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Em Moçambique reina a indeterminação. A inacção governamental - e as eleições ocorreram há já dois meses - enquanto as manifestações se sucedem, por todo o país. E continua a violência policial - entretanto as forças armadas mantêm-se calmas, numa espécie de "neutralidade activa". E também surgem, cada vez mais, respostas violentas das populações, investindo contra instalações públicas, privadas e empresariais. Nas grandes cidades e nos entroncamentos viários levantam-se barricadas, impedindo o trânsito - e acabo de ler que "brigadas" manifestantes irrompem pelas centrais eléctricas exigindo a interrupção da produção. Nisto já há centenas de feridos e cerca de noventa mortos. Grassa o temor de uma hecatombe, fervilham os rumores e as teorias conspiratórias. Cá longe recebo catadupas de mensagens, filmes, imagens. Telefonemas, preocupados. Opiniões diversas. Mas unânimes no anseio da paz, da "resolução do conflito" emergente.
De quando em vez chega um sinal de que a vida continua, assim esperançoso. Ontem recebi esta mensagem, reencaminhada, uma crónica das barricadas de Maputo (da qual desconheço a autoria). Será apócrifa? Talvez não o seja ("cheiro-a" verdadeira). Mas si non è vero é ben trovato:
Permitam-me partilhar convosco algo inusitado que aconteceu-me esta manhã!
Na manhã de hoje, decidi ir à Matola Gare visitar um velho amigo. Na zona de Baião, encontrei uma barricada dos manifestantes a "cobrar portagem", eu com a minha camisa do Sporting CP pus-me a negociar com eles para atravessar, e um deles diz: "grande sportinguista..." e eu com um tom de orgulho, respondi: - SIM! e somos campeões, somos Spoooorting, e um dos manifestantes na barricadas, diz: passa lá boss, vocês do Sporting estão a sofrer maningue.
Não à ingerência - Solidariedade com o povo moçambicano e respeito pela sua soberania
Já ontem referi aqui a posição do PCP no Parlamento Europeu sobre a situação em Moçambique. Hoje, um amigo meu moçambicano - que não lera o meu postal - enviou-me a ligação a este filme perguntando-me de quem se trata, e juntando à questão uma breve afirmação "Repeti três vezes a ver se estava a escutar correctamente!". Noto que este meu amigo não é um exaltado oposicionista, é um muito desiludido e preocupado crítico daquele regime.
Justifica-se ouvir o 1'24'' da intervenção do deputado João Oliveira. Poderá parecer que não é surpreendente, a retórica é similar a todas as intervenções que o PCP faz sobre situações internacionais. Mas para quem conhece um pouco do regime moçambicano e da situação actual do país é pungente ver a mediocridade, pavloviana, desta posição do PCP. Podia até ter optado por um discurso mais neutral, sem apoiar pressões externas. Mas assume o partido das autoridades estatais locais. Em nome de quê?, de que patética memória de velhas e desaparecidas solidariedades internacionalistas?
Neste 1'24'' o PCP comprova que é um cadáver. Desadiado.
Há dias aqui referi o demasiado longo (relativo) silêncio da imprensa portuguesa sobre a situação política em Moçambique, originada por mais uma mega-fraude eleitoral, a qual veio na sequência de uma crescente criminalização do Estado e enorme aumento da pobreza no país. Mas nos últimos dias, e finalmente, tanto a imprensa escrita como a audiovisual tem incrementado as referências a essa situação. A qual é um verdadeiro estertor de uma autocracia cleptocrática, um "Outono do Patriarca", para convocar esse monumento de Garcia Marquez. E que tem provocado já dezenas de mortos e centenas de feridos devido à repressão policial - e aduzo que no país a polícia está mais equipada do que o exército, ao invés que é habitual, devido ao processo de reorganização acontecido após a guerra civil.
Mas por cá continua o silêncio político. Alguns partidos têm referido o assunto (BE, CHEGA, IL), mas o "centrão" cala-se.
Sobre o assunto nada há a esperar do Presidente Rebelo de Sousa, cuja superficialidade é consabida. E extremada quando sobre Moçambique - eu lembro a minha estupefacção, irada, no seu primeiro empossamento, pois convidou apenas três chefes de Estado: o espanhol, o brasileiro e... o moçambicano. Isto quando o poder de Maputo fazia já inaceitáveis razias no centro do país, para além da deriva cleptocrática instalada. E recordo que ainda há pouco, já na sequência de outras visitas sem objectivos políticos discerníveis, Rebelo de Sousa foi a Moçambique, destemperadamente, inaugurar um hotel de um grupo português. Não só em plena vigência deste degenerado poder, não só após a crise diplomática entre os países devido à indiferença do governo moçambicano face ao assassinato de um empresário português no centro do país, acontecido por razões militares. Mas, ainda por cima, 15 dias depois da associação de Maputo a uma posição "neutral" face ao imperialismo russo. Ou seja, é normal o desatino de Rebelo de Sousa nestas questões.
Mas os partidos do centro podem actuar. Em tempos aqui muito saudei a excepcional intervenção do então eurodeputado Paulo Rangel, que no Parlamento Europeu esteve imensamente bem ao colocar no centro de debate político internacional a questão do Cabo Delgado e da inacção do governo de Maputo. Foi uma acção parlamentar - que surtiu efeitos - que muito honrou a carreira política de Rangel.
E lembro que também nessa altura Paulo Rangel dedicou um acertadíssimo artigo no Público sobre a questão do Cabo Delgado. Criticando a tibieza do governo português. Recupero algumas das suas acertadíssimas palavras, pois tão adequadas são ao actual governo e ao actual ministro dos Negócios Estrangeiros: "A actuação do governo português é tíbia e decepcionante. Limita-se a declarações, quase extorquidas a ferros, do ministro dos Negócios Estrangeiros. Fala no papel da CPLP, mas ninguém ouve falar dela. Em Bruxelas, é tal a timidez dos esforços de Portugal, que ninguém diria que está em jogo a vida de centenas de milhares de cidadãos de um país irmão." E mais: "Nem só o nosso Governo decepciona; também a esfera pública e a sociedade civil desiludem. Diante de crimes tão ominosos, como é explicável este silêncio brando, esta letargia conformada e conformista?"
Abaixo transcrevo um bom texto sobre o assunto, publicado na "Sábado", da autoria de João Carlos Batalha, o "Volta para o silêncio, Moçambique" (disponível para assinantes).
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Volta para o silêncio, Moçambique
Por: João Carlos Batalha, in Sábado
A cumplicidade suja com o roubo sangrento de Moçambique é mais uma mancha de vergonha para Portugal.
A geração anterior à minha não se apercebeu disto, e a seguinte voltou a esquecê-lo. Mas, nascido em 1978, a primeira vez que soube que existia no mundo um sítio chamado Timor-Leste foi em novembro de 1991, quando o massacre de Santa Cruz trouxe esse território longínquo de novo para os olhos de Portugal e do mundo. Por essa altura – tinha eu 13 anos – já as aulas de História na escola me tinham ensinado a ladainha do Portugal país de heróis, que deu novos mundos ao mundo e que espalhou a língua e a concórdia pelas sete partidas. Já me tinham mostrado no mapa todas as ex-colónias africanas (nem todas; não referiram o Forte de S. João Baptista de Ajudá, essa capital do ridículo). Mas sobre Timor, nem uma palavra. Nem na escola, nem em casa, nem no país. Portugal, esta entidade com um talento instintivo para a cobardia organizada, varreu o abandono de Timor e dos timorenses para debaixo do tapete da vergonha coletiva, e a geração nascida imediatamente a seguir à descolonização nunca sequer ouviu falar do lugar. Isto nem é uma crítica à descolonização que, pelas circunstâncias em que foi feita, dificilmente podia ter saído melhor. É uma crítica, ou um lamento, à nossa queda para a amnésia seletiva. À nossa tendência para, usando a expressão muito portuguesa, existirmos no mundo com "muito medo e pouca-vergonha".
Ontem Timor, hoje Moçambique. Mais de um mês depois das eleições presidenciais e legislativas naquele país e quase três semanas depois do anúncio de resultados obviamente fraudulentos que atribuíram a vitória à Frelimo, partido no poder desde a independência, há quase 50 anos, o Estado português continua a assistir silencioso à repressão brutal das manifestações de protesto do povo moçambicano, que se saldaram já em dezenas de mortos e centenas de feridos. Venâncio Mondlane, o candidato cuja vitória foi roubada pelo regime, está fugido do país, em parte incerta, depois de, ainda antes do anúncio oficial dos resultados, o advogado e um mandatário da sua candidatura terem sido assassinados com rajadas de tiros na via pública.
Em Moçambique, um país capturado por um partido único transformado numa máquina voraz de corrupção e rapina, a democracia está a ser assaltada por rajadas de metralhadora e disparos de gás lacrimogéneo. O que faz o Governo português? Acompanha "com grande preocupação", nas palavras moles e prudentes do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel. Não é a primeira vez que a Frelimo falseia resultados eleitorais para se manter no poder, só que desta vez os moçambicanos estão mesmo fartos e mobilizaram-se em torno de Mondlane, um candidato da oposição que, pela primeira vez, conseguiu romper a hegemonia do partido-Estado.
No momento em que Moçambique mais precisa do apoio internacional para resgatar a sua democracia, os apelos do Governo português à contenção e ao diálogo são demasiado pouco, demasiado tarde. A CPLP é a inutilidade habitual, incapaz de tomar uma posição clara e assertiva sobre as violações eleitorais testemunhadas pela sua própria missão de observação. Em Portugal, o Presidente da República saúda e aplaude a passividade do Ministério dos Negócios Estrangeiros no mesmo fôlego em que invoca o estatuto sentimental de Moçambique como sua "segunda pátria". Marcelo Rebelo de Sousa limita-se a desejar que "tudo corra pelo melhor", semanas depois de ser óbvio que está a correr pelo pior. No Parlamento, Chega, Iniciativa Liberal e Bloco de Esquerda apresentaram projetos de resolução apelando ao Governo para que não reconheça os resultados eleitorais e faça pressão para que o roubo da eleição seja investigado e os verdadeiros resultados divulgados. É o mínimo, mas continuamos à espera de que alguém no Governo se comova.
Ontem Timor, hoje Moçambique. Portugal tem uma relação sombria com os seus "países-irmãos", que consiste na cumplicidade vergonhosa com os piores abusos, em troca de uma participação, mesmo que modesta, no saque, embrulhada em plácida contenção e sentido de Estado dos partidos no poder. Em Maputo, a Frelimo está a carimbar com sangue a repressão à vontade popular dos moçambicanos, reforçando a sua captura de um país martirizado pela pobreza e pela corrupção. Não tarda, o trabalho estará feito, os mortos enterrados e os negócios, de novo, de vento em popa. Com que cara os portugueses encararão os seus "irmãos" de Moçambique, não me perguntem. Com o nosso talento para o realismo, a próxima geração não se lembrará de nada.
Será, decerto, uma das fotos do ano. É do Eric Charas: Maputo, 5.11.2024, um puto com o seu "colete à prova de bala" nas manifestações de repúdio por mais uma fraude eleitoral.
Na RTP 3 um bom momento sobre Moçambique, com as intervenções do investigador Fernando Jorge Cardoso e do jornalista Pedro Martins (que foi correspondente naquele país durante seis anos). A partir dos 26' 30'', nesta ligação.
(Ou seja, por cá nem toda a gente é... Miguel Relvas).
(Moçambique, esta semana. Desconheço autor e local exacto da fotografia)
Em Moçambique, após 50 anos de poder o partido-Estado - entretanto tornado uma mera tétrica cleptocracia - parece desabar, face à enorme adesão popular aos protestos contra mais uma escandalosa fraude eleitoral, nas presidenciais, regionais e legislativas de Outubro. Correspondendo ao apelo de Venâncio Mondlane - o candidato presidencial declarado "derrotado" - por todo o país se suspendeu o trabalho, uma verdadeira "greve geral", em repúdio pela fraude. Até os funcionários públicos, tradicional suporte do partido governamental, aderem. Desfiles pacíficos - os "tumultos" prenunciados pela intelectualidade cliente do regime - ocorrem em inúmeros locais, sendo reprimidos pela polícia. Ponderamente recuando diante da repressão policial, em Maputo a população protesta batendo tachos e panelas à janela. A polícia dispara gás lacrimogéneo contra as casas onde se batem tachos. (As ligações são pequenos filmes. Mas eximo-me a reproduzir filmes onde se vê a polícia a disparar munições reais sobre a população, mostrando mortos ou feridos).
Desde há dias que as comunicações estão cerceadas pelo Estado. O uso da internet é reduzido, os "dados móveis" inacessíveis. Redes como Whatsapp, Facebook e ex-Twitter estão muito condicionadas. Tudo para obstar a divulgação das acções de protesto, previstas para terem um cume, depois de amanhã (7.11), com um desfile em Maputo encabeçado por Venâncio Mondlane - este por enquanto em local incerto, por razões de segurança (dois dos seus colaboradores mais próximos foram já assassinados). Ontem o governo convocou os embaixadores residentes, pedindo colaboração no que chama "manutenção da ordem". Muitos aventam ser este o passo cénico para a declaração do estado de emergência ou de sítio. Que proíba as manifestações públicas, e permita a continuidade - em regime ainda mais musculado - do actual poder.
A acontecer será uma "fuga para a frente" do actual regime, julgando assim conter o levantamento dos despojados, dos calcados, contra o execrável regime, esta verdadeira "revolução do capim", digo-a assim, evocando a magrebina "revolução de jasmim".
Uma "fuga para a frente" que se sonha escorar nos dizeres de alguns intelectuais e históricos do partido que aventam a "depuração" do Frelimo, a velha ladainha da reemergência "da Frelimo" (boa) sobre "a Frelimo" (má). No fundo, glosando o Lampedusa do "Leopardo", na proposta de que "é preciso que nada mude para que tudo continue na mesma". Mas que mais desejará - e necessitará - da repressão paramilitar e/ou militar, ou até no muito aventado "putsch militar" que reponha a "ordem". O que talvez venha a ser difícil, pois grassam informações sobre demonstrações de solidariedade entre militares no terreno e manifestantes... Mas tudo dependerá dos anseios e capacidades das chefias militares, elas próprias emanadas do poder político.
Há um ano, aquando do abstruso abuso eleitoral nas autárquicas, pareceu-me óbvio que estas eleições seriam similares. E que não haveria relevante atenção internacional sobre isso. Não só devido à usual docilidade face aos desmandos estatais mas também por ser este 2024 um ano de frenesim eleitoral internacional (64 eleições nacionais e ainda para o parlamento europeu), ainda por cima com as presidenciais americanas, sempre monopolizando atenções. Isso, mais os posicionamentos face aos conflitos geoestratégicos actualmente dominantes, reduz a hipótese de reais exigências externas para a imposição de uma ordem democrática.
Diante de tudo isto recordo que Moçambique é o segundo país mais populoso da CPLP, essa organização que sempre é dita como central na política externa portuguesa. Mas a comunicação social portuguesa distrai-se. Não há verdadeira atenção sobre a situação, inexistem destaques ou análises actuais profundas. Em Maputo está uma delegação da RTP-África, sempre "cinzenta", nunca atreita a incomodar os poderes locais, e incapaz de entrar no agendamento dos serviços noticiosos em horário "nobre". Durante poucos dias esteve uma equipa da CMTV, sem obter autorização de trabalho (excentricidade denotativa do momento político do país), tendo acabado por ser proibida de exercer e escoltada até ao avião. As outras estações não enviaram ninguém ("a SIC já nem tem dinheiro para isso", diz-me um jornalista amigo). Os jornais "de referência" - à excepção da "Sábado" - não têm gente no terreno, limitando-se a ecoar os despachos da LUSA. Esta tem um activo correspondente em Maputo, Paulo Julião, que ontem foi baleado (com munição de borracha, felizmente). Este contexto implica um quase silêncio noticioso sobre Moçambique, o reforço da desatenção sobre a repressão.
Trata-se assim de nós-próprios combatermos este relativo silêncio imposto. E de convocarmos os nossos representantes para que não tergiversem diante do estertor do poder autocrático de Maputo. Nem se apiedem da necrose do Frelimo - em nome de velhas e anacrónicas solidariedades partidárias ou de espúrias simpatias.
["A TVM a reportar tumultos em Portugal e não fala do caos nos arredores de Maputo"]
O processo eleitoral moçambicano tem sido complexo. Com assassinatos. A seguir ao anúncio dos resultados houve manifestações de repúdio em várias cidades, fazendo temer a disseminação de violência, o que felizmente não aconteceu, pelo menos em grande escala. Recebi imensas mensagens no frenesim comunicacional destes últimos dias - reduzido desde ontem, pois o Estado bloqueou os "dados móveis" para acesso à internet (fazendo lembrar quando há 14 anos bloqueou as comunicações telefónicas mais populares, aquando de tumultos em Maputo). Entretanto vários amigos, moçambicanos e portugueses, enviaram-me esta mensagem (foto e legenda): no telejornal do canal estatal (TVM) foram noticiados os "desacatos" na Grande Lisboa enquanto se calava qualquer referência à turbulência acontecida nesse dia naquele país. O controlo da imprensa estatal é coisa típica, não monopólio moçambicano. Mas não deixa de ser notável.
Ontem assinei uma petição pública, avessa aos deputados André Ventura e Pedro Pinto, autores de declarações inadmissíveis sobre estes motins nas cercanias de Lisboa. Não sou adepto, nada mesmo, da criminalização de deputados por declarações de teor político, fazê-lo arrisca ser um destapar da caixa de Pandora. Mas abstenho-me agora desse princípio, associando-me a uma manifestação de repúdio diante de uma verdadeira abjecção - o deputado Pinto chegou a apelar que os agentes "atirem para matar". Em última análise, é a própria polícia que não merece tamanho disparate! E também sabendo, como o disse Sérgio Sousa Pinto, que os deputados nunca abdicarão da imunidade parlamentar.
Sobre a real situação securitária em Portugal nada sei, como escrevi há pouco. Mas sobre estes tumultos actuais concordo com o que ouvi ontem de Ângelo Correia na CNN (num programa de comentariado com Marques de Almeida, Sá Lopes e Sousa Pinto, que ontem descobri aquando em zapping) - o que me provocou um "ó diabo, eu a concordar com o Ângelo Correia?!" Ou seja, esta problemática não é apenas securitária. E não posso discordar mais da jornalista Sá Lopes, a qual reproduz uma ignorância generalizada na auto-reclamada "esquerda", essa que reduz as preocupações securitárias a meras "bandeiras da direita". Denotando como é espantosa e veemente a capacidade de intelectuais e jornalistas em nada aprenderem com as realidades circunvizinhas.
Enfim, apesar de desconfortável com a iniciativa criminalizadora de deputados, tendo recebido de uma queridíssima amiga (cherchez la femme, sempre) a petição, li-a e assinei-a, juntando-me a cerca de 70 000 outros (no momento em que escrevo o postal). É óbvio que a associação a uma iniciativa colectiva implica sempre a suspensão de alguns critérios próprios, o inflamar de alguns pruridos. Mas, e repito-me, o grunhismo dos deputados CHEGA é tamanho que a coceira se justifica.
Explicito dois desses focos de inflamação, para que se perceba o quanto me irritaram as declarações de Pinto e Ventura, pois só tamanha abjecção me faria "juntar", mesmo que modestamente, a tais pessoas num rol de assinaturas. A petição é encimada por um vasto rol de "primeiros signatários". Nele consta o nome do socialista Porfírio Silva, um político de execrável indignidade - foi ele que veio clamar que Passos Coelho usava a doença da sua mulher para colher dividendos políticos. É incompreensível como outros ainda lhe dão crédito para ser "alguém" na vida política e/ou de cidadania.
O outro caso é mais significativo. Eu defendo que os estrangeiros, residentes ou não, podem manifestar-se sobre a vida política portuguesa. Mas fico a menear a cabeça, com indignação (nada estratégica, friso), quando vejo o angolano José Eduardo Agualusa a surgir como um dos "primeiros signatários" desta petição política sobre Portugal. Sabendo-o sempre em calmaria pública no Moçambique onde reside. E agora surgindo em declarações públicas suportando o bloco social no poder, invectivando o candidato Mondlane - mesmo depois da comitiva deste ter sido baleada pelas forças policiais. Compreendo esse silêncio sobre o país que habita. Grosso modo foi o meu - ainda que não radical -, na modéstia de qualquer repercussão que pudesse ter, pois sempre me dizendo meteco. Mas se isso compreendo também interpreto a sua adesão actual, enquanto segue plácido diante da violência estatal sistémica, de inúmeras declarações abrasivas, do rumo nacional, feito de coisas tao mais graves do que isto que se passa em Lisboa. Sobre as quais nada... assina
Por isso, e independentemente das nacionalidades de cada um, percebo como é necessário um grande desplante para que o autor surja agora com posicionamentos políticos em Portugal. Num rumo - que se quer "premiável" - feito de indignações estratégicas.
Ou, dito de outra forma, Agualusa é tal e qual a TVM.
1. Escolho uma foto tirada em Nampula com mais de uma década. "Uma delícia polissémica", disse-a então. Tremendamente denotativa, senti então. E assim a sinto hoje, agora.
2. Os resultados finais foram anunciados. Uma vitória esmagadora do Frelimo - a permitir a revisão da constituição, julgo -, a devastação do Renamo. Com o esfacelar da oposição, a degenerescência do Renamo, a regionalização do MDM - este também em decadência desde a morte do seu presidente Simango - e a tardia constituição da candidatura de facto unipessoal de Mondlane, a vitória frelimista seria mais do que previsível.
Tudo reforçado pela grande abstenção acontecida. E sustentado pela sua base social de apoio nacional, o âmbito dos seus militantes e simpatizantes, a influência do voto tradicionalizado, também do atávico. E por ter um novo candidato, apresentado como indivíduo sem mácula.
3. Ou seja, em termos de votos efectivos nada surpreende que o Frelimo tenha ganho as eleições. Dito de outra forma, não era preciso isto tudo! Agora o partido tem uma vitória ilegitimada, interna e externamente. Fruto de uma total irracionalidade política.
4. Por causa disso surgem manifestações em vários pontos do país. Não são "jovens", são moles de "cidadãos" contestando o rumo. Entenda-se, a questão não é quantitativa (percentagens de votos, eleitos), é qualitativa, a legitimidade do processo... nacional. Espero, sinceramente, que não surjam "desacatos" - esta inovação semântica que alguma imprensa está a usar para os tumultos agora importados para a Grande Lisboa.
5. Uma nota sobre a imprensa portuguesa. Do jornal "Público" (esse boletim ideológico) - esse mesmo que há pouco tempo anunciava Venâncio Mondlane como descendente de Eduardo Chivambo Mondlane - emana agora a ideia de que "Venâncio Mondlane é perigoso", porque "populista", e nisso imprevisível... Entenda-se, segundo o especialista local - pois dizendo-o o tal único "populista" -, ele será portador de uma visão de que representa o "povo" sem mediação, imbuído de uma retórica (e crença) nacionalista, e desprovido de um substantivo conteúdo programático. Tudo isso causador de uma "perigosa" (e irresponsável) imprevisibilidade, um não-futuro.
Não sei se as pessoas conseguem reconhecer alguns desses traços ideológicos noutro qualquer partido moçambicano...
Mas também importante para nós, portugueses, não sei se as pessoas se conseguem irritar tanto como eu com este tipo de jornalismo, escrito e podcasteiro. Dito "de referência".
6. Enfim, espero que não seja uma "noite longa" nas cidades moçambicanas. Paz, paz! É muito fácil estar atrás de um ecrã, ao teclado, a clamar "Avante". Mas "Paz", "Cuidado", é muito mais....
Revolucionário.
Em Maputo uma manifestação pacífica de repúdio pelos assassinatos de Dias e Guambe, convocada por Venâncio Mondlane, agregou inicialmente algumas poucas centenas de pessoas. Antes da chegada do candidato a polícia dispersou a maioria com cargas de gás lacrimogéneo. Quando o candidato chegou ao local deu uma "conferência de imprensa, rodeado de algumas dezenas de jornalistas (a RTP transmitindo em directo) e alguns, poucos, apoiantes - talvez da sua segurança. A polícia disparou gás sobre essa pequena mole que ali trabalhava (ligação para curto filme totalmente demonstrativo da situação) numa praça já vazia. O candidato presidencial teve de fugir em corrida, rodeado por alguns poucos dos seus.
Na quarta-feira passada a sua comitiva fora alvo de disparos com munição real em Nampula. Na sexta aconteceram os assassinatos de Maputo. (Há agora relatos videográficos da praça OMM mostrando cápsulas de munições reais que teriam disparadas pela polícia, mas não se pode afiançar tal).
Por cá, no sempre "Público" de hoje, o sociólogo moçambicano Elísio Macamo publica um interessante artigo. Usando a ferina armadura da ciência política e sociologia, das quais é exímio profissional, não deixa de se alongar sobre as causas passionais que foram invocadas pela polícia como causa dos assassinatos de sexta-feira. E, com pertinência retórica, elabora sobre a luta interna no Frelimo - partido que ganhou as eleições, avança, decerto que assente na história eleitoral do país -, luta essa que terá causado estas mortes, acontecidas apenas para desmererecer o novo presidente Chapo. Com Dias e Guambe assim vítimas de "balas perdidas", num "fogo cruzado que pouco tem a ver com eles".
Ou seja, esmiuce-se bem o argumento: esta violência não é sistémica, é um desvio, qual epifenómeno (eu também sei usar termos dos jargões, ainda que seja menos exímio). E, já agora, retira-se assim que as verdadeiras e substantivas dinâmicas do país se encontram encerradas no jogo interno do Frelimo, como se pairando sobre uma quase insignificante população e seus (ir)representantes excêntricos ao partido no poder.
O que não consigo perceber é isto: se o Frelimo ganhou as eleições com naturalidade, tal como o vem fazendo (por exemplo, nas últimas autárquicas em que Mondlane também foi "derrotado"), qual a razão do Estado, e sua polícia, não deixar em paz uma manifestação pacífica?
(Mas essa, claro, é uma resposta que nunca obterei num jornal como o "Público").
No mesmo dia em que de Maputo recebo iradas mensagens com as declarações ventríloquas do avatar José Eduardo Agualusa, dizendo que Moçambique "não precisa de Venâncio Mondlane", Elvino Dias, advogado e lugar-tenente do candidato Venâncio Mondlane, acaba de ser assassinado no centro de Maputo [Adenda: no mesmo atentado foi também assassinado Paulo Guambe, mandatário do partido PODEMOS]. O que mais é necessário para uma reacção da comunidade política portuguesa? E, secundariamente, do "campo literário" nacional, sempre simpático para com estes produtores de batiks literários?
[People have the power (Patti Smith sings "People Have The Power" with a choir made up of 250 volunteer singers at NYC's Public Theater. This was done in 2019. Daveed Goldman on guitar and Stewart Copeland playing the frying pan.)]
Isto tudo se liga, se articula... e contradiz! No seu mural de Facebook o Henrique Pereira Dos Santos traz esta versão coral da "People Have The Power" da Patti Smith - a qual, vos garanto por empírico conhecimento, cruza gerações. Canção hino que tantas vezes cantámos, nas pistas ou por aí afora, às vezes exultantes como se gente, outras cantarolando em ira amesquinhada.
Tudo se liga, tudo se contradiz!, digo eu. Estou a ler o imprescindível "Tudo é Tabu" do Pedro Correia (Guerra e Paz Editores) , um rol de 100 casos de censura promovida pela vigente e descabelada ideologia "identitarista", e ontem cruzei o 75º caso, exactamente o respeitante à Patti Smith, até ela alvo do cretino modo "cancel"!
Ao mesmo tempo vou, cá de longe, recebendo as novas sobre as eleições em Moçambique - país onde a "People Have The Power" se canta "Povo no Poder" -, mais um episódio da inenarrável e despudorada apropriação do voto popular, do "Power" do "People". Até quando?, a que custos?, como se chegará ali ao "Basta" ("Chega" é uma palavra agora politicamente poluída, entenda-se...)?
Mas tudo se liga, tudo se contradiz! Pois cantarolo a canção sentado no meio deste meu Povo pensionista, decrépito, cujo poder se restringe a votar nesta pobreza mental e moral, como se vê na gritaria socialista e fascista à volta do orçamento, no dia em que juristas forçam a arrastar um homem doentíssimo num tribunal apenas para justificarem o seu lacaio imobilismo, servis a este estado do Estado.
Tem o "people" o "power"? Tem, estive ontem a ver as sondagens americanas, Estado a Estado... É quase certo que Trump ganhará.
"...the people have the power / to redeem the work of fools"?
É mesmo melhor cada um tomar o combustível que lhe apetece (Vodka tónico para mim, sff) e ir para a pista, dançar e cantar. Sem esperança. Mas não desesperado.
(Bob Dylan - The Times They Are a-Changin' [LIVE IN ENGLAND - 1965])