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Delito de Opinião

Da fé monárquica ao pragmatismo republicano

Rui Rocha, 24.01.12

 

Este post suscitou algumas reacções entre os defensores da causa real. Em jeito de desabafo, direi que, em consciência, me é mais fácil manifestar oposição à monarquia do que defender uma república de anonas conduzida por bananas. E isto leva-nos a um ponto importante neste terçar de armas. Há aqui um desequilíbrio na discussão que importa termos presente. A argumentação dos realistas organiza-se em torno de uma idealização. Na ausência em Portugal de uma monarquia concreta e actual que possamos avaliar, o sistema proposto tende a apresentar-se com uma capa de perfeição própria de tudo aquilo que só existe no plano das teorias. Falta-lhe, portanto, a camada de incumprimento, de dúvida, de erro, de falhanço que é própria das soluções concretamente aplicadas. Não encontraremos na argumentação dos monárquicos ponta de fuga para o Brasil ou de descalabro na gestão dos fartos cabedais provenientes dos territórios ultramarinos. Em contrapartida, a defesa da república tende a ser condicionada pela realidade, por este presente de pântano e lama. Ora, para a comparação ser justa, esta deverá colocar em pé de igualdade as propostas e a única forma de o fazer é comparar os modelos enquanto tais. Por outro lado, se bem entendo a tese realista, a base sobre a qual esta se constrói encontra-se no pressuposto de que alguém nascido para ser Rei terá uma preparação diferente (melhor) para exercer como Chefe de Estado. Respondo dizendo que, tal como alguns monárquicos, acredito na predestinação. Mas, para além disso, acredito ainda que esta está presente na realidade na mesma dose que o acaso. Isso leva-me a concluir que alguém predestinado para ser idiota pode por acaso genético nascer para ser Rei. E um idiota preparado não deixa, por isso, de o ser. Se o Rei serve apenas de adorno, como sucede em algumas monarquias contemporâneas, a solução não me convence. Agrada-me a possibilidade de mudar a decoração de vez em quando. Se o que se pretende é atribuir-lhe poder político efectivo, deve ver-se para lá da aura de sonho e de fábula que envolve as propostas monárquicas. As vantagens apresentadas pelos monárquicos são, em rigor, questões de fé, mesmo no que diz respeito à pretensa independência do Rei.  A defesa da república faz-se, no meu caso, com uma boa dose de cinismo sobre a natureza humana. É, portanto, bastante mais pragmática. O erro é condição essencial de homens e mulheres. A presença prolongada no poder corrompe e aumenta a probabilidade do erro. Às naturais limitações humanas deve corresponder um poder limitado pelo tempo e pelo poder de homens e mulheres, iguais no erro e na dignidade, o renovarem ou fazerem cessar. Lamentavelmente, não acredito no Príncipe Perfeito. Nunca me esqueço que quem envenenou a Branca de Neve foi a Rainha Má. E sempre me pareceu que o papel mais importante na história era o dos anões.

 

* Envio um  abraço realmente forte ao João Gomes de Almeida e ao Pedro Quartin Graça. E também ao Nuno Resende. E ao Samuel Paiva Pires.

Antes que o tema submirja de vez, na sua relativa insignificância

José Maria Gui Pimentel, 21.10.11

Agora que terminou oficialmente o centenário da República, valerá porventura a pena analisar a questão em torno do regime uma derradeira vez. Confrontado com a inevitável desconfiança em relação aos benefícios da nossa República, por parte dos poucos portugueses que se deram ao trabalho de reflectir sobre o assunto, e nomeadamente depois de o país ter chegado a este impasse, um republicano honesto terá forçosamente, creio, para consigo próprio, que se refugiar numa de três posturas: a) afirmar que, ainda assim, o país está muito melhor do que estaria com outro regime, o que, sejamos francos, colhe pouco (até pode ser verdade, mas, na actual conjuntura, e tendo como comparação a restante Europa ocidental, a pessoa em questão não deixará de ter muitas dúvidas); b) afirmar que, na verdade, o resultado é o mesmo face a outro regime, o que, sejamos sinceros, não abona muito em favor do republicanismo, e, ainda menos, da premência da sua comemoração. c) afirmar que, para sermos verdadeiros, a República não chegou nunca a ser aplicada de facto em Portugal, sempre subjugada aos interesses do capital, etc etc. Esta última versão sendo, claramente, o porto seguro.

 

Há, nesta discussão, um ponto que me parece evidente: a questão do regime tem um impacto limitado no desempenho de um país, imensamente inferior a um valor bem superior: a democracia. Com efeito, olhando para os vários governos democráticos existentes no mundo, dificilmente se poderá relacionar consistentemente o sistema de governo em vigor com qualquer variável de referência, como o PIB ou o IDH. Antes, poder-se-á dizer, diferentes realidades nacionais beneficiam mais de diferentes regimes em detrimento de outros. Deste modo, justifica-se a dispensa de algumas linhas com o tema (talvez não o dinheiro que foi gasto em ano de crise, mas isso são contas de outro rosário). Avancemos, portanto.

Basta uma análise supérflua à nossa República para perceber que o seu desempenho nunca foi o melhor, e que a sua apologia será sempre, na melhor das hipóteses, frágil. Depois de uma Primeira República para esquecer, veio uma Segunda República em que o Chefe de Estado era apenas figura de corpo presente, seguindo-se o modelo actual, paradoxalmente o mais bem sucedido, mas em que, ainda assim, o custo de oportunidade de ter um semi-semi-Presidente aprisionado nos seus parcos poderes continua a parecer muito elevado por comparação com um regime mais equilibrado ou, pragmaticamente, mais simples. O nosso modelo é, na verdade, uma invenção peregrina, e que quase contrapõe o que afirmei acima: dificilmente traria valor acrescentado em alguma parte do mundo. Não é carne nem é peixe, ou seja, não é bem parlamentarista, mas também está longe de ser semi-presidencialista. Com efeito, dentro das alternativas possíveis, o exemplo nacional nada traz de novo, sendo, em meu entender, apenas superado (pela negativa) pela figura do Presidente no modelo republicano parlamentarista puro, do tipo italiano ou alemão (dois casos, particularmente este último, demonstrativos da democracia como factor primário).

 

Sobram assim, genericamente, três hipóteses. Um modelo semi-presidencialista ofereceria a vantagem de haver verdadeiramente um poder repartido, embora pudesse também manter parte da ambiguidade do actual sistema. Já um modelo presidencialista poderia ter a vantagem de repartir o poder com Parlamento, podendo, por conseguinte, trazer o poder para mais perto dos eleitores. Todavia, num país pequeno e, para todos os efeitos, coeso como Portugal, as vantagens advindas desse factor poderiam não ser elevadas.

 

Por fim, sobra a hipótese de optar por uma monarquia democrática (sob várias formas). Nas discussões habituais sobre a nossa República a alternativa sugerida é invariavelmente a Monarquia e não foi, assim, por acaso que deixei esta hipótese para o final. Considero a Monarquia, de todos os tipos de regime democráticos, aquele mais arriscado, mas porventura ao mesmo tempo (e, de certa maneira, consequentemente), poderá ser também, se bem sucedido, o mais frutuoso. A discussão República-Monarquia (na qual, invariavelmente, não são abordados outros modelos de República, como se o nosso fosse o único ou, pior, o melhor) tende a ser demasiadamente extensa e a perder-se por becos sem saída. Na minha opinião, o principal (e revelador) erro de estratégia dos monárquicos portugueses assenta numa visão errada (exagerada) das vantagens do regime, e num não reconhecimento das suas óbvias limitações. Por exemplo, ao invés de tentar provar como seria fácil substituir um monarca incapaz ou de salientar a preparação que desde a nascença será dada ao futuro monarca para exercer as funções a que está fadado, creio que a posição pró-monárquica deveria começar por admitir um facto simples e inegável: o monarca, numa Democracia, não tem praticamente poder real/directo. Ponto. E ainda bem que assim é. Claro que para dizer semelhante coisa de ânimo leve será necessário reconhecer a evidência que o efeito directo da escolha do regime sobre o desempenho de um país democrático é diminuto. Mais importante é o efeito indirecto de um Rei, que constitui o principal risco ascendente. E esse efeito, nos países onde as monarquias são bem sucedidas, é inegável, designadamente o propalado simbolismo patriótico do monarca, factor que, num país como o nosso, com mais de novecentos anos de História, não é despiciendo. Posto isto, o sistema monárquico não deixa de apresentar importantes e inegáveis riscos descendentes, inerentes à dependência de única família para aquele desígnio. Isto, claro está, não falando do sacrifício dessa mesma família a uma tarefa que não pôde escolher.

 

Concluindo, não é fácil descortinar o melhor sistema de governo para Portugal. Mais fácil, quanto a mim, é rejeitar a validade do modelo actual, o que, só por si, já deveria ser o ponto de partida para uma discussão alargada. A questão do regime pode ter pouco impacto no destino do país, mas não deixaria de ter bem mais impacto do que outras questões às quais dedicamos uma maior parte do nosso tempo.

 

Nota: E foi assim, com uns a rezarem para que o tema não fosse discutido em profundidade e outros mais preocupados com matérias mais prementes, que a República centenária passou incólume ao julgamento que a História sobre ela exigia.

Duas verdades, uma mentira e um desejo insincero de concretização improvável sobre a minha relação com o dia de hoje

José António Abreu, 05.10.11

Sou republicano, adoro ouvir os discursos de Cavaco e ainda hei-de aproveitar o dia para visitar os jardins do Palácio de Belém. Mas acho que este feriado não faz sentido.

 

Adenda: É possível que no dia 1 de Novembro aqui coloque novamente a segunda frase, eliminando apenas a adversativa. E no dia 8 de Dezembro. E no dia 7 de Junho do próximo ano. E no dia 15 de Agosto. Quanto aos restantes feriados, provavelmente deixá-los-ei em paz.

A encruzilhada da Monarquia

João Carvalho, 05.10.11

 

A Constituição não serve para nada?

Em meados do século XIX, com o Liberalismo ainda sem futuro garantido e o País em crise financeira, económica, social e, acima de tudo, de regime, Mouzinho da Silveira não tem dúvidas de que «os grandes vícios do País estão nas instituições vigentes, caducas e obsoletas, o que lhe permite expressar a ideia de que, para benefício dos cidadãos, é mais importante reformar as estruturas do Estado do que proceder à mudança do sistema de governar» (João Carvalho, O Supremo Tribunal de Justiça em Portugal: Dois Séculos e Quatro Regimes de Memórias; STJ, 2003).

A Mouzinho, «verdadeiro estadista fundamentado no conhecimento profundo das causas públicas, até a Constituição lhe parece supérflua: com ou sem ela, é possível fazer mais e melhor, alterando radicalmente a teia institucional em que Portugal está enredado» (id., ib.).

 

Não, não sou monárquico. Mas sei cada vez menos se consigo ser republicano.

A ditadura da República

Laura Ramos, 05.10.11

 

A Constituição não serve para nada?

Ao que chega o novo-riquismo da democracia, que desdenha a sua identidade e desbarata o que tem por certo e garantido...

Tempos perigosos, estes: obrigam-nos a uma pragmática saudável, mas também abrem portas, na enxurrada do imediatismo, à incultura consciente e dirigida dos utilitaristas.
A lei fundamental não é descartável.

Não admito que a diminuam.

Não temos a 'Magna Carta', paciência... Mas temos tido muitas outras Cartas Constitucionais e esta, em particular, custou a construir. Reflecte-nos a nós todos, seus constituintes. E limita os impulsos reguladores dos poderes, executivos ou legislativos, que nos governam.

Acresce que é um diploma em permanente construção. Imperfeito, sim. Com vestígios ditatoriais como o artigo 288º, que vale a pena lembrar hoje, porque impõe a forma republicana do regime e proíbe liminarmente a opção por uma monarquia.

Não sou monárquica, em sentido corporativo.

Mas votaria claramente a favor de um regime monárquico, porque, entre muitas outras razões, é o que melhor serve a estabilidade e o que mais respeita a matriz identitária de um país, algo de que precisaremos cada vez mais nesta Europa em desconstrução.

Além disso, já sabemos (nós, os que queremos saber) que é um regime mais barato do que a república.

- Não dispomos de um Mestre de Avis, nem de um Príncipe Perfeito? Pois não, nem eu os queria assim, lendários e irreais.

Mas irrita-me uma tal norma, digna da assinatura de um caudilho apostado em manter um monopólio desleal. Enquanto se assusta o povo com fantasmas e papões, explorando a sua privação de escolha e descredibilizando constantemente, com recurso a chavões primários e aldeões, toda e qualquer figura, ou simples cidadão, que ouse desafiar-lhe a autocracia ilegítima e forçada (tal como aconteceu em Espanha em seu tempo, com Juan Carlos). 

 

- E a sociedade 'pensante', o que é que faz? Prega a doutrina e retribui-lhes ao nível. Aplaude.

 

Não, não sou catequética na minha escolha: sou apenas livre. Além disso, não suporto que me inibam de exercer um direito.

E para quem ainda não percebeu bem o que está em questão, declaro que, tanto quanto a parvoeira republicana nacional  - provinciana, complexada e tacanha - consegue irritar-me o fenómeno correspondente nos monárquicos 'de seita' (radicais, fundamentalistas e fixados no seu umbigo, porventura tatuado com ferro de armas).

Uns e outros tiram-me do sério.

Mas que fazer? Tolos há em todo o lado e em todas as frentes.

Dão é muito mais nas vistas do que os outros cidadãos.

Que sobreviva a República!

Rui Rocha, 04.10.11

No estado actual do país, existe uma única razão para assinalar o 5 de Outubro: o facto de não sermos uma monarquia. A república, esta que temos, exala um insuportável cheiro a bafio. Mas, não a trocava pelas lantejoulas e o néon de uma qualquer ideia de predestinação. Isto dito, neste preciso momento, não há nada mais a comemorar e há tudo para reflectir. O decoro imporia que o dia de amanhã se passasse em recolhimento e  meditação. E, sobre o ruído obsceno das fanfarras e o semblante soerguido dos altos dignitários, melhor seria que se impusesse o silêncio da contrição e um piscar de olho honesto ao futuro.  Há neste estertor que vivemos um contrato social em ruínas. Porque já não é deste tempo. E porque nunca foi cumprido. É urgente que nos aproximemos de um novo denominador mínimo e comum. Que reflicta exactamente o que somos, pobres e endividados como estamos. Mas, que não prescinda de uma dimensão aspiracional, que nos desafie a desbravar terreno. No momento actual, é óbvia a necessidade de temperar os direitos com obrigações. Devemos reconhecer que, no que diz respeito ao trabalho, à habitação, à educação,  à assistência médica e à segurança social, cabe ao Estado assegurar o contexto. Mas, é a cada um dos cidadãos que cabe a responsabilidade pelo seu percurso. Não nos bastaria já um sistema de educação perfeito ainda que o tivéssemos. Numa sociedade avançada, o dia seguinte da educação é o mérito. Falta-nos fazer muito em matéria de educação. Falta-nos fazer tudo em matéria de mérito. Aos políticos não podemos aceitar que nos queiram fazer felizes. Porque o direito de o sermos ou não é nosso e inalienável. Deles apenas se pretende responsabilidade pelos seus actos  Mas devemos exigir, por exemplo, que não sejam cúmplices de monopólios que repercutem nos preços cobrados aos consumidores as suas ineficiências. Precisamos muito de respeito pelos nossos impostos. E isso passa por uma criteriosa gestão de custos e benefícios. E também por não sermos taxados pelo sector privado, de forma explícita ou implícita, como tem acontecido no caso das parcerias impúdico-privadas. Não há nenhum rubor que se imponha por sermos pobres se, apesar de tudo, quisermos ainda ser justos e íntegros. A ética republicana, se existe, não é um ponto de partida e, por definição, nunca será um lugar de chegada. Mas, pode muito bem ser um caminho.

Persistência

João Carvalho, 05.10.10

Fala-se muito da "ética republicana", como se houvesse um catálogo de éticas à escolha de cada um, e dos "valores republicanos", coisa difusa que cada um interpreta a seu modo na ausência de valores. Não é preciso inventar. A grande qualidade da república é a persistência, aquela vontade firme de fazer o país melhor. Ao fim de um século, é caso para perguntar: então por que é que não faz?

«As repúblicas não são eternas»...

João Carvalho, 05.10.10

... segundo a opinião do João Távora, escrita aqui há mais de um ano, em tom sério e sereno. «Como se a democracia e o parlamentarismo fossem conquistas da república» — lembrava também o autor na altura. Reflexões que não colidem com comemorações. Pelo contrário: só depois de se reflectir se pode decidir conscientemente sobre comemorar ou não comemorar e porquê.

O que se festeja amanhã?

Pedro Correia, 04.10.10

No meio da maior crise financeira de que há memória, o país político prepara-se para comemorar cem anos de república - com maior espavento do que se comemorasse a própria fundação de Portugal.

Lamentavelmente, não é preciso ser monárquico para chegar a esta conclusão: há poucos motivos para festejar. Dos cem anos do regime que se comemora, apenas 34 - um terço - decorreram em democracia plena. Os 15 anos e meio da I República merecem figurar nos manuais como um período histórico que nenhum português gostaria de reviver: sufrágio restrito, jornais encerrados, sindicalistas presos, perseguições religiosas, atentados bombistas, conspirações permanentes, homicídios políticos (um presidente e um primeiro-ministro assassinados), finanças caóticas. Generalizada degradação da autoridade do Estado. Uma absurda e suicida intervenção na I Guerra Mundial que levou o luto a milhares de famílias portuguesas. Intelectuais de todos os matizes - de Fernando Pessoa ao grupo da Seara Nova - clamando por uma "regeneração nacional" que chegou à bruta, a 28 de Maio de 1926: a incompetência dos políticos dessa época adubou o terreno para 48 anos de ditadura.

Na própria I República houve dois períodos ditatoriais, convenientemente omitidos da historiografia oficial: o "golpe das espadas", de Pimenta de Castro (1915), e o bonapartismo reencarnado por Sidónio Pais, fugaz ídolo das massas até ser morto na estação do Rossio (1917-18).

Woodrow Wilson foi presidente dos EUA durante oito anos (1913-21). Neste período, Portugal teve seis presidentes (Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Bernardino Machado, Sidónio, o monárquico Canto e Castro, António José de Almeida), dois golpes de estado e 27 governos, além de várias "incursões" monárquicas, aliás desautorizadas pelo bom senso do último rei, D. Manuel II, exilado no Reino Unido.

 

É isto que amanhã se comemora, novamente com as finanças exangues. Em vez de festejar, os políticos actuais deviam analisar seriamente a profusão de erros e omissões da I República, um regime que não tardou a devorar os seus heróis, começando por Machado Santos, o "bravo da Rotunda", assassinado na sangrenta madrugada de 19 de Outubro de 1921. Deviam também interrogar-se sobre o terreno que eles próprios adubam nos dias de hoje. Não há regimes eternos, como o estudo da História bem demonstra. Em política, toda a incompetência tem um preço: o pior é que a factura costuma ser paga pelos povos.

 

Imagens:

1. Sídónio Pais, ditador na I República (assassinado em 1918)

2. Machado Santos, herói do 5 de Outubro (assassinado em 1921)

O "livre pensamento" à lei da bala

Pedro Correia, 28.01.10

 

Existe por aí uma autodenominada Associação Portuguesa do Livre Pensamento (APLP), especializada em promover romagens às campas dos dois assassinos do penúltimo rei de Portugal, Costa e Buíça. Os escassos membros desta associação prometem o cumprir o ritual de visitar o cemitério do Alto de São João, no próximo domingo, enquanto lamentam que as comemorações oficiais do centenário da república "ignorem o contributo" dos referidos homicidas para o derrube da monarquia. Isto em nome dos "princípios libertários, a acções tendentes à construção de uma pátria sem opressões classicistas, moderna e voltada para o futuro, construída por homens livres, coerentes e firmes nas suas convicções", segundo leio na Lusa.

Buíça e Costa, a quem a APLP denomina "cidadãos", ao dispararem os tiros mortais expressaram o seu "legítimo direito à indignação", princípio que a benemérita associação "respeita, promove e continua a propalar".

 

Conclui-se daqui o seguinte:

1. Na óptica da APLP, organizar romagens ao Alto de São João é uma "acção moderna e voltada para o futuro".

2. Matar alguém - no caso, além do rei, foi igualmente assassinado o príncipe real D. Luís Filipe - demonstra "coerência e firmeza de convicções".

3. O "livre pensamento" promove-se recorrendo à lei da bala.

4. Matar é, mais do que "legítimo direito à indignação", um exercício de cidadania.

5. Quem vir por aí um membro da APLP deve munir-se de colete antibalas, não vá mais alguém ser vítima dos princípios que esta associação "respeita, promove e continua a propalar". O intrépido inspector Callahan, em tempos interpretado no cinema por Clint Eastwood, não diria melhor.

República: o busto e o 'marketing'

João Carvalho, 27.01.10

Foi por este post aqui mais abaixo, do Sérgio de Almeida Correia, que fiquei a saber que o escultor João Cutileiro defende a mudança do busto da República. O País parece não estar muito interessado nisso e a verdade é que os portugueses têm muito mais com que se preocupar do que descobrir uma nova polémica totalmente inútil para o bem-estar nacional, cada vez mais afastado.

 

Na notícia que serviu de base ao post, Cutileiro diz que lhe faz «muita impressão que o nosso busto da República seja uma cópia do francês». Ora, é verdade que o busto oficial, de Simões de Almeida (sobrinho) e criado ainda antes da implantação da República (quem serviu de modelo morreu há não muitos anos), é inspirado no modelo francês da época, o que se justifica pela influência que os franceses tiveram na nossa mudança há cem anos, como um século antes também tiveram na implantação do nosso regime constitucional, quando o liberalismo pôs fim ao absolutismo.

 

Porém, vale a pena lembrar que os primeiros republicanos no poder deram ao busto nacional outro ar, com um objectivo bem específico. Percebendo que o poder judicial lhes era pouco favorável, mandaram executar algumas cópias que rapidamente fizeram chegar aos tribunais superiores ainda em 1911 (e que foram depois alargadas a outros), com uma característica muito especial: o rosto e postura da República intencionalmente parecidos com a deusa da Justiça, como que a fazer crer que a Justiça e a República se confundiam e estavam unidas por natureza. Esperavam eles, com isso, que o novo poder político passaria a contar com o apoio dos juízes, que se mantinham intransigentes quanto ao cumprimento das leis.

 

A ingenuidade da ideia teve pouco – se algum – sucesso. Também a maioria desses bustos em gesso aparentados com a alegoria da deusa Témis não resistiram ao tempo, mas alguns tribunais ainda conservam o seu exemplar, como acontece com o Supremo Tribunal de Justiça, e o facto histórico pode servir para que a representação da nossa República seja vista como um modelo próprio (protagonista deste episódio insólito) e não como obra importada.

 

Histórica é também a ingénua e gorada acção de charme daqueles republicanos junto dos magistrados judiciais, há um século. A iniciativa constitui um verdadeiro caso de marketing político, muito antes de o mundo saber o que o marketing viria a ser.

Um tema a recentrar

João Carvalho, 06.10.09

A propósito deste post mais abaixo e de alguns comentários ali recebidos, entendi oportuno acrescentar um contributo. A discussão «República versus Monarquia» é velha e inconclusiva. Muitas vezes até se introduz o absolutismo monárquico e a ditadura presidencialista no caso, apesar de serem elementos estranhos ao debate. Adiante.

As Monarquias modernas são constitucionais por motivos civilizacionais e as Repúblicas são democráticas por definição original (visto que as ditaduras não se enquadram no conceito republicano puro). Em ambos os casos, os Chefes de Estado podem ser vistos de forma idêntica, já que os Presidentes, como os Reis, não têm necessariamente de exercer a acção governativa ou interferir nesta, quando ela emana de um Parlamento eleito.
Estamos, então, a falar de regimes constitucionais, democráticos, livres e abertos, em que um Presidente é eleito para um mandato temporal pelo voto universal ou um Rei não-eleito é preparado para o ser por norma dinástica e sucessória e sem prazo prévio.
Assim, lembremo-nos agora do que diziam os nossos Liberais na sequência da Revolução de 1820: num regime constitucional, «o Rei reina, mas não governa». Acrescento eu: num sistema em que o governo emana do Parlamento, o Presidente preside, mas não governa.
 
Posto isto, mantemos a discussão e deixamos de lado o problema da boa governação? Repare-se que, em ambos os casos, estão balizados os direitos, liberdades e garantias constitucionais, bem como os deveres correspondentes, mas é impossível uma Constituição, monárquica ou republicana, ser garantia de si mesma e da sua prática, não é?
Ora, o que importaria é saber como garantir melhor governação. E isso não vejo como depende do Chefe de Estado. Porque, afinal, o mais alto representante do Estado, seja ele Rei ou Presidente, é precisamente isso e não outra coisa. Que vantagens um ou outro traz para a qualidade dos governos, que é a preocupação dos povos? Nenhuma, a meu ver.

Devo dizer, porém, que não pretendo descobrir nisto qualquer conclusão. A discussão prossegue e eu mais não quis do que contribuir com esta modesta achega para recentrar o assunto. Porquê? Porque dizer que uma Monarquia é mais propícia à "meritocracia" ou que uma República é mais adequada à escolha de "competências" (como sugerem, por exemplo, o João Távora, por um lado, e o José Gomes André, por outro, sem embargo do respeito que me merecem) parece-me pouco, muito pouco. Para não dizer que me parece coisa nenhuma, pois a qualidade da governação não se resolve no regime.

 

Enfim: se a discussão continuar no tempo, é preciso não desvirtuá-la. Ela tem de ser levada por caminhos mais substantivos e não pela via sinuosa de quem faz mais e melhor pelo país.

 

Imagem – Repúblicas e Monarquias

Monarquia e república

Pedro Correia, 13.08.09

 

O 31 da Armada conseguiu as maiores audiências de sempre na blogosfera em Portugal graças à substituição da bandeira municipal, na sede camarária em Lisboa, pela bandeira da monarquia. Uma acção simbólica que não deve justificar, da parte das autoridades públicas, uma reacção desproporcionada. Percebo a irritação dos republicanos e a euforia dos monárquicos, antecipando cada qual a seu modo o centenário da mudança de regime que irá ocorrer em 2010. Mas, vendo bem, o que sucedeu não merece discursos apologéticos nem apocalípticos: foi uma travessura juvenil que teve pelo menos o mérito de demonstrar que nem os mais emblemáticos edifícios públicos de Lisboa estão seguros – a poucos metros de uma esquadra da PSP e do próprio Ministério da Administração Interna. Era isto que devíamos estar a discutir e não se o Rodrigo Moita de Deus e o Henrique Burnay vão presos – o que seria um disparate inqualificável. Passei por aqui só para dizer isto. E ficaria mal comigo próprio se não o dissesse já.