro a sardinhas, e que recordo com saudade). Aliás, não há casas para os jovens por causa dos estrangeiros, pois são eles que alimentam o negócio do Alojamento Local, que está na mão dos patos bravos, dos gananciosos, que deviam lembrar-se que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, que um rico ... ah não, isso é outra história, é a mesma raiz de pensamento mas com outra roupa. Mas, dizia, esses gananciosos que têm a mania que são espertos e que se atrevem a fazer pela vida sem andarem de mão estendida para com o estado. Ah isto agora é assim? Devem pensar que têm a liberdade de ter um negócio próprio! Não foi para isso que se fez Abril!

Daí até desatarem a condicionar o flagelo do AL foi um instantinho. O governo humanista do PS, amigo dos emigrantes pobres, que o que mais apreciam neste rectângulo é a calçada à portuguesa, onde montam as suas tendas, sensível ao pulsar da esquerda bem-pensante, logo se encarregaram de criar zonas de contenção absoluta para poderem acabar com esse tormento que é o AL. Escusado será dizer que esta medida mereceu o aplauso convicto da esquerda mais radical, anti-capitalista e alter-mundista.

Entretanto o governo caiu, o ex-secretário de Estado do Turismo foi eleito presidente da Associação de Hotelaria de Portugal e depois disso soubemos que só em 2019, nas freguesias lisboetas incluídas na designada zona de contenção absoluta ao AL, abriram 41 hotéis, que poderão alojar 3248 turistas e que em termos médios têm uma capacidade de alojamento dez vezes superior ao dos AL na mesma área.

E é neste momento que reparamos que o impensável aconteceu. O grande capital, e a esquerda que o odeia, estiveram unidos no aplauso às mesmas medidas. E é nesta altura que eu me lembro da piada daquele burro que come palha seca, mas se tiver uns óculos com lentes verdes, fica bem mais feliz porque esta lhe passa a saber a erva tenra, e sorrio. É sempre agradável ver um burro feliz.

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Imagem gerada pelo DALL-e

As tasquinhas de Porto de Mós

Paulo Sousa, 30.06.24

Decorrem durante esta semana as festas de São Pedro em Porto de Mós.

Sou do tempo em que estas eram apenas mais umas festas da paróquia, por acaso da sede do concelho. Há mais de duas décadas, as associações do concelho foram convidadas a envolver-se. Depois disso passaram a deslocar-se à vila, onde cada uma explora uma tasca com diversos pratos e petiscos com que se identifica e que assim divulga. Ao longo dos anos, os diferentes executivos foram mantendo o modelo que entrega a sua organização ao Fundo Social dos Funcionários do Município, com o apoio da Câmara. Os anos foram passando e as Tasquinhas de Porto de Mós, as suas marchas na Avenida de Santo António, as vacadas, concertos, folclore, carroceis e toda a parafernália habitual deste dito de festejos, ganharam um impacto regional e as fazem ser o maior acontecimento do concelho.

O normal nestas festas é que me sinta dividido entre o prato de bacalhau da tasca dos Bombeiros do Juncal e o seu concorrente directo da União Recreativa e Desportiva Juncalense, mas com o passar dos anos descobri também a morcela do Alqueidão da Serra, os Tortulhos da Mira de Aire, o Bacalhau Enxixarado das Pedreiras, os caracóis à Brás do Tojal, assim muitos outros pratos, ora serranos, ora da beira do IC2, impossíveis de conhecer numa única edição de 10 dias. Se os donos da constelação da Michelin por aqui passassem, ficariam igualmente fãs.

Motivou este meu postal a minha ida no dia de ontem às tasquinhas, feriado municipal, para abertura das hostilidades. O certame já foi inaugurado na sexta-feira, mas a chuva tentou mostrar alguma independência perante o santo guardião das chaves do céu e dos fenómenos climatéricos e não ajudou. Como o tempo bom estará de regresso durante a semana, quem puder por aqui passar não irá dar por perdida a deslocação.

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foto "O Portomosense"

A poucos metros de mim, na tasca dos Bombeiros do Juncal, jantava também o deputado da IL Mário Amorim Lopes, figura com quem simpatizo. Questionei-me se teria o direito de o interromper no seu repasto para o cumprimentar e felicitar pelo envolvimento na coisa pública. Ele não me conhece de lado nenhum e, por isso, para ele não seria mais que um intruso a querer meter conversa. Estar numa conversa entre família ou amigos, e ser interrompido por um desconhecido que a ele se dirige como se o conhecesse, deve ser estranho. Mário Amorim Lopes não é uma figura pública de primeira grandeza, mas é uma figura pública. Ao ter aceitado ser deputado da nação saberá que isso acarreta uma certa perda do precioso anonimato, de que eu não prescindo. Achei que estávamos por isso numa relação desequilibrada. Nas festas da terra dele eu poderei fazer o que entender, beber até cair ou dar um pontapé num gato, que não serei mais do que um tipo com os copos ou com mau feitio. O mesmo não se passa com ele, ou com outro que partilhe da sua condição de figura pública. E não é que beber até cair ou agredir um gato seja algo entusiasmante, mas recorro a estes exemplos apenas para explanar a ideia.

Como acabamos de comer quase ao mesmo tempo, foi já fora da tasca que então o abordei num rápido cumprimento em que o parabenizei e lhe agradeci pela generosidade de ter abdicado do seu anonimato pelo benefício comum. Reagiu com cordialidade e simpatia, mas com a compreensível surpresa (quase desconforto) de “quem é que é este tipo, que não conheço de lado nenhum”, confirmando assim o que acima explanei. Teriam de me pagar bem pago, para aceitar estar ali na situação dele, ou de qualquer outra figura pública, de maior ou menor grandeza. Até porque as reações a que está sujeito podem ser negativas. Quem deixa uma vida no privado, ou na academia, para se sujeitar a isto, pelo salário de um deputado, é mal pago. Pelo contrário, quem só se safa com o cartão do partido, e que acha que exposição pública é o caminho e o preço para a sobrevivência profissional, em caso idêntico reagiria com uma falsa alegria e verdadeira vaidade. A surpresa da reacção de Mario Amorim Lopes confirmou aquilo que eu já achava dele. É um tipo normal e com bom senso.