Ao longo dos anos que me habituei a ler uma crítica à Constituição portuguesa relativamente à sua extensão e especificidade, nomeadamente no que diz respeito a protecções e direitos. O contraponto tende a ser a Constituição dos Estados Unidos, curta, essencialmente simples e concisa, e que permite vê-la quase como uma tela em branco onde se colocam os direitos e deveres considerados importantes em cada era. É uma tese atraente e fácil de compreender e que comentadores e analistas (na sua maioria) de direita apoiam. Os de esquerda (habitualmente) contrapõem que se os direitos não forem explícitos, poderão ser ignorados, esquecidos ou perdidos. Compreendo os argumentos de um lado e de outro e, não sendo jurista (felizmente para mim), não entrarei nessa discussão.
Há no entanto algo que complica hoje a discussão. É mais que claro que constituições longas, muito explícitas e complexas não são ideais. Mesmo no que diz respeito a direitos e deveres, pode-se tomar uma posição que se não foram explicitados no texto não estão protegidos. Quanto mais complexas mais difícil torná-las coerentes e remover aspectos que se tornem obsoletos ou que talvez nunca lá devessem ter estado. Penso que muitas pessoas podem apontar aspectos da nossa Constituição que se adequam a tal descrição.
O reverso da medalha são os problemas que se causam quando as constituições são mais leves e abertas mas dependem da boa fé dos seus actores. Podemos olhar para os Estados Unidos e ver como a má fé de Trump quase corrompeu as últimas eleições presidenciais (e abriu caminho para que no futuro outros o imitem). Também se vê a forma como muitos no Partido Republicano estão hoje a tentar manobrar essa liberdade na Constituição para criar condições para a ignorar, subverter ou alterar, mesmo utilizando caminhos enviesados para tal. Não vou avaliar a exequibilidade de tais esforços (não tenho competências para tal) mas parece crível que possam ser bem sucedidas se certas condições existirem em simultâneo. Se os Republicanos forem bem sucedidos (ou estiverem lá perto), não demorará muito até que os Democratas os imitem.
As notícias de hoje vindas do Reino Unidos também dão que pensar. Num país sem Constituição escrita, vimos hoje a Primeira-Ministra, que não foi eleita nas eleições gerais, a demitir-se ao fim de 45 dias, e o processo a ser iniciado para escolher um sucessor. Este processo será completamente controlado pelo Partido Conservador, que não irá chamar eleições e poderá reduzir em muito o alcance da eleição do seu líder, podendo simplesmente sugerir um par de nomes (escolhidos pelos seus deputados) aos seus membros que poderão ter uma votação uns dias mais tarde. Tudo indica que o Reino Unido terá um novo Primeiro-Ministro, não eleito e potencialmente escolhido com uma base minúscula do eleitorado, a partir do fim da próxima semana.
Não quero com isto atacar as Constituições mais genéricas e abertas e defender as complexas e labirínticas. Apenas questiono se não será tempo de repensar nas Constituições para os tempos modernos. As mais complexas são incompreensíveis para a população comum. As mais simples estão abertas a abusos e subversões. Não levam em consideração os tempos modernos nem a forma como a informação se move hoje. Talvez seja hora de uma convenção das constituições. Não para criar uma constituição específica, mas para pensar naquilo que as constituições modernas devem ser.