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Delito de Opinião

A morte do jornalista moçambicano Mano Shottas

jpt, 14.12.24

Mano Shottas foi até agora um jovem moçambicano. Apresentando-se despojado dos habituais símbolos das malvadas utopias, sem cruzes ou crescentes, estrelas ou barbudos, metralhadoras ou alfaias - surge sim, no seu mural feito canal comunicacional, vestido com uma camisola do Barcelona, o de Messi. Não viveu a velha Paris, as estepes em guerra, não calcorreou o mundo. Encontro-o em Ressano Garcia mas até duvido que conhecesse Nelspruit...
 
Assim sendo, pois desprovido de embrulho épico ou cosmopolita, de ares "intelectuais", nunca será considerado, venerado, como um repórter bravo e bravio, como um Capa ou um Reed, apesar de ter mais ou menos a idade deles quando avançaram para as guerras que os celebrizaram. Ou mesmo - mais contemporâneo e "africanista" - desse Kapuscinski, o propagandista de Agostinho Neto. Por isso muito duvido que lhe venham a dedicar versalhadas de pé-quebrado, ditas "de resistência". Nem as mesuras da amnésia, sempre doadas àqueles Prémios Camões africanos que tantas loas teceram, no adequado in illo tempore, aos fuzilamentos e campos de concentração ditos revolucionários.
 
Pois Mano Shottas não foi até agora um "jornalista", de carteira profissional. Mas sim um tipo das "redes sociais", "sem filtros" e "editores", um mero "jovem". Alguns até o dirão um "vândalo"...
 
O filme é brutal, repito!!! Mano Shottas está em Ressano Garcia, a fronteira com a África do Sul. Está a fazer uma "live" - o jornalismo de cidadania, que tantos refutam e querem calar. Está a transmitir em directo a repressão policial (? - dizem-me que hoje soldados ruandeses estiveram ali em acção, mas não posso afiançar). A pequena vila está a ferro e fogo. Shottas, jovem bravo e bravio, filma e descreve. A repressão sobre o seu povo. É atingido, cai. Continua a emitir: "fui alvejado, pessoal... estou a morrer, pessoal". E morreu!
 
Nós aqui? Calados. E lá? Os instalados, escribas e outros, na ladainha da invocação de um passado que dizem glorioso - o dos campos de concentração, note-se, o do largar carregamentos de gente no mato, para serem "pasto de leão", lembre-se a miserável "glória" dos "tempos" da "mamã" e dos "papás"! E a prometerem "emendar-se"... depois de décadas tétricas.
 
Um homem vê o jovem Shottas a balbuciar, agonizando. E não pode deixar de clamar, cá de longe, e mesmo sendo estrangeiro: Anamalala! Basta! Acabou!

A indeterminação em Moçambique

jpt, 08.12.24

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Em Moçambique reina a indeterminação. A inacção governamental - e as eleições ocorreram há já dois meses - enquanto as manifestações se sucedem, por todo o país. E continua a violência policial - entretanto as forças armadas mantêm-se calmas, numa espécie de "neutralidade activa". E também surgem, cada vez mais, respostas violentas das populações, investindo contra instalações públicas, privadas e empresariais. Nas grandes cidades e nos entroncamentos viários levantam-se barricadas, impedindo o trânsito - e acabo de ler que "brigadas" manifestantes irrompem pelas centrais eléctricas exigindo a interrupção da produção. Nisto já há centenas de feridos e cerca de noventa mortos. Grassa o temor de uma hecatombe, fervilham os rumores e as teorias conspiratórias. Cá longe recebo catadupas de mensagens, filmes, imagens. Telefonemas, preocupados. Opiniões diversas. Mas unânimes no anseio da paz, da "resolução do conflito" emergente. 

De quando em vez chega um sinal de que a vida continua, assim esperançoso. Ontem recebi esta mensagem, reencaminhada, uma crónica das barricadas de Maputo (da qual desconheço a autoria). Será apócrifa? Talvez não o seja ("cheiro-a" verdadeira). Mas si non è vero é ben trovato:

Permitam-me partilhar convosco algo inusitado que aconteceu-me esta manhã!

Na manhã de hoje, decidi ir à Matola Gare visitar um velho amigo. Na zona de Baião, encontrei uma barricada dos manifestantes a "cobrar portagem", eu com a minha camisa do Sporting CP pus-me a negociar com eles para atravessar, e um deles diz: "grande sportinguista..." e eu com um tom de orgulho, respondi: - SIM! e somos campeões, somos Spoooorting, e um dos manifestantes na barricadas, diz: passa lá boss, vocês do Sporting estão a sofrer maningue.

 

 

Moçambique: o apear das estátuas

jpt, 06.12.24

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Aquando dos estertores dos regimes autocráticos são recorrentes estes momentos de derrube popular - e, depois, de "remoção" estatal - das estátuas dos seus dignitários, sempre erigidas em tentativas de os "imortalizar" e aos regimes "perpetuar".
 
As imensas imagens que tenho recebido de Moçambique - e que me recuso a partilhar - mostram que a violência campeia. Há várias que são tétricas (agora mesmo a desgraça acontecida no hospital de Chibuto), outras preocupantes (a queima de instalações empresariais, partidárias, até estatais), a indiciarem o descambar generalizado. Outras comoventes - o chefe de polícia (de Morrumbala?) a tentar refugiar-se em casa, sendo apedrejado já no seu quintal, diante do desespero da sua mulher...
 
Urge repetir que nada legitima esta repressão policial - é uma "violência estatal" não legítima, pois, mais que não seja, é serôdia. E nada justifica a "justiça popular" (expressão revolucionária, tão do agrado das correntes ideológicas em tempos viçosas, que nunca significou mais do que revanchismo).
 
Desse feixe de situações retiro, até espantado, uma noção: são agora várias as ocorrências acontecidas na província de Gaza, desde sempre "feudo" do FRELIMO, berço até de tantos dos seus líderes históricos. Até ali, no interior rural, a população voltou costas ao seu velho partido. Será que as elites políticas e as intelectuais (estas sempre tão menos relevantes do que se julgam) ainda não perceberam isso? Que anamalala!
 
E disso o símbolo mais gritante - e para mim mais surpreendente -, felizmente pacífico, encontro-o hoje, nesta imagem (que tirei de filme). Em Pemba a população apeando a estátua do general Chipande, proclamado herói da "guerra de libertação nacional" pois dito autor do seu "primeiro tiro". E que era o quarto na sempre murmurada como estipulada "dinastia" presidencial, os 4 grandes do partido: Machel, Chissano, Guebuza, Chipande. E que, chegada a sua era, delegou - porventura devido à sua idade, pois então já septuagenário -, indicando o actual presidente Nyusi.
 
Ou seja, o derrube (que já aconteceu, pelo menos numa escola) da estátua de Nyusi é apenas a afronta a um epifenómeno, uma personagem secundária, removível, por isso ainda passível de purificação. Mas o derrube da estátua de Chipande é o arrastar pelo chão da "legitimidade histórica". É mesmo um anamalala.
 
(Anamalala é a "palavra de ordem" em voga no país, termo macua que significa - mais ou menos - "basta"/"acabou")

Moçambique: assim se vê a força do PC

jpt, 28.11.24

Uma questão sobre Moçambique

jpt, 28.11.24

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"Homem forte de corange eestá preceguido com os inimigos" (Mitande, Mandimba, Niassa, 2002).
 
Esta frase, tão denotativa de uma mundividência, é por demais rica, polissémica, para ser manipulada para uma só situação. Mas ainda assim uso-a para a dedicar aos compatriotas do seu autor que clamam "este país é nosso!" e não de uma "mamã" ou de uns "papás". No fundo, apenas gente republicana, irada face a uma nobreza anquilosada.
 
Quanto a nós, cá de longe, não nos devemos imiscuir? Talvez sim, talvez não. Mas quando vemos, como hoje se viu com abundância, as forças militares e paramilitares a terem acções violentíssimas contra população desarmada, há algo que podemos - e devemos - perguntar.
 
Devemos perguntar isso ao presidente do Instituto Camões (o antigo Instituto da Cooperação), ao secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, aos ministros dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna e da Defesa (as tutela envolvidas), ao primeiro-ministro e até ao presidente da República.
 
Há um "Programa Estratégico de Cooperação Portugal-Moçambique 2022-2026" (google-se...). Nele, na sequência do que acontece há já décadas, consta um forte vector de "cooperação" incidindo na formação do oficialato policial e militar moçambicano.
 
Assim sendo, não têm estes nossos eleitos, nossos servidores, algo para nos dizer? Algum rescaldo do que vem sendo feito, algo sobre os frutos deste trabalho do Estado português?
 
Ou não temos nada a ver com isso, é assunto reservado aos dos gabinetes?

Eurodeputados portugueses sobre Moçambique

jpt, 27.11.24

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(Maputo, Av. Eduardo Mondlane, Fotografia de Luísa Nhamtumbo/LUSA)
 
 
De Maputo um amigo moçambicano avisa-me que ontem houve uma sessão no Parlamento Europeu, e deixa-me ligação para esta resenha das intervenções dos eurodeputados portugueses. Chama-me também a atenção para a posição do PCP, enfatizando a justeza das eleições de Outubro e atacando a oposição, bem como a "ingerência externa". (o comunicado daquele partido).
 
E nisso, de imediato, lembro-me do Camarada Pimentel, meu pai. Comunista "ortodoxo", sempre implacável com os "desvios de direita", tipo aqueles "eurocomunismos". Militante até à morte - já contei a história mas repito-a: muito doente, tão mirrado, no hospital, eu no fundo da cama, a minha sobrinha - sua neta querida - junto a ele, e antes de sairmos, hora de visita terminada, disse-lhe "avô, hoje estás com muito melhor aspecto, muito rosadinho". E ele, com um fio de voz, murmurou "rosa por fora, mas vermelho por dentro..." Morreu nessa noite, a última coisa que lhe ouvimos foi essa ironia, até cáustica...
 
Cresci a conversar com o Camarada Pimentel. E continuo nisso, num diálogo que me é intelectualmente profíquo. E moralmente penoso, pois ele, preocupando-se, não me desculpa o desarrumo seguido. E agora mesmo, quando - após ter visto vários filmes de hoje, com a polícia atropelar manifestantes com carros de assalto na Eduardo Mondlane, com soldados ruandeses nesta avenida, de cadáveres assassinados pela polícia no meio da rua em Nampula, etc. - lhe disse a posição do "Partido" sobre a situação de Moçambique, ele - como tantas vezes nas últimas décadas - semicerrou os olhos, meneou a cabeça. E lamentou "a falta de quadros no partido".
 
Eu, como já passa do meio-dia, servi-lhe um cálice de rum, carregado de carinho. E a mim também.

Os lagartos do Ídasse

jpt, 17.11.24

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Uma querida amiga enviou-me uma mensagem dizendo-me qualquer coisa como "tomas as dores de Moçambique como se seja o teu país, e também acho que o seja...". Respondi-lhe que está errada. Gosto do país e espero-lhe o menor mal que seja possível (desejar o "melhor" é uma utopia, e esta é sempre "a mãe de todas as..." desgraças). Mas não é o meu país, nem nunca o senti assim. Fui durante quase 20 anos, como um dia tão bem me (nos) explicou o então ministro José Mateus Katupha, metaforicamente um "cunhado" - ou seja, alguém que foi viver para a terra dos "donos". E gostou.
 
Explico-me, a ela e não só. Durante a década dos meus quarentas este regime moçambicano enquistou. Mas a política que me preocupava - até porque blogava - era a portuguesa. Pois sou um patriota (esse termo que os esquerdistas abominam...). Recordo uma alvorada em que olhei para o espelho e me insurgi num "vou chegar aos 50s e estes gajos ainda estarão no poder!", aquele execrável PS. O me que enojava nem era Sócrates - mariolas daqueles existem em todos os regimes, partidos, ideologias. Era a abjecta cumplicidade, conivência ou complacência desta "lisboa", e de vários que eu conhecera, um ou outro até amigo. E o que me preocupava era - como se veio a comprovar - o antidesenvolvimentismo que toda aquela camarilha clientelar promovia.
 
Sobre Moçambique? Trabalhava e convivia. Com gente empenhada, de densas biografias e de argúcia analítica, universitários na maioria, mas não só, um gabarito colectivo que imenso me faz falta neste remanso dos Olivais. Claro que nisso se discutia o país, seus rumos de desenvolvimento. Mas eu nem fazia proselitismo (nunca o fiz nem farei) nem opinava em público. Vim a escrever no "Canal de Moçambique" - um jornal de "oposição". Fi-lo porque um dia o amigo Fernando Veloso me convidou. "Pagas-me?", provoquei-o. "Claro, quanto queres?", respondeu. "490 meticais por uma página semanal", o equivalente um maço de Rothmans diário! Ele riu-se e acordámos. E durante anos nunca escrevi sobre política local.
 
 
 

O silêncio do nosso governo diante de Moçambique

jpt, 13.11.24

Acordo Ortográfico: “O cidadão Marcelo escreve como os moçambicanos”

Há dias aqui referi o demasiado longo (relativo) silêncio da imprensa portuguesa sobre a situação política em Moçambique, originada por mais uma mega-fraude eleitoral, a qual veio na sequência de uma crescente criminalização do Estado e enorme aumento da pobreza no país. Mas nos últimos dias, e finalmente, tanto a imprensa escrita como a audiovisual tem incrementado as referências a essa situação. A qual é um verdadeiro estertor de uma autocracia cleptocrática, um "Outono do Patriarca", para convocar esse monumento de Garcia Marquez. E que tem provocado já dezenas de mortos e centenas de feridos devido à repressão policial - e aduzo que no país a polícia está mais equipada do que o exército, ao invés que é habitual, devido ao processo de reorganização acontecido após a guerra civil.

Mas por cá continua o silêncio político. Alguns partidos têm referido o assunto (BE, CHEGA, IL), mas o "centrão" cala-se.

Sobre o assunto nada há a esperar do Presidente Rebelo de Sousa, cuja superficialidade é consabida. E extremada quando sobre Moçambique - eu lembro a minha estupefacção, irada, no seu primeiro empossamento, pois convidou apenas três chefes de Estado: o espanhol, o brasileiro e... o moçambicano. Isto quando o poder de Maputo fazia já inaceitáveis razias no centro do país, para além da deriva cleptocrática instalada. E recordo que ainda há pouco, já na sequência de outras visitas sem objectivos políticos discerníveis, Rebelo de Sousa foi a Moçambique, destemperadamente, inaugurar um hotel de um grupo português. Não só em plena vigência deste degenerado poder, não só após a crise diplomática entre os países devido à indiferença do governo moçambicano face ao assassinato de um empresário português no centro do país, acontecido por razões militares. Mas, ainda por cima, 15 dias depois da associação de Maputo a uma posição "neutral" face ao imperialismo russo. Ou seja, é normal o desatino de Rebelo de Sousa nestas questões.

Mas os partidos do centro podem actuar. Em tempos aqui muito saudei a excepcional intervenção do então eurodeputado Paulo Rangel, que no Parlamento Europeu esteve imensamente bem ao colocar no centro de debate político internacional a questão do Cabo Delgado e da inacção do governo de Maputo. Foi uma acção parlamentar - que surtiu efeitos - que muito honrou a carreira política de Rangel.

E lembro que também nessa altura Paulo Rangel dedicou um acertadíssimo artigo no Público sobre a questão do Cabo Delgado. Criticando a tibieza do governo português. Recupero algumas das suas acertadíssimas palavras, pois tão adequadas são ao actual governo e ao actual ministro dos Negócios Estrangeiros: "A actuação do governo português é tíbia e decepcionante. Limita-se a declarações, quase extorquidas a ferros, do ministro dos Negócios Estrangeiros. Fala no papel da CPLP, mas ninguém ouve falar dela. Em Bruxelas, é tal a timidez dos esforços de Portugal, que ninguém diria que está em jogo a vida de centenas de milhares de cidadãos de um país irmão." E mais: "Nem só o nosso Governo decepciona; também a esfera pública e a sociedade civil desiludem. Diante de crimes tão ominosos, como é explicável este silêncio brando, esta letargia conformada e conformista?"

Abaixo transcrevo um bom texto sobre o assunto, publicado na "Sábado", da autoria de João Carlos Batalha, o "Volta para o silêncio, Moçambique" (disponível para assinantes).

 

***

Volta para o silêncio, Moçambique

Por: João Carlos Batalha, in Sábado


A cumplicidade suja com o roubo sangrento de Moçambique é mais uma mancha de vergonha para Portugal.

A geração anterior à minha não se apercebeu disto, e a seguinte voltou a esquecê-lo. Mas, nascido em 1978, a primeira vez que soube que existia no mundo um sítio chamado Timor-Leste foi em novembro de 1991, quando o massacre de Santa Cruz trouxe esse território longínquo de novo para os olhos de Portugal e do mundo. Por essa altura – tinha eu 13 anos – já as aulas de História na escola me tinham ensinado a ladainha do Portugal país de heróis, que deu novos mundos ao mundo e que espalhou a língua e a concórdia pelas sete partidas. Já me tinham mostrado no mapa todas as ex-colónias africanas (nem todas; não referiram o Forte de S. João Baptista de Ajudá, essa capital do ridículo). Mas sobre Timor, nem uma palavra. Nem na escola, nem em casa, nem no país. Portugal, esta entidade com um talento instintivo para a cobardia organizada, varreu o abandono de Timor e dos timorenses para debaixo do tapete da vergonha coletiva, e a geração nascida imediatamente a seguir à descolonização nunca sequer ouviu falar do lugar. Isto nem é uma crítica à descolonização que, pelas circunstâncias em que foi feita, dificilmente podia ter saído melhor. É uma crítica, ou um lamento, à nossa queda para a amnésia seletiva. À nossa tendência para, usando a expressão muito portuguesa, existirmos no mundo com "muito medo e pouca-vergonha".

Ontem Timor, hoje Moçambique. Mais de um mês depois das eleições presidenciais e legislativas naquele país e quase três semanas depois do anúncio de resultados obviamente fraudulentos que atribuíram a vitória à Frelimo, partido no poder desde a independência, há quase 50 anos, o Estado português continua a assistir silencioso à repressão brutal das manifestações de protesto do povo moçambicano, que se saldaram já em dezenas de mortos e centenas de feridos. Venâncio Mondlane, o candidato cuja vitória foi roubada pelo regime, está fugido do país, em parte incerta, depois de, ainda antes do anúncio oficial dos resultados, o advogado e um mandatário da sua candidatura terem sido assassinados com rajadas de tiros na via pública.

Em Moçambique, um país capturado por um partido único transformado numa máquina voraz de corrupção e rapina, a democracia está a ser assaltada por rajadas de metralhadora e disparos de gás lacrimogéneo. O que faz o Governo português? Acompanha "com grande preocupação", nas palavras moles e prudentes do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel. Não é a primeira vez que a Frelimo falseia resultados eleitorais para se manter no poder, só que desta vez os moçambicanos estão mesmo fartos e mobilizaram-se em torno de Mondlane, um candidato da oposição que, pela primeira vez, conseguiu romper a hegemonia do partido-Estado.

No momento em que Moçambique mais precisa do apoio internacional para resgatar a sua democracia, os apelos do Governo português à contenção e ao diálogo são demasiado pouco, demasiado tarde. A CPLP é a inutilidade habitual, incapaz de tomar uma posição clara e assertiva sobre as violações eleitorais testemunhadas pela sua própria missão de observação. Em Portugal, o Presidente da República saúda e aplaude a passividade do Ministério dos Negócios Estrangeiros no mesmo fôlego em que invoca o estatuto sentimental de Moçambique como sua "segunda pátria". Marcelo Rebelo de Sousa limita-se a desejar que "tudo corra pelo melhor", semanas depois de ser óbvio que está a correr pelo pior. No Parlamento, Chega, Iniciativa Liberal e Bloco de Esquerda apresentaram projetos de resolução apelando ao Governo para que não reconheça os resultados eleitorais e faça pressão para que o roubo da eleição seja investigado e os verdadeiros resultados divulgados. É o mínimo, mas continuamos à espera de que alguém no Governo se comova.

Ontem Timor, hoje Moçambique. Portugal tem uma relação sombria com os seus "países-irmãos", que consiste na cumplicidade vergonhosa com os piores abusos, em troca de uma participação, mesmo que modesta, no saque, embrulhada em plácida contenção e sentido de Estado dos partidos no poder. Em Maputo, a Frelimo está a carimbar com sangue a repressão à vontade popular dos moçambicanos, reforçando a sua captura de um país martirizado pela pobreza e pela corrupção. Não tarda, o trabalho estará feito, os mortos enterrados e os negócios, de novo, de vento em popa. Com que cara os portugueses encararão os seus "irmãos" de Moçambique, não me perguntem. Com o nosso talento para o realismo, a próxima geração não se lembrará de nada.

Do que se vai dizendo sobre Moçambique

jpt, 10.11.24

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(Fotografia de João Vaz de Almada, Maputo, esta semana)
 
A fotografia é de Maputo, esta semana, feita pelo João Almada, que está a escrever reportagens para a "Sábado". Uso-a para encimar este postal, continuando a falar sobre a abordagem da imprensa portuguesa à situação em Moçambique. Chamando a atenção para algumas intervenções, para quem se possa interessar. Mas também como desabafo, diante de outras.
 
Se há um relativo silêncio ele vem-se desvanecendo. A quem não tenha ouvido ou visto recordo que a Rádio "Observador" tem dado espaço a excelentes comentários de João Feijó ( 1, 2 ) ; ) E acabei de ouvir um programa "Contra-Corrente", no qual muito se justifica ouvir Paulo Cristina Roque (as outras intervenções são despiciendas). E, repito a nota, na RTP 3 também muito bem falaram Pedro Martins e Fernando Jorge Cardoso.
 
Na imprensa escrita pouco tenho lido, apenas o que me enviam. Mas há uma constatação evidente. Em Portugal continuamos com a ideia que consagra "jornais de referência", altaneiros face aos "populares". Destes o mais apupado é sempre o "Correio da Manhã" - e ainda mais desde a célebre expressão "perguntas do Correio da Manhã", proferida pelo famigerado José Sócrates, esse que a intelectualidade clientelar defendeu até ao "último cartucho" nos tais órgãos "de referência".
 
Para aquilatar da pertinência dessa velha distinção - entre "bons", pois intelectuais, e "maus" jornais, pois do povoléu - convirá ler o que hoje publica o CM (no suplemento Domingo), uma reportagem de Alfredo Leite: "Moçambique: um país amordaçado". E comparar com o texto de António Ribeiro, o tal que considera Mondlane "populista", "perigoso" e "imprevisível", no "referência" "Público". Neste são notícia as declarações dos bispos católicos, justiça seja feita. E é dado o restante espaço às vozes do poder (governantes e jornalistas) a criticarem os "desacatos" - como agora cá se diz -, os quais prejudicam os bons (e ordeiros) cidadãos. É uma peça porventura incluída nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, pois invocando o espírito dos defuntos "Diário da Manhã" e seu sucedâneo "Época"...
 
Os meus amigos dizem-me que desde há décadas tenho a "secção africana" e "afrodescendente" do "Público" como minha besta negra (ou "branca", se preferirem, a cor é-me indiferente), tantos os dislates e as demagogias ali regurgitados. Mas se esta breve comparação não chega dou outro exemplo: há dois dias o "Público" publicou esta crónica-reportagem, in loco, "Moçambique, como acertar a bússola". A autora é Ana Bárbara Pedrosa. Nunca ouvira falar, fui ver quem é: escritora, militante activa do Bloco de Esquerda, colaboradora do jornal do partido "Esquerda.net". Tudo confere, seja com o conteúdo do texto seja com o perfil da tal secção "afro" do jornal.
 
O argumento da cronista, ali recém-chegada, é relativamente simples: o problema do país é Venâncio Mondlane, um populista, messiânico e, pior, fugitivo que abandonou as massas a um infausto destino.
 
Ao ler a imunda tralha de Pedrosa ocorreram-me alguns daqueles termos que a minha irmã e a minha filha me impedem de escrever. Enviei-o para alguns amigos em Moçambique. Responderam-me com termos ainda piores.
 
Mas há um ponto a retirar do disparate pegado desta bloquista encartada. Pois é um viés que não está apenas nela. Já o vi por cá, e já o li em pelo menos dois romancistas sitos em Moçambique. É a radical aversão (ideológica) ao facto de Mondlane ser um evangélico, dito messiânico. Se a Comissão Nacional de Eleições moçambicana é usualmente encimada por um clérigo, isso não lhes levanta problemas. Se há proclamações de índole política dos bispos (católicos ou anglicanos) também não. Se as hierarquias islâmicas (muito mais difusas) intervêm, também não. Em última análise, se o grande Tutu se ergueu isso não foi mal. E se Jesse Jackson quis ser presidente dos EUA também não. Etc.
 
O que quer dizer isto? É que para estes "ideólogos" - marxistas globais, bloquistas de cá, samoristas de lá também, os neo-identitaristas, etc. - há umas religiões boas, as "(re)conhecidas", cujo clero até pode participar na política. E depois há estas (novas) igrejas, evangélicas, pentecostais até, às quais dizem "abrenúncio". Como se sejam satânicas.
 
E se em jornalistas generalistas esta incompreensão até pode nem ser deslize grave, já aos intelectuais escritores a gente pode-lhes dizer: "vai lá ler, pá!". Porque as dimensões políticas, variadas, das igrejas evangélicas estão estudadas, há literatura sobre isso - e também em Moçambique. Ou seja, este espanto, repugnado, é mera ignorância.

A escassez noticiosa sobre Moçambique

jpt, 09.11.24

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(Ardinas do Porto, início de XX, autor desconhecido)
 
No meu mural de Facebook um amigo (que viveu anos em Moçambique) comentou o silêncio (relativo mas evidente) da imprensa portuguesa sobre a actual situação naquele país. "Respondi-lhe" assim: 
 
A esse silêncio referi-o em alguns dos meus postais sobre esta situação - (como neste e neste). E diante disso tentei, na modéstia da repercussão de blog/mural de FB, ecoar alguns contributos interessantes na imprensa .
 
De facto há um enorme desinteresse noticioso (ausência de destaques, escassez de informações, rarefacção de comentários). Podemos encarar esse silêncio (relativo) como sintoma de vários factores. Indo além do resmungo contra o défice de qualidade da nossa imprensa. No seu (ignorante e/ou preguiçoso) seguidismo às "agendas noticiosas" internacionais (agora os EUA, Gaza, Valência, Ucrânia, até a Alemanha). Ou a sua falta de recursos económicos (para ter correspondentes ou encomendar reportagens) e humanos - há um ano referi o caso extraordinário do "Público", que se veio justificar por não ter noticiado o assassinato do jornalista moçambicano Chamusse por estar de folga o único (!) jornalista que lá escreve sobre África.
 
Tudo isso será verdade. Mas há outros factores relevantes: continua uma enorme dificuldade - um desconforto - em abordar as problemáticas nas antigas colónias. O que passa, por um lado, pela permanência de uma espécie de "remorso colonial", qualquer coisa como um "não temos o direito de nos imiscuirmos" (mas podemos fazê-lo sobre a inacção espanhola em Valência, por exemplo...). E por um outro lado, algo ligado, pela dificuldade em abordar as realidades africanas - e as das antigas colónias portuguesas, em especial - por gente que continua presa à velha topologia direita/esquerda como instrumento de interpretação do que lá se passa.
 
Entenda-se, como pode um tipo que se entende de "direita" ou "centro" compreender que alguém louve, criticamente que seja, um estadista como Chissano, que é do Frelimo, um antigo movimento marxista-leninista? Durante anos levei com comentários abrasivos em blog por causa desse meu "chissanismo", que nem sequer explicitava recorrentemente... 
 
Ou, de outra forma, como pode um tipo que se "identifica" como de "esquerda" perceber o movimento em curso em Moçambique, agarrado às necessidades de invectivar como de "direita" o evangelismo "bolsonarista" de Venâncio Mondlane (como Agualusa - e sobre este telefonou-me ontem um amigo, "tenho de te contar esta!!!", ria-se, acabado de conversar com intelectuais da "velha guarda" "samorista" os quais, com ironia caústica, o chamavam "Aguavumba", menosprezando o seu camaleonismo, de cooptado ao "bloco histórico" do poder - e não só andam a clamar).
 
Para além disto, haverá também um factor para o qual olho até por percurso biográfico. No nosso país há pelo menos três décadas de formação superior pós-graduada nessa amálgama disciplinar "Estudos Africanos". As quais não foram suficientes para produzir "intelectuais públicos" oriundos dessas formações, que tenham apetência e competência para intervenção comunicacional abrangente e ganho "espaço" na imprensa. (E um exemplo típico é o conflito de Cabo Delgado: o absurdo longuíssimo silêncio moçambicano sobre essa "insurgência" foi ombreado pelo português. O único indivíduo do "espaço público" que dele falava, e já anos depois daquilo ter começado, era Nuno Rogeiro...).
 
Mas este nosso silêncio informativo tem um outro factor motriz, talvez o mais relevante. E que afronta o "complotismo dependentista" usado para legitimar os regimes autocráticos pelos "intelectuais" clientes desses "blocos históricos" de poder, e seus "compagnons de route" internacionais. Esse é o factor estruturante, promotor do silêncio: a inexistência desde 1975 de um qualquer projecto neo-colonial.
 
Há umas retóricas (algumas saudosistas, outras sentimentalonas), há efectivos interesses económicos (mas muito minoritários na economia portuguesa), há alguma articulação política entre Estados (coisa pouca, como se viu na recente questão russo-ucraniana), há pequenos núcleos de emigrantes (também muito minoritários no universo dos emigrantes portugueses). Mas não há grande intensidade de relacionamento nem interesse estatal ou societal em fazer crescer as interacções.
 
E tudo isto é denotado, melhor, demonstrado por este "silêncio" noticioso. De facto, Portugal, o nosso Estado e a nossa sociedade, está interessado noutras coisas. Neste tipo de situações isto pode irritar-nos, pois vivemos lá (em Moçambique ou alhures), ficámos com afectos e interesses (não interesseiros). E poderá irritar os "anticolonos" que sempre recorrem ao "xicolono" como "inimigo externo", necessário à sua (auto)justificação. Mas nada disso é o verdadeiro real.
 
Abraço. Ou, melhor, "estamos juntos".

Sobre Moçambique

jpt, 08.11.24

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Será, decerto, uma das fotos do ano. É do Eric Charas: Maputo, 5.11.2024, um puto com o seu "colete à prova de bala" nas manifestações de repúdio por mais uma fraude eleitoral.

Na RTP 3 um bom momento sobre Moçambique, com as intervenções do investigador Fernando Jorge Cardoso e do jornalista Pedro Martins (que foi correspondente naquele país durante seis anos). A partir dos 26' 30'', nesta ligação.

(Ou seja, por cá nem toda a gente é... Miguel Relvas).

Em Moçambique

jpt, 07.11.24

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Em Portugal a imprensa continua a não dar grande destaque à situação em Moçambique. Mas para os compatriotas que queiram ter alguma noção do que se passa aqui deixo: há um crise afectando o poder do FRELIMO. O único português que aparece na imprensa a defender o actual poder de Maputo é este Miguel Relvas (entre outras coisas diz que "as eleições foram positivas... ordeiras... porventura com problemas na fase seguinte à votação, mas países com democracias consolidadas também os têm").
 
Julgo que assim todos compreenderão a situação. E o Relvas, claro.

A Necrose do Frelimo

jpt, 05.11.24

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(Moçambique, esta semana. Desconheço autor e local exacto da fotografia)

Em Moçambique, após 50 anos de poder o partido-Estado - entretanto tornado uma mera tétrica cleptocracia - parece desabar, face à enorme adesão popular aos protestos contra mais uma escandalosa fraude eleitoral, nas presidenciais, regionais e legislativas de Outubro. Correspondendo ao apelo de Venâncio Mondlane - o candidato presidencial declarado "derrotado" - por todo o país se suspendeu o trabalho, uma verdadeira "greve geral", em repúdio pela fraude. Até os funcionários públicos, tradicional suporte do partido governamental, aderem. Desfiles pacíficos - os "tumultos" prenunciados pela intelectualidade cliente do regime - ocorrem em inúmeros locais, sendo reprimidos pela polícia. Ponderamente recuando diante da repressão policial, em Maputo a população protesta batendo tachos e panelas à janela. A polícia dispara gás lacrimogéneo contra as casas onde se batem tachos. (As ligações são pequenos filmes. Mas eximo-me a reproduzir filmes onde se vê a polícia a disparar munições reais sobre a população, mostrando mortos ou feridos).

Desde há dias que as comunicações estão cerceadas pelo Estado. O uso da internet é reduzido, os "dados móveis" inacessíveis. Redes como Whatsapp, Facebook e ex-Twitter estão muito condicionadas. Tudo para obstar a divulgação das acções de protesto, previstas para terem um cume, depois de amanhã (7.11), com um desfile em Maputo encabeçado por Venâncio Mondlane - este por enquanto em local incerto, por razões de segurança (dois dos seus colaboradores mais próximos foram já assassinados). Ontem o governo convocou os embaixadores residentes, pedindo colaboração no que chama "manutenção da ordem". Muitos aventam ser este o passo cénico para a declaração do estado de emergência ou de sítio. Que proíba as manifestações públicas, e permita a continuidade - em regime ainda mais musculado - do actual poder.

A acontecer será uma "fuga para a frente" do actual regime, julgando assim conter o levantamento dos despojados, dos calcados, contra o execrável regime, esta verdadeira "revolução do capim", digo-a assim, evocando a magrebina "revolução de jasmim".

Uma "fuga para a frente" que se sonha escorar nos dizeres de alguns intelectuais e históricos do partido que aventam a "depuração" do Frelimo, a velha ladainha da reemergência "da Frelimo" (boa) sobre "a Frelimo" (má). No fundo, glosando o Lampedusa do "Leopardo", na proposta de que "é preciso que nada mude para que tudo continue na mesma". Mas que mais desejará - e necessitará - da repressão paramilitar e/ou militar, ou até no muito aventado "putsch militar" que reponha a "ordem". O que talvez venha a ser difícil, pois grassam informações sobre demonstrações de solidariedade entre militares no terreno e manifestantes... Mas tudo dependerá dos anseios e capacidades das chefias militares, elas próprias emanadas do poder político.

Há um ano, aquando do abstruso abuso eleitoral nas autárquicas, pareceu-me óbvio que estas eleições seriam similares. E que não haveria relevante atenção internacional sobre isso. Não só devido à usual docilidade face aos desmandos estatais mas também por ser este 2024 um ano de frenesim eleitoral internacional (64 eleições nacionais e ainda para o parlamento europeu), ainda por cima com as presidenciais americanas, sempre monopolizando atenções. Isso, mais os posicionamentos face aos conflitos geoestratégicos actualmente dominantes, reduz a hipótese de reais exigências externas para a imposição de uma ordem democrática.

Diante de tudo isto recordo que Moçambique é o segundo país mais populoso da CPLP, essa organização que sempre é dita como central na política externa portuguesa. Mas a comunicação social portuguesa distrai-se. Não há verdadeira atenção sobre a situação, inexistem destaques ou análises actuais profundas. Em Maputo está uma delegação da RTP-África, sempre "cinzenta", nunca atreita a incomodar os poderes locais, e incapaz de entrar no agendamento dos serviços noticiosos em horário  "nobre". Durante poucos dias esteve uma equipa da CMTV, sem obter autorização de trabalho (excentricidade denotativa do momento político do país), tendo acabado por ser proibida de exercer e escoltada até ao avião. As outras estações não enviaram ninguém ("a SIC já nem tem dinheiro para isso", diz-me um jornalista amigo). Os jornais "de referência" - à excepção da "Sábado" - não têm gente no terreno, limitando-se a ecoar os despachos da LUSA. Esta tem um activo correspondente em Maputo, Paulo Julião, que ontem foi baleado (com munição de borracha, felizmente). Este contexto implica um quase silêncio noticioso sobre Moçambique, o reforço da desatenção sobre a repressão.

Trata-se assim de nós-próprios combatermos este relativo silêncio imposto. E de convocarmos os nossos representantes para que não tergiversem diante do estertor do poder autocrático de Maputo. Nem se apiedem da necrose do Frelimo - em nome de velhas e anacrónicas solidariedades partidárias ou de espúrias simpatias.

Indignações estratégicas

jpt, 26.10.24

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["A TVM a reportar tumultos em Portugal e não fala do caos nos arredores de Maputo"]

O processo eleitoral moçambicano tem sido complexo. Com assassinatos. A seguir ao anúncio dos resultados houve manifestações de repúdio em várias cidades, fazendo temer a disseminação de violência, o que felizmente não aconteceu, pelo menos em grande escala. Recebi imensas mensagens no frenesim comunicacional destes últimos dias - reduzido desde ontem, pois o Estado bloqueou os "dados móveis" para acesso à internet (fazendo lembrar quando há 14 anos bloqueou as comunicações telefónicas mais populares, aquando de tumultos em Maputo). Entretanto vários amigos, moçambicanos e portugueses, enviaram-me esta mensagem (foto e legenda): no telejornal do canal estatal (TVM) foram noticiados os "desacatos" na Grande Lisboa enquanto se calava qualquer referência à turbulência acontecida nesse dia naquele país. O controlo da imprensa estatal é coisa típica, não monopólio  moçambicano. Mas não deixa de ser notável.

Ontem assinei uma petição pública, avessa aos deputados André Ventura e Pedro Pinto, autores de declarações inadmissíveis sobre estes motins nas cercanias de Lisboa. Não sou adepto, nada mesmo, da criminalização de deputados por declarações de teor político, fazê-lo arrisca ser um destapar da caixa de Pandora. Mas abstenho-me agora desse princípio, associando-me a uma manifestação de repúdio diante de uma verdadeira abjecção - o deputado Pinto chegou a apelar que os agentes "atirem para matar". Em última análise, é a própria polícia que não merece tamanho disparate! E também sabendo, como o disse Sérgio Sousa Pinto, que os deputados nunca abdicarão da imunidade parlamentar.

Sobre a real situação securitária em Portugal nada sei, como escrevi há pouco. Mas sobre estes tumultos actuais concordo com o que ouvi ontem de Ângelo Correia na CNN (num programa de comentariado com Marques de Almeida, Sá Lopes e Sousa Pinto, que ontem descobri aquando em zapping) - o que me provocou um "ó diabo, eu a concordar com o Ângelo Correia?!" Ou seja, esta problemática não é apenas securitária. E não posso discordar mais da jornalista Sá Lopes, a qual reproduz uma ignorância generalizada na auto-reclamada "esquerda", essa que reduz as preocupações securitárias a meras "bandeiras da direita". Denotando como é espantosa e veemente a capacidade de intelectuais e jornalistas em nada aprenderem com as realidades circunvizinhas.

Enfim, apesar de desconfortável com a iniciativa criminalizadora de deputados, tendo recebido de uma queridíssima amiga (cherchez la femme, sempre) a petição, li-a e assinei-a, juntando-me a cerca de 70 000 outros (no momento em que escrevo o postal). É óbvio que a associação a uma iniciativa colectiva implica sempre a suspensão de alguns critérios próprios, o inflamar de alguns pruridos. Mas, e repito-me, o grunhismo dos deputados CHEGA é tamanho que a coceira se justifica.

Explicito dois desses focos de inflamação, para que se perceba o quanto me irritaram as declarações de Pinto e Ventura, pois só tamanha abjecção me faria "juntar", mesmo que modestamente, a tais pessoas num rol de assinaturas. A petição é encimada por um vasto rol de "primeiros signatários". Nele consta o nome do socialista Porfírio Silva, um político de execrável indignidade - foi ele que veio clamar que Passos Coelho usava a doença da sua mulher para colher dividendos políticos. É incompreensível como outros ainda lhe dão crédito para ser "alguém" na vida política e/ou de cidadania. 

O outro caso é mais significativo. Eu defendo que os estrangeiros, residentes ou não, podem manifestar-se sobre a vida política portuguesa. Mas fico a menear a cabeça, com indignação (nada estratégica, friso), quando vejo o angolano José Eduardo Agualusa a surgir como um dos "primeiros signatários" desta petição política sobre Portugal. Sabendo-o sempre em calmaria pública no Moçambique onde reside. E agora surgindo em declarações públicas suportando o bloco social no poder, invectivando o candidato Mondlane - mesmo depois da comitiva deste ter sido baleada pelas forças policiais. Compreendo esse silêncio sobre o país que habita. Grosso modo foi o meu - ainda que não radical -, na modéstia de qualquer repercussão que pudesse ter, pois sempre me dizendo meteco. Mas se isso compreendo também interpreto a sua adesão actual, enquanto segue plácido diante da violência estatal sistémica, de inúmeras declarações abrasivas, do rumo nacional, feito de coisas tao mais graves do que isto que se passa em Lisboa. Sobre as quais nada... assina

Por isso, e independentemente das nacionalidades de cada um, percebo como é necessário um grande desplante para que o autor surja agora com posicionamentos políticos em Portugal. Num rumo - que se quer "premiável" - feito de indignações estratégicas.

Ou, dito de outra forma, Agualusa é tal e qual a TVM. 

Falar à bolina sobre Moçambique

jpt, 24.10.24

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1. Escolho uma foto tirada em Nampula com mais de uma década. "Uma delícia polissémica", disse-a então. Tremendamente denotativa, senti então. E assim a sinto hoje, agora.

2. Os resultados finais foram anunciados. Uma vitória esmagadora do Frelimo - a permitir a revisão da constituição, julgo -, a devastação do Renamo. Com o esfacelar da oposição, a degenerescência do Renamo, a regionalização do MDM - este também em decadência desde a morte do seu presidente Simango - e a tardia constituição da candidatura de facto unipessoal de Mondlane, a vitória frelimista seria mais do que previsível.

Tudo reforçado pela grande abstenção acontecida. E sustentado pela sua base social de apoio nacional, o âmbito dos seus militantes e simpatizantes, a influência do voto tradicionalizado, também do atávico. E por ter um novo candidato, apresentado como indivíduo sem mácula.

3. Ou seja, em termos de votos efectivos nada surpreende que o Frelimo tenha ganho as eleições. Dito de outra forma, não era preciso isto tudo! Agora o partido tem uma vitória ilegitimada, interna e externamente. Fruto de uma total irracionalidade política.

4. Por causa disso surgem manifestações em vários pontos do país. Não são "jovens", são moles de "cidadãos" contestando o rumo. Entenda-se, a questão não é quantitativa (percentagens de votos, eleitos), é qualitativa, a legitimidade do processo... nacional. Espero, sinceramente, que não surjam "desacatos" - esta inovação semântica que alguma imprensa está a usar para os tumultos agora importados para a Grande Lisboa.

5. Uma nota sobre a imprensa portuguesa. Do jornal "Público" (esse boletim ideológico) - esse mesmo que há pouco tempo anunciava Venâncio Mondlane como descendente de Eduardo Chivambo Mondlane - emana agora a ideia de que "Venâncio Mondlane é perigoso", porque "populista", e nisso imprevisível... Entenda-se, segundo o especialista local - pois dizendo-o o tal único "populista" -, ele será portador de uma visão de que representa o "povo" sem mediação, imbuído de uma retórica (e crença) nacionalista, e desprovido de um substantivo conteúdo programático. Tudo isso causador de uma "perigosa" (e irresponsável) imprevisibilidade, um não-futuro.

Não sei se as pessoas conseguem reconhecer alguns desses traços ideológicos noutro qualquer partido moçambicano...

Mas também importante para nós, portugueses, não sei se as pessoas se conseguem irritar tanto como eu com este tipo de jornalismo, escrito e podcasteiro. Dito "de referência".

6. Enfim, espero que não seja uma "noite longa" nas cidades moçambicanas. Paz, paz! É muito fácil estar atrás de um ecrã, ao teclado, a clamar "Avante". Mas "Paz", "Cuidado", é muito mais....

Revolucionário.

Maputo e o "Público", hoje

jpt, 21.10.24

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Em Maputo uma manifestação pacífica de repúdio pelos assassinatos de Dias e Guambe, convocada por Venâncio Mondlane, agregou inicialmente algumas poucas centenas de pessoas. Antes da chegada do candidato a polícia dispersou a maioria com cargas de gás lacrimogéneo. Quando o candidato chegou ao local deu uma "conferência de imprensa, rodeado de algumas dezenas de jornalistas (a RTP transmitindo em directo) e alguns, poucos, apoiantes - talvez da sua segurança. A polícia disparou gás sobre essa pequena mole que ali trabalhava (ligação para curto filme totalmente demonstrativo da situação) numa praça já vazia. O candidato presidencial teve de fugir em corrida, rodeado por alguns poucos dos seus.

Na quarta-feira passada a sua comitiva fora alvo de disparos com munição real em Nampula. Na sexta aconteceram os assassinatos de Maputo. (Há agora relatos videográficos da praça OMM mostrando cápsulas de munições reais que teriam disparadas pela polícia, mas não se pode afiançar tal).

Por cá, no sempre "Público" de hoje, o sociólogo moçambicano Elísio Macamo publica um interessante artigo. Usando a ferina armadura da ciência política e sociologia, das quais é exímio profissional, não deixa de se alongar sobre as causas passionais que foram invocadas pela polícia como causa dos assassinatos de sexta-feira. E, com pertinência retórica, elabora sobre a luta interna no Frelimo - partido que ganhou as eleições, avança, decerto que assente na história eleitoral do país -, luta essa que terá causado estas mortes, acontecidas apenas para desmererecer o novo presidente Chapo. Com Dias e Guambe assim vítimas de "balas perdidas", num "fogo cruzado que pouco tem a ver com eles".

Ou seja, esmiuce-se bem o argumento: esta violência não é sistémica, é um desvio, qual epifenómeno (eu também sei usar termos dos jargões, ainda que seja menos exímio). E, já agora, retira-se assim que as verdadeiras e substantivas dinâmicas do país se encontram encerradas no jogo interno do Frelimo, como se pairando sobre uma quase insignificante população e seus (ir)representantes excêntricos ao partido no poder.

O que não consigo perceber é isto: se o Frelimo ganhou as eleições com naturalidade, tal como o vem fazendo (por exemplo, nas últimas autárquicas em que Mondlane também foi "derrotado"), qual a razão do Estado, e sua polícia, não deixar em paz uma manifestação pacífica?

(Mas essa, claro, é uma resposta que nunca obterei num jornal como o "Público").

A situação em Moçambique

jpt, 21.10.24

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Quando em 1994 cheguei em Moçambique os efeitos da guerra civil ainda eram muito visíveis, não só as destruições físicas (a estas ruínas de armamento pesado fotografei-as nas cercanias de Inhaminga, em 1999) como, e acima de tudo, uma tétrica, avassaladora pobreza rural. Marcou-me, para sempre...
 
Há meses conheci o namorado da minha filha, um jovem antropólogo inglês. Muito boa onda, é óbvio ser ele bem formado, ponderado (e bonito, ao que me disseram). Com uma curiosidade que nos é típica perguntou-me, sorridente durante o aperitivo ao almoço, naquele segundo ou terceiro dia de convívio, o que mais me impressionara nas duas décadas de Moçambique: arrastei um "âhhh". Depois disse-lhe, no meu broken english: "o que mais me impressionou? A morte, a dor, as doenças destratadas. A dor.". O mais-novo não esperaria, muito menos ali e assim, um resposta tão pouco exótica, arqueou as sobrancelhas, e até recuou a cabeça, e assim deixei-me abrir, pacificador, outra via num "também te posso falar das danças, das escarificações, até das praias...". "Não, não", respondeu, "eu percebo". "That's my man!", pensei (também em sossego paternal).
 
Trago estas memórias para me situar. Com essa minha experiência a última coisa que desejo para aquela minha "Não-Pátria Amada" é a eclosão de violência. Mas é essa experiência que me aparta de posicionamentos vindos da anacrónica topologia ideológica, seja algum revanchismo colono anti-Frelimo (agora muito minguado em Portugal, pois já escasseiam os "velhos colonos"), seja a paupérrima dicotomia "esquerda" (com a Frelimo) / "direita" (com a Renamo). Pois nada disso tem real sentido. Tal como não tem a também pobre dicotomia "ética", que tudo quer explicar ao vituperar a "corrupção" salvaguardando os aventados como "honestos".
 
Após trinta anos de eleições multipartidárias no país o sistema eleitoral não tem credibilidade. Como é tradição os países vizinhos apoiam explicitamente o regime instituído (há pouco foi notório o envolvimento pró-Frelimo de Ramaphosa). E os organismos internacionais continuam a sufragar o que vem acontecendo: agora a Commonwealth aprestou-se a considerar correctos os procedimentos. Mesmo depois da gigantesca fraude eleitoral do ano passado a CPLP enviou 21 (!!!!) observadores - num país daquele tamanho e com tantos problemas eleitorais enviar apenas 21 observadores é um absurdo. Entre os quais parlamentares de vários países - eu tenho experiência de observador eleitoral e um dos axiomas dessas missões é que os parlamentares estrangeiros, sempre ali a curto prazo, nunca observam, só passeiam. Servem para legitimar o acontecido.
 
Tudo isto, suportado pelo controlo das forças militares e paramilitares - entre os quais os propalados "esquadrões da morte", que vão actuando cirurgica mas continuadamente - serve para a reprodução do poder. O qual é despudorado.
 
Convirá que os meus patrícios (e outros) percebam até onde chega este despudor institucional: depois de na quarta-feira a polícia de Nampula ter aberto fogo com munição real sobre a comitiva do candidato Mondlane, anteontem foram assassinados em Maputo dois relevantes membros dessa candidatura presidencial. Um dos quais responsável pelo processo jurídico de impugnação dos resultados eleitorais (os quais são falsificados pelo aparelho estatal, sempre!). Ontem a Polícia (PRM) emitiu um comunicado deixando quase explícito que os assassinatos se deveram a questões .... passionais, coisa de zangas conjugais.
 
Como é que os parceiros podem aceitar este Estado como interlocutor? E como podemos nós aceitar a interlocução com os seus locutores, seus defensores explícitos ou implícitos? - e também por isso a minha irritação com o(s) escritor(es) em digressão por Portugal que, efectivamente, o defendem. (Já agora, veja-se a digna, corajosa e analítica posição tomada por Paulina Chiziane, para exemplo contrário).
 
O Paulo Dentinho lembrou que já em 1999 houvera desmando eleitorais. E que ele fora ameaçado por não ter seguido o discurso oficial - foi-o, repetidamente. Uma das vezes estava sentado a meu lado e foi ameaçado de morte. No ano seguinte mais de 100 pessoas, presas por se manifestarem contra o governo, morreram asfixiadas numa cela em Montepuez - zona onde eu trabalhara durante meses, tive uma gigantesca comoção. Em Maputo decorria o congresso da Internacional Socialista, então liderada por António Guterres. Nada disseram esses socialistas! (Imagine-se se isso tivesse acontecido num país europeu!!!!).
 
Mas nessa época - e contra mim falo, mea maxima culpa - reconheciam-se verdadeiras virtudes desenvolvimentistas ao poder FRELIMO e em particular ao seu presidente, o grande estadista Chissano (do qual continuo admirador). Com todos os problemas, com todas as contradições, com todos os desmandos - não se constrói "do zero", desde o radical subdesenvolvimento, uma "economia de mercado", uma "sociedade capitalista", apenas com franciscanos -, o poder de Maputo tinha dimensões patrióticas, desenvolvimentistas. Não era apenas isso, mas tinha-as. Era um "mal menor" e permitia a esperança.
 
Mas durante este quarto de século o partido Frelimo, o Estado, o partido-Estado degeneraram, radicalmente. São outra "coisa". Tal como degenerou o grande partido oposicionista, Renamo. Hoje também desprovido de virtudes programáticas. Nada há a esperar destes partidos.
 
Convirá sumariar: Mondlane, que decerto terá limitações e defeitos - não há homens providenciais, tal como não há partidos/movimentos salvíficos -, apelou há dias para a constituição de um governo de "unidade nacional", cooptando assim sob si elementos de vários quadrantes partidários e não só. Apelou também a uma resistência pacífica e ordeira face à evidente falsificação eleitoral. E sofre estas ameaças físicas terríveis. Ele precisa (também) de apoio externo, político, emotivo. E, claro, se um dia chegar ao poder passará a ser - como todos os políticos em democracia o devem ser - criticável...
 
Aos meus patrícios (e não só...) que têm um ideário de "esquerda" (e não só...), e que são menos atreitos a críticas ao Frelimo, sempre suspeitas de serem "manobras" da "direita", do "neoliberalismo" "ocidental", deixo três exemplos entre as inúmeras mensagens que recebi desde anteontem:
 
- uma amiga, "samorista", enviou-me a ligação para a transmissão directa no FB da homenagem que Mondlane estava a fazer aos assassinados, no local do crime. Liguei. E os presentes estavam a cantar "O Povo Unido Jamais Será Vencido". Comovi-me, regressado aos meus tempos de meninice, quando a canção grassava em Portugal...
 
- enviam-me um texto de autor que desconheço (Hélder Tsambe), apelando à resistência pacífica contra a manipulação eleitoral. E invocando Karl Marx para sedimentar as críticas ao actual poder moçambicano;
 
- um outro texto, do próprio Elvino Dias, agora assassinado, critica o poder actual. Invocando a revolução cubana, e explicitamente Fidel Castro, que considera seu político de eleição.
 
Não quero com estes exemplos reduzir a heterogeneidade ideológica e social da oposição ao estado do Estado moçambicano, a um movimento revolucionário marxista. Não o é! Mas estes exemplos servem para demonstrar aos distraídos de fora que não há qualquer razão ideológica, para além da tal distracção, para não repudiar o poder antidesenvolvimentista e criminoso. Do Frelimo.
 
No fundo, trata-se apenas de exigirmos ao nosso aliado Moçambique a verdadeira instalação do valor "Uma pessoa, um voto". Com todos os defeitos que a democracia tem. O pior dos regimes, como é consabido, à excepção de todos os outros.

Assassinatos em Maputo

jpt, 19.10.24

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No mesmo dia em que de Maputo recebo iradas mensagens com as declarações ventríloquas do avatar José Eduardo Agualusa, dizendo que Moçambique "não precisa de Venâncio Mondlane", Elvino Dias, advogado e lugar-tenente do candidato Venâncio Mondlane, acaba de ser assassinado no centro de Maputo [Adenda: no mesmo atentado foi também assassinado Paulo Guambe, mandatário  do partido PODEMOS]. O que mais é necessário para uma reacção da comunidade política portuguesa? E, secundariamente, do "campo literário" nacional, sempre simpático para com estes produtores de batiks literários?

People have the power

jpt, 16.10.24

[People have the power (Patti Smith sings "People Have The Power" with a choir made up of 250 volunteer singers at NYC's Public Theater. This was done in 2019. Daveed Goldman on guitar and Stewart Copeland playing the frying pan.)]

Isto tudo se liga, se articula... e contradiz! No seu  mural de Facebook o Henrique Pereira Dos Santos traz esta versão coral da "People Have The Power" da Patti Smith - a qual, vos garanto por empírico conhecimento, cruza gerações. Canção hino que tantas vezes cantámos, nas pistas ou por aí afora, às vezes exultantes como se gente, outras cantarolando em ira amesquinhada. 

Tudo se liga, tudo se contradiz!, digo eu. Estou a ler o imprescindível "Tudo é Tabu" do Pedro Correia (Guerra e Paz Editores) , um rol de 100 casos de censura promovida pela vigente e descabelada ideologia "identitarista", e ontem cruzei o 75º caso, exactamente o respeitante à Patti Smith, até ela alvo do cretino modo "cancel"!

Ao mesmo tempo vou, cá de longe, recebendo as novas sobre as eleições em Moçambique - país onde a "People Have The Power" se canta "Povo no Poder" -, mais um episódio da inenarrável e despudorada apropriação do voto popular, do "Power" do "People". Até quando?, a que custos?, como se chegará ali ao "Basta" ("Chega" é uma palavra agora politicamente poluída, entenda-se...)?

Mas tudo se liga, tudo se contradiz! Pois cantarolo a canção sentado no meio deste meu Povo pensionista, decrépito, cujo poder se restringe a votar nesta pobreza mental e moral, como se vê na gritaria socialista e fascista à volta do orçamento, no dia em que juristas forçam a arrastar um homem doentíssimo num tribunal apenas para justificarem o seu lacaio imobilismo, servis a este estado do Estado.

Tem o "people" o "power"? Tem, estive ontem a ver as sondagens americanas, Estado a Estado... É quase certo que Trump ganhará.

"...the people have the power / to redeem the work of fools"?

É mesmo melhor cada um tomar o combustível que lhe apetece (Vodka tónico para mim, sff) e ir para a pista, dançar e cantar. Sem esperança. Mas não desesperado.

Eleições em Moçambique

jpt, 11.10.24

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Sou um mero "torna-viagem", e com o tempo passado já não "apanho" o que se passa em Moçambique. Anteontem foram as eleições. Não acreditei que delas saíssem grandes mudanças, dado ser consabido o peculiar exercício eleitoral no país. Ainda assim procurei agora na imprensa portuguesa notícias frescas. A RDP tem uma enviada, que fará o que pode. Nos outros órgãos de comunicação social nada surge! Há coisas que por cá nunca mudam.
 
Independentemente de novas que vou recebendo via amigos retiro já duas certezas:
 
1) o ano passado houve eleições autárquicas. O Estado proclamou a vitória do Frelimo em todos os municípios, excepto a Beira (onde concedeu vitória ao MDM)! Um ano depois a "esmagadora" vitória não parece repetir-se. Ou, pelo menos, será difícil repetir tão "esmagadora" proclamação. Ainda que a "comunidade internacional" sempre compactue com o típico manuseio do escrutínio, há limites - internos, não "internacionais" - para garantir alguma legitimidade política.
 
2) quando se discutia quem seria o candidato presidencial do RENAMO logo surgiram críticas à "ilegitimidade" e "impertinência", até a falta de suporte regulamentar, da apresentação de candidatos internos, afirmando-se a inadmissibilidade de questionar a candidatura do seu presidente Momade, veterano da guerra - uma situação típica deste tipo de movimentos político-militares. Um dia fui convidado para ir falar sobre isso à RTP-África. Disse o que pensava: que isso significava a falta de democraticidade interna daquele partido, implicando a sua falta de vínculo à democracia. Algo necessário de dizer aos que acreditam na malevolência (antidemocrática) do Frelimo vs a virtude (democrática) do oposicionista Renamo. E deixei implícito (pois não o dizendo sí-la-ba a sí-la-ba) que aquele fechamento significava a deriva suicidária daquele partido. A minha opinião vale o que vale - e pouco, pois nunca mais foi convidado a perorar.
 
Os resultados iniciais (as contagens oficiais ainda demorarão, pois terão de ser "ajustadas") são já esclarecedores. A candidatura de Momade e do RENAMO têm resultados irrisórios... E a candidatura de Venâncio Mondlane e do seu PODEMOS (um "yes, we can") são muito bons (logo se verá no fim, que percentagem lhe será "atribuída"). E enormes em Maputo, o sempre bastião do FRELIMO, região onde é mais fácil apurar resultados oficiosos quase de imediato. A mostrarem, entre outras coisas, que numa população demograficamente tão jovem as velhas legitimidades guerreiras, anticoloniais ou pós-independência, já não imperam. Ainda por cima tão maculadas estão pelo exercício do... poder.
 
 
 
Mas há já uma conclusão, esta que o Nobel da Literatura Bob Dylan cantou há 60 anos sobre o seu país: "os tempos estão a mudar". Que seja para melhor, seja lá como for. Porque, como se canta cá em Portugal, "para pior já basta assim!".