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Delito de Opinião

Os discípulos de Chamberlain

Pedro Correia, 17.04.24

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Neville Chamberlain cumprimentando Hitler em Munique (1938)

 

É comum ouvir-se por estes dias, a propósito da política de canhoneira aplicada por Vladimir Putin na Ucrânia, um conceito desenterrado dos mais bafientos baús da História.

Que conceito é esse? O de "apaziguamento".

 

Em síntese, os defensores desta tese recomendam a atitude dos três macaquinhos da fábula: há que vendar os olhos, cobrir os ouvidos e emudecer perante sucessivas violações do direito internacional para não indispor os prevaricadores. Se for preciso inverte-se até o ónus da prova, transformando o agressor em agredido e o agredido em agressor. Como o Grande Irmão de Orwell, que instituiu um Ministério da Verdade para melhor disseminar as mentiras enquanto incentivava as massas a urrarem o mais cruel e acéfalo dos paradoxos: «Guerra é paz!»

Não há nada de original nisto. Quando escuto os apóstolos do apaziguamento recordo-me sempre do mais infausto e patético de todos os primeiros-ministros britânicos: Arthur Neville Chamberlain. Céptico perante os aliados, crédulo perante os inimigos. De uma granítica intransigência face às vozes que o alertavam contra os riscos do compromisso a todo o preço, sempre pagos mais tarde a custos elevadíssimos. E de uma benevolência sem limites face à ofensiva totalitária.

De tanto querer a paz, na sua indesmentível boa fé, facilitou o caminho aos promotores da guerra. Da mais sangrenta, devastadora e homicida das guerras.

 

Recordo em particular o acalorado debate na Câmara dos Comuns travado a 25 de Junho de 1937 -- em que, não por coincidência, foi invocado várias vezes o nome de Portugal.

Era a primeira vez que Chamberlain ali discursava sobre política internacional desde que fora empossado como chefe do Governo conservador britânico, no mês anterior. E logo ali ficou bem patente o seu anseio em levar à prática uma política de "apaziguamento" com as feras totalitárias que faziam da guerra civil espanhola terreno experimental para um incêndio muito mais vasto que não tardaria a deflagrar no mundo.

Comentando a aparente resignação de Berlim na sequência do recente afundamento de um navio alemão ao largo da costa espanhola, o antecessor de Churchill não hesitou em elogiar o regime de Hitler por «ter demonstrado um grau de moderação que devemos reconhecer». O massacre de Guernica, cometido pela tenebrosa Legião Condor, ocorrera dois meses antes...

Incapaz de ler os sinais da História, Chamberlain pedia «cabeça fria» no Parlamento britânico e recomendava aos próprios jornalistas que «medissem as palavras» para não ferir as susceptibilidades dos inimigos da democracia. E rematou assim, cego perante as evidências: «Se todos formos prudentes, pacientes e cautelosos seremos capazes de salvar a paz na Europa.»

 

O antigo primeiro-ministro liberal David Lloyd George respondeu-lhe da melhor maneira. Observando sem rodeios que Hitler violara já três acordos internacionais subscritos pelo Estado alemão. Ao inutilizar o Tratado de Versalhes (1919) reintroduzindo o serviço militar obrigatório. Ao rasgar o Pacto de Locarno (1925), invadindo e remilitarizando a Renânia. E ao transformar em letra morta o Acordo de Não-Intervenção na Guerra Civil de Espanha (1936), disponibilizando instrutores, armamento e aviação a Franco.

E Lloyd George retorquiu a Chamberlain: «Precisamos de cabeças frias, sim, mas também de corações fortes.»

Solidários com os que sofrem as agressões, não com aqueles que as praticam. E aprendendo sempre com as lições da História.

Penso rápido (105)

Pedro Correia, 20.03.24

Volta e meia aparece por aí alguma gente, quase sempre anónima, a clamar contra a "partidocracia". Alegando que o nosso sistema partidário está contaminado por interesses oligárquicos.

Ora a pior oligarquia ocorre nas situações inversas - quando não há partidos. Ou quando existe apenas o partido do ditador, sem democracia representativa. Os opositores estão presos, exilados ou mortos.

Regime oligárquico é o do brutal ditador Putin. Também plutocracia e cleptocracia - tudo em simultâneo. Tomaram os cidadãos russos, vergados ao peso dessa tirania oligárquica, plutocrática e cleptocrática, terem uma "partidocracia" no país deles. Onde o anonimato é imperativo de segurança de quantos arriscam a liberdade e a própria vida, não um luxo de diletantes no conforto da Europa ocidental.

Votou nele próprio, longe do povo

Retrato de um tirano viciado em poder absoluto

Pedro Correia, 19.03.24

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Arranjou três fantoches como figurantes nas listas eleitorais fingindo que competiam com ele - um dos tais enfeitado com a foice e o martelo, em entusiástico apoio à anexação de parcelas da Ucrânia. Mandou silenciar todos os que se atreveram a fazer-lhe frente: estão hoje no exílio, na prisão ou no cemitério. Fez-se reeleger Czar da Santa Rússia com fraudes maciças, sem campanha eleitoral digna desse nome, sem debates,, sem imprensa livre, sem fiscalização dos cadernos eleitorais, sem observadores independentes.

Entre avisos reiterados de que está disposto a utilizar o paiol atómico de Moscovo para desencadear a III Guerra Mundial. Como quem se mostra disponível para disputar uma amena partidinha de xadrez.

 

Vladimir Putin, o mais perigoso déspota do mundo actual. Septuagenário viciado no exercício do poder, que funciona para ele como uma droga dura: é senhor absoluto do Kremlin há um quarto de século, violando normas constitucionais internas e os pactos internacionais que a Rússia assinou. Acaba de ser "reeleito" com 88% dos votos, mas para o efeito tanto faz: podia ser 98% ou até cem por cento.

Como o New York Times escreveu em 1958, a propósito da monumental fraude ocorrida esse ano na eleição presidencial portuguesa que atribuiu a vitória nominal nas urnas ao almirante Thomaz, «Salazar poderia até ter escolhido como candidato o primeiro polícia de trânsito que lhe surgisse no caminho». O triunfo estava assegurado de antemão.

 

Seis anos mais no poder: agora a meta é 2030. Mas o tirano pode permanecer até 2036, quando tiver 84 anos - se gozar de vida e saúde até lá. Num sistema totalitário em que ele próprio vive como recluso, temendo sofrer o mesmo destino a que já condenou tantos opositores.

Repare-se que nem se dignou abandonar o búnquer do Kremlin para se deslocar a um local de voto. Permaneceu encerrado no gabinete, longe do povo que diz representar, e votou em si próprio por computador.

É desde já uma das imagens de 2024. Patético retrato do antigo oficial do KGB, hoje um caudilho que controla à mercê de um botão o maior arsenal nuclear do mundo.

Coragem

Pedro Correia, 02.03.24

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Milhares de pessoas desafiaram os esbirros armados em Moscovo para se despedirem ontem de Alexei Navalny, o mais desassombrado opositor do tirano russo, assassinado pelo "crime" de defender o respeito pelos direitos humanos e a instauração de um sistema democrático no seu país.

Sem surpresa, houve mais de 400 detenções: um gesto tão simples como depositar flores na campa de um morto ou em monumentos alusivos a figuras históricas habilita quem o faz a ser julgado por crime de lesa-pátria.

Mesmo cercados pela polícia de choque, estes bravos cidadãos prestaram homenagem ao homem sem medo, agora mártir da resistência. Oraram dentro e fora da igreja onde decorreu a cerimónia fúnebre, com os pais de Navalny na primeira fila. Muitos com olhos marejados, sem reprimirem as lágrimas. Parte deles em silêncio: as palavras, na Rússia, podem originar pesadas penas de prisão. Mesmo assim não faltou quem entoasse de forma bem audível frases contra o ditador e a agressão imposta por Putin à Ucrânia. «Não à guerra» foi o grito mais escutado.

No mundo contemporâneo, há quem sinta dificuldade em apontar exemplos concretos de coragem: parece coisa fora de moda. Pois coragem é precisamente isto.

Napoleão ou Crimeia?

João Pedro Pimenta, 01.03.24

Em resposta aos avisos de Macron sobre a possibilidade de tropas da NATO poderem combater na Ucrânia, os "aliados" (ou seja, subalternos) de Putin já vieram comparar o presidente francês a Napoleão e recordar a desastrosa campanha da Rússia, de 1812.

Tem-nos surgido muitas vezes, da parte de russos ou de outros sectores putinófilos, a sempiterna chamada de atenção para os efeitos nefastos da invasão de 1812 e da Operação Barbarrosa pela Alemanha, em 1941. Mas a sua noção de história parece ser selectiva, que não vindo de quem vem não espanta. Primeiro porque Macron não propôs nenhuma invasão da Rússia. E depois porque se esquecem de outra campanha, essa desastrosa mas para a Rússia, que foi a Guerra da Crimeia, nos anos 1850, em que a França, o Reino Unido e o Império Otomano - hoje todos membros da NATO - impuseram aos russos uma pesada derrota, a devolução de alguns territórios e o seu enfraquecimento na zona do Mar Negro. Macron saberá certamente porque é que há o Boulevard de Sebastopol ou a zona de Malakoff, em Paris. Bem sei que os tempos são outros, mas isso vale para todos, e se é para fazer comparações históricas, vamos a todas.

A Guerra da Crimeia - RTP Ensina

Cá está ele

Pedro Correia, 25.02.24

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Ontem à noite participou num debate na CNN Portugal. Com deputados de outros cinco partidos políticos. Sobre uma triste efeméride: o segundo aniversário da agressão russa à Ucrânia, com o seu brutal cortejo de mortos, mutilados, desaparecidos, violações, pilhagens e destruição de todo género. A maior invasão de uma nação europeia por um país vizinho desde a II Guerra Mundial - réplica exacta do que Hitler fez à Polónia em 1939 mal selou o pacto de amizade com Estaline.

Fixem-lhe a cara e o nome: chama-se João Pimenta Lopes, é representante do PCP no Parlamento Europeu. Foi um dos escassos deputados que se puseram ao lado do ditador Putin, recusando condenar a Rússia na eurocâmara. A 1 de Março de 2022 - cinco dias após a invasão, quando os blindados russos se encaminhavam para Kiev e os mísseis de Moscovo matavam dezenas de civis. A resolução foi aprovada por esmagadora maioria: 637 votos favoráveis, 16 abstenções e 13 miseráveis votos vontra - incluindo o de Lopes e da sua camarada Sandra Pereira.

Convém não esquecer. Faltam três meses para as próximas eleições europeias. Quem nos representa em Bruxelas deve ser avaliado - e chumbado - também por isto.

Rússia: opositor assassinado é "dissidente"

Pedro Correia, 18.02.24

Na chamada "estação pública de televisão" oiço alguém introduzir o tema do homicídio de Alexei Navalny, vítima de sentença de morte extrajudicial decretada pelo ditador de Moscovo, chamando «dissidente» ao assassinado num presídio da Sibéria.

Voltamos à questão de sempre. Se alguém contesta uma ditadura de um determinado quadrante ideológico é denominado opositor. Mas se o mesmo ocorre numa ditadura de outro quadrante ideológico, não é opositor, mas "dissidente". Isto equivale a dizer que, nestes casos, a normalidade é a ditadura - aliás nunca assumida como tal. "Dissidência" é fuga à norma - penalizada, portanto, no discurso jornalístico corrente. Pelo menos no discurso que ouvi na RTP.

 

Como escrevi aqui, um democrata é um democrata - nunca um dissidente. E um opositor é um opositor, ponto final. 

Chamar «dissidente» a Navalny é injuriar a memória deste mártir da liberdade asfixiada na Rússia. É contemporizar com a tirania putinista, que nem permite à mãe de Navalny ter acesso ao corpo do filho - algo impensável até noutros regimes ditatoriais. Certamente com receio do que uma autópsia independente pudesse confirmar: o mais corajoso opositor de Putin foi mesmo assassinado, aos 47 anos.

Às ordens do senhor absoluto do Kremlin, herdeiro espiritual de Estaline. 

Estaline ressuscitado em Moscovo

Pedro Correia, 16.02.24

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Alexei Navalny (1976-2024): assassinado aos 47 anos por ter ousado enfrentar o tirano russo

 

Infelizmente, era uma má notícia previsível neste ano que promete trazer-nos várias outras muito funestas. Alexei Navalny, o mais destacado e corajoso opositor de Vladimir Putin, foi assassinado na prisão junto ao Círculo Polar Árctico, nos confins da Sibéria, para onde fora desterrado pelo sanguinário ex-oficial do KGB que detém o poder absoluto em Moscovo esmagando direitos, suprimindo liberdades, rasgando todas as garantias constitucionais.

«Foi homicídio», declarou à Reuters o jornalista russo Dmitri Murátov, galardoado em 2021 com o Prémio Nobel da Paz. Nenhuma dúvida.

Todos quantos ousam enfrentar o tirano moscovita têm aparecido mortos - das mais diversas formas. E até vários dos seus antigos aliados e amigos: basta lembrar o "falecimento acidental" de Prigójin quando se fartou de ser pau-mandado do Kremlin na carnificina ucraniana, iniciada há quase dois anos.

Outros, muitos outros, foram vítimas de morte abrupta. Ou caem de varandas, ou bebem chá envenenado, ou recebem balas homicidas na própria casa onde vivem, ao estilo mafioso (como aconteceu com a jornalista Anna Politkovskaya, mártir da liberdade de imprensa em 2006). Ou são até abatidos a tiro nas imediações da Praça Vermelha (como aconteceu em 2015  com Boris Nemtsov, outro desassombrado opositor).

 

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Ex-oficial do KGB, Putin tem reabilitado Estaline, que lhe serve de modelo

 

Navalny, com inegável robustez física e anímica, escapou uma vez à pena de morte extra-judicial que o carniceiro do Kremlin lhe decretara, ao mandar envenená-lo em pleno voo, em 2020.

A estrela da fortuna iluminou-o nesse instante. Mas ele teimou em desafiar o destino. No dia em que, por imperativo patriótico, decidiu regressar à Rússia, selou a sua condenação à pena capital. Detido, à margem de todas as regras civilizacionais. Torturado. Condenado a 19 anos de cárcere por delito de opinião. Tratado como lixo humano, partilhando cárcere com violadores e pedófilos. Empurrado para uma das cloacas do planeta, um local com 45 graus negativos para onde o czarismo e o estalinismo desterravam milhares de presos políticos. 

Assassinado pela ditadura putinista, apostada em ressuscitar Estaline - desde logo no implacável esmagamento e destruição de quem se atreve a confrontá-la.

A mesma ditadura que conta com públicos e notórios apoiantes em Portugal - tão repugnantes como ela. Alguns, daqui a dois meses, andarão de cravo ao peito e punho no ar, celebrando o 25 de Abril. Enquanto aplaudem a censura russa, os bufos russos, a PIDE russa, o tirano russo, os crimes políticos do totalitarismo russo. Com inaceitável e vergonhosa duplicidade moral.

 

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Comunistas russos veneram o busto de Estaline em Moscovo

Trump Carlson em Moscovo

João Pedro Pimenta, 08.02.24

Depois de se dizer que era mero boato, Tucker Carlson, que acabou despedido da Fox por confessar em privado que tinha dito disparates em notíciário, lá entrevistou Vladimir Putin, para "esclarecer os americanos da verdade", como se Putin não a tivesse divulgado em inúmeras ocasiões, embora nem sempre com a mesma base. Escolheu bem o dia: o mesmo em que a candidatura de Boris Nadezhin, o único contra Putin, acabou recusada, como acontece sempre que há um candidato contra o incumbente.

Entretanto, o Partido Republicano continua a recusar-se a enviar mais ajuda à Ucrânia, mas aprovou o envio de 16 mil milhões de euros para Israel.
 
Claro que não há qualquer ligação entre isto. Podia lá ser...

O drama esquecido dos arménios

João Pedro Pimenta, 21.10.23

O Pensamento da semana passada relembrou, por uns momentos, o que se passa no Nagorno-Karabakh. Com os dramáticos acontecimentos em Israel, mesmo o conflito entre a Ucrânia e a Rússia passou para segundo plano, quanto mais o dos cumes das montanhas do Cáucaso.

E precisamente, o Cáucaso é das regiões a que mais limpezas étnicas tem assistido no último século. Se os Balcãs são de tal maneira divididos e confusos que até emprestaram o seu nome a uma expressão geopolítica, então aquela região montanhosa encravada entre os velhos impérios e actuais potências da Rússia, Turquia e Irão e entre os mares Cáspio e Negro é-o ainda mais. Sob o domínio dos russos coexistem inúmeros povos e línguas, como os chechenos, os circassianos (estes dois, sobretudo o segundo, foram alvo de violentos crimes e até mesmo de tentativa de genocídio por parte dos russos), os tártaros, os ossetas, os calmuques - que vivem na única região de maioria budista na Europa - e tantos outros. Abaixo, as nações independentes: Geórgia (com a Abecásia), Arménia e Azerbaijão).

O que se passou no Nagorno-Karabakh recordou-me este post que aqui escrevi há ano e meio e que relata outra limpeza étnica naquela região que pouca comoção trouxe ao Mundo. Na altura, os georgianos foram mortos ou expulsos da território da Abecásia, onde em certas partes constituíam a maioria. Agora, talvez com menos violência e menos vítimas, os arménios são forçados a deixar aquela região que a tantos combates ferozes tem assistido nas últimas décadas e a extinguir com efeitos a partir de Janeiro a não reconhecida República de Artsakh.

Atribuir "razão" territorial e política a qualquer um dos povos é tarefa complicada. Talvez se tenda, nos países ocidentais, a simpatizar-se mais com os arménios. De facto, a constituição daquele enclave parece ser mais um dos artifícios típicos na URSS para se dividirem povos e territórios e impedir assim a invocação das suas consciências nacionais e que tantos problemas tem causado desde a sua implosão, de que são exemplo as sucessivas guerras no Cáucaso russo e georgiano.

Seja como for, e mesmo não reconhecendo a soberania daquele território, há que reconhecer a limpeza étnica levada a cabo pelo Azerbaijão. Se a Arménia tinha saído vitoriosa nos anos noventa, em 2020 os azeris atacaram de surpresa, bem apetrechados com material do seu vizinho e mentor, a Turquia, sobretudo com drones que foram de grande utilidade e que serviriam de treino para a posterior guerra na Ucrânia, e obtiveram uma vitória rápida e retumbante, que lhes permitiu cercar totalmente o território de Artsakh, a começar pelo corredor de Lachin, que ligava este à Arménia, que ficou a cargo de uma força de paz russa.

Sabe-se o que aconteceu depois: as forças do Azerbaijão lançaram em Setembro deste ano uma ofensiva que rapidamente ocupou aquele território e desarmou as de Artsakh, isoladas e sem a possibilidade de reforços da Arménia. Esta, sem auxílio e sem poder, por sua vez, ajudar os arménios de Artsakh, teve de aceitar um cessar-fogo e as suas consequências. Pelo meio, ainda houve um ataque a uma viatura militar russa, que resultou na morte dos seus ocupantes. A Rússia, principal membro da OSTC, uma organização militar a que também pertence a Arménia, reagiu com apatia e escusou-se a defender a sua correligionária, em grande contraste com o apoio da Turquia ao Azerbaijão.

Nagorno-Karabakh - The Latest News from the UK and Around the World | Sky  News

Desde então, a grande maioria da população arménia do Nagorno-Karabakh/Artsakh abandonou o território, temerosa do novo ocupante. A caravana de cerca de uma centena de milhar de pessoas que fugiu rumo à Arménia recordou as grandes levas de trocas de povos do pós-II Guerra. O Azerbaijão conquistou aquele território e olha agora para o que o separa do seu enclave de Naquichevan, na fronteira com o Irão (e a única parcela de território que confina com a aliada Turquia), com mal disfarçada ambição, o que pode significar novo conflito no horizonte.

Map of the recent developments in the Armenia - Azerbaijan conflict :  r/MapPorn

A Arménia, com pouco apoio no Ocidente, salvo o da França, onde existe uma importante comunidade de arménios, e sobretudo sem o suporte da Rússia, que seria o seu protector mas que não quer entrar em conflito com a Turquia, vê-se assim ameaçada de novo e começa a olhar de soslaio para a UE. E a Turquia de Erdogan marca pontos estratégicos e consegue fazer a Rússia acobardar-se. Esta provou que não só não é de confiança para com os que deveriam ser os seus aliados (um aviso para África?), já que nem os membros da própria organização de defesa podem contar com o seu auxílio, como mostra as suas limitações bélicas. Tão empenhada está na Ucrânia que não se pode estender a outras paragens, a não ser com mercenários.

E assim, no espaço de um mês, voltamos a ver os dois povos que sofreram os piores genocídios do século XX a serem butalmente atacados ou sujeitos a limpeza étnica por expulsão: os judeus e os arménios. Os ciclos da História repetem-se com arrepiante dramatismo.

Era uma vez...

Paulo Sousa, 08.09.23

Era uma vez um país que, deprimido, vivia obcecado com a grandeza de outrora. Mais do que ambicionar a voltar a desenhar o futuro, consumia-se numa masturbação eterna com o passado. Para entreter e mobilizar os seus nacionais, criou uma narrativa, um império por desígnio superior e direitos inalienáveis. Os territórios e os povos teriam de se vergar à vontade de quem conseguia drenar a vontade dos outros. A religião, também com medo do futuro, validou o desígnio e a todos abençoou. O resto do mundo não concordou e remeteu esse país à solidão que apenas os desalinhados conhecem.

Pelo caminho ficou um imenso rasto de destruição, uma geração de mortos e estropiados e muitas mais de memórias que, erradamente, irão tentar provar que, afinal, os sangues não são todos iguais.

De que país estou a falar?

Alguém do PCP me pode ajudar nesta escolha?

Negócios pagos com sangue

Pedro Correia, 16.08.23

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Os profissionais do futebol são também cidadãos. Muitos deles, com experiência de trabalho em vários países, são autênticos cidadãos do mundo. Incluo neste lote o treinador Paulo Fonseca, que sempre mereceu a minha simpatia pela competência e pela atitude cordata, dentro e fora de campo.

Este ex-técnico do clube ucraniano Shakhtar Donetsk e agora ao serviço do Lille, em França, acaba de lançar um apelo firme aos dirigentes do Sport Lisboa e Benfica e do Sporting Clube de Braga, pedindo-lhes para não fazerem negócios com emblemas russos visando transferir para o país de Putin os jogadores Chiquinho e Tormena.

Diz Paulo Fonseca - e é difícil não lhe dar razão - que tais negócios, a concretizar-se, serão pagos com preço de sangue.

«Uma coisa eu sei: se o Benfica e o meu Braga fecharem negócio com os clubes russos, esse dinheiro virá a pingar com o sangue das crianças que morrem todos os dias na Ucrânia. E muitas dessas crianças amavam o futebol.» Palavras do antigo técnico do FC Porto e Braga, casado com uma ucraniana.

Tem toda a razão, o treinador do Lille. Basta reparar nas notícias mais recentes da criminosa invasão russa da Ucrânia: sete pessoas, incluindo um bebé com apenas 25 dias de vida, foram mortas no domingo por mísseis de Moscovo na região de Quérson: uma família inteira ficou desfeita.

Dois dias antes, mísseis hipersónicos russos tinham assassinado um menino de oito anos na região de Ivano-Frankivsk. 

Civis indefesos perante o mal absoluto que vem do Kremlin, traiçoeiro e homicida. O meu aplauso solidário ao Paulo Fonseca pelas palavras sentidas e desassombradas que escreveu.

Existências proibidas*

Cristina Torrão, 07.08.23

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Nesta imagem, vemos Gerd A. Meyer, um alemão de 77 anos, a pôr flores no local onde presume estar o seu pai sepultado. Gerd A. Meyer não devia existir. Quando grávida, a sua mãe podia ter sido presa, ou mesmo executada, caso se soubesse quem era o pai da criança.

Depois de os nazis terem invadido a União Soviética, em Junho de 1941, o jovem Anatoli Michailovitch Prokovski, de 19 anos, em vez de entrar na universidade, como planeara, foi alistado no Exército Vermelho. Caiu nas mãos dos alemães e enviaram-no para o campo de prisioneiros de Sandbostel, na região de Hannover. Os prisioneiros eram, muitas vezes, usados como mão-de-obra gratuita e Anatoli teve de trabalhar numa quinta das proximidades. Trouxe-lhe consequências inimagináveis: teve um romance com a filha do proprietário e ela engravidou.

Os nazis consideravam os prisioneiros e os trabalhadores forçados pessoas de menor valor, às quais se negavam os direitos mais básicos. Não se sabe quantas crianças nasceram de relações deste tipo, eram mantidas o mais secretas possível. Muitas mulheres, porém, não escaparam à denunciação. Umas foram presas, outras foram mesmo executadas. Terá havido abortos clandestinos e até infanticídios, não há dados fiáveis. Mesmo depois de terminada a guerra, as crianças fruto dessas relações eram discriminadas e insultadas, assim como as suas mães. Tudo isto contribuiu para que pouca gente revelasse o seu segredo.

A historiadora alemã Verena Buser não se conforma com o facto de o assunto continuar a ser ignorado e de o Estado alemão não ter ainda reconhecido o sofrimento dessas mulheres. Por isso, ela reúne informações, testemunhos e relatos das vidas de pessoas nascidas nestas circunstâncias, com o intuito de criar uma exposição itinerante, a ser inaugurada em Dezembro de 2024.

Não saber quem era o seu pai, causava muito transtorno a Gerd A. Meyer. Ele não tinha medo da verdade e tudo fez para a descobrir. Compreendia o silêncio da sua mãe, mas dificultou-lhe muito a pesquisa. Só em 2009, num centro documental de Dresden, teve a confirmação da identidade do progenitor e do que lhe aconteceu. Anatoli Michailovitch Prokovski contraiu uma doença grave, devido às condições deploráveis no campo de prisioneiros, e acabou por morrer, em Fevereiro de 1945, sem saber que iria ser pai ainda nesse ano.

Gerd A. Meyer entrou em contacto com os seus parentes russos, residentes em Semetchino, uma pequena cidade perto de Moscovo. Visitou-os e foi bem recebido, sentiu-se aceite, naquela família. Além disso, foi autorizado a modificar o seu nome. A novidade está no “A.”, uma abreviatura de Anatolievitch, ou seja, “filho de Anatoli”.

No campo de prisioneiros de Sandbostel, havia uma vala comum, onde se enterravam anonimamente os cadáveres. O local serve de memória, está cuidado e ajardinado. É muito provável que Anatoli também esteja lá sepultado. O filho tirou-o do anonimato, pondo lá uma cruz com o seu nome, a sua data de nascimento e a da morte. Visita-o regularmente e leva-lhe flores.

 

* Baseado num artigo do Jornal Católico da diocese de Hildesheim (edição nº 23, 11 de Junho de 2023).

Reflexão do dia

Pedro Correia, 27.07.23

«Para captar os incautos de todo o mundo, o putinismo ergueu-se como defensor dos "valores morais tradicionais", e sobretudo da Cristandade.

Moscovo seria a Nova Roma da Ortodoxia, a proteger as suas ovelhas, onde quer que estivessem.

Mas os selvagens ataques à cidade de Odessa, mais monstruosos por se disfarçarem de "bombardeamentos cirúrgicos a alvos militares", conseguiram também destruir um símbolo maior da Fé.

Na verdade, a delapidação generalizada da Catedral do Salvador e da Divina Transfiguração mostra bem a face do "protector". Fundada no século XVIII, foi declarada o maior templo da Nova Rússia em 1808. Jaz agora em ruínas, fruto da política de terra queimada do santo Kremlin.»

 

Nuno Rogeiro, na Sábado

O feitiço volta-se contra o feiticeiro

A maior ameaça ao poder de Putin desde o ano 2000

Pedro Correia, 24.06.23

Ler (22)

Da espantosa actualidade de Tolstoi

Pedro Correia, 17.06.23

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Como relatei aqui, tracei como uma das minhas metas de leitura para 2023 a visita, já tardia, a este monumento literário que é Guerra e Paz. Cumprindo, como patamar mínimo, um capítulo por dia: assim chega-se lá.

Pelo menos a meio já cheguei. A meio do romance, o que significa também a meio do segundo dos três volumes. Mais de 600 páginas ficaram para trás. Com 109 personagens até ao momento, se as contas não me falham. Entre elas, o próprio Napoleão Bonaparte - além do imperador russo, Alexandre.

Como também já assinalei aqui, é um romance que exige ser cartografado. Temos de ir elaborando um quadro com as figuras principais e secundárias, que vão entrando e saindo: só assim evitamos perder-nos no imenso emaranhado do enredo. 

 

Regresso ao tema só para assinalar um trecho que ontem li, na página 215 deste segundo volume, a propósito da brutal ofensiva napoleónica contra os russos em 1812. Mesmo à entrada do Livro Três (são quatro no total, com 15 partes). 

É o que passo a transcrever - com a devia vénia à memória do tradutor, o filósofo José Marinho:

«No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa Ocidental atravessaram a fronteira e a guerra começou: quer dizer que se deu um acontecimento contrário à razão e a toda a natureza humana. Alguns milhões de homens cometeram uns contra os outros quantidade tão considerável de crimes, enganos e traições, roubos, pilhagens, incêndios e morticínios, como a história de todos os tribunais do mundo não comporta durante séculos; e, entretanto, as pessoas que cometiam esses crimes não os consideravam como tais.»

É espantoso, o poder sugestivo da grande literatura. Podemos ler estas linhas, escritas há 160 anos, como se retratassem a guerra que desde 24 de Fevereiro de 2022 dilacera a fronteira oriental da Europa. Com a diferença de que os russos, em vez de agredidos, são desta vez os agressores.

Num acontecimento contrário à razão, como Tolstoi tão justamente escreveu. 

 

O escritor chegou a pensar num título muito diferente para esta obra-prima: Tudo Está Bem Quando Acaba Bem era o que tinha em mente. Optou pela versão mais concisa e solene, sem pista alguma para o desfecho.

Da ficção para a realidade, anseio para que possa ser este o título de um futuro romance em torno da dramática guerra de libertação que os ucranianos hoje travam na sua própria terra. Tudo está bem quando acaba bem.

E que o fim demore menos do que o da Guerra e Paz

O vírus putinesco

Pedro Correia, 22.03.23

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Imagem extraordinária, colhida ontem em Moscovo. A «confiança» dos chineses em relação à Rússia é tão inequívoca que toda a delegação de Pequim se mostrou de máscara anti-covid sempre posta enquanto Vladimir Putin e Xi Jinping palravam num sumptuoso salão do Kremlin. 

Podem falar vezes sem conta em «aliança»: as imagens desmentem tais palavras sem margem para dúvidas. O vírus putinesco tem a má fama de ser letal. Toda a precaução contra tal moléstia é altamente recomendável.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 24.02.23

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«É com vergonha que vejo, depois de um ano de guerra, que ainda há muitos europeus que se precipitam para oferecer à Rússia territórios que não são deles. Nem deles, precipitados, nem deles, russos. Porque são territórios ucranianos. 

Estes precipitados falam da paz como o vizinho que quer dormir e não quer saber da violência doméstica no andar de cima. Como não quer barulho, quer é que marido e mulher se entendam, para baixar os decibéis lá do prédio.

(...) À Rússia basta-lhe retroceder e desistir. Mas parece que nem isso sabe fazer. Não descansará enquanto não se invadir e destroçar a si própria.»

Miguel Esteves Cardoso, no Público