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Delito de Opinião

Recortes do Canhenho

Maria Dulce Fernandes, 26.06.23

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Com a chegada do calor, chegam todas as memórias a ele associadas, as boas e as más. A pior memória que tenho de dias muito quentes é a da morte prematura do meu pai. Também são com o meu pai as memórias mais felizes de dias despreocupados de Verão, na Costa da Caparica, em Albufeira, em Pedras D'El Rei, mas principalmente no campismo, em Lagos, numa altura em que, apesar de já não ser uma menina, não era mulher feita e não tinha preocupações.

Foi por essa altura que fiz de bóia, mergulhei em apneia, andei de barco, conheci o Algarve de ponta a ponta e frequentei pela primeira vez um hotel de 5 estrelas.

Estávamos em 1973 e a Liberdade ainda estava em embrião, apesar de, nas imensas férias de Verão, não se dar pela sua falta. A liberdade de se ser jovem era imensa e envolvia-nos às golfadas.

Depois de um mês de campismo no Parque de Turismo em Lagos e das imensas peripécias que vivíamos diariamente, eis-nos chegados ao momento de regressar a Lisboa. Nesse ano, a partida iria ser diferente: não seria necessário "levantar âncora", porque a Joceline iria ocupar a tenda, de três cómodos, sala, cozinha e avançado, com o Dietmar e o Lars por mais um mês.

Lembro-me de aguardar ansiosa que chegassem. Adorava esta minha prima que casara com um alemão de Bremen, divorciado e folgazão, amante da nossa cultura e principalmente da nossa grastronomia. A Line foi a pessoa mais tranquila que conheci em toda a minha vida. Nunca a ouvi exaltar-se ou levantar a voz. O Dietmar era o homem dos sete ofícios, desde compartilhar a gestão da Electroliber em Portugal até à administração de uma empresa pioneira em máquinas de depenar aves, que ele, numa altura em que a publicidade era cara e as redes sociais ficção científica, se propôs divulgar por todo o Algarve.

A meio de um almoço supimpa providenciado pela minha mãe, o convite chegou inesperadamente. A Dulcinha fica connosco, queres? Claro! Como recusar? Ler, dormir, passear… Adeus mãe, pai, rapazes, que eu fico por cá!

Foram quatro semanas inesquecíveis, a partir do Quartel General em Lagos. Aprendi a ficar quatro minutos sem ar no fundo da piscina, aprimorei a minha natação, acompanhei o Dietmar na pesca submarina na qualidade de bóia, visitei de barco todas as grutas, viajei por todo o Algarve, comi fruta a rodos, assei na praia numa fogueira de gravetos o peixe que se apanhava nas incursões mar adentro, jantei em bons restaurantes e tive uma das mais incríveis experiências da minha vida, num hotel de 5 estrelas em Vale do Lobo, para festejar o final do prolongamento das férias, as vendas das máquinas de depenar aves, as longas noites na praia a cantar belas melodias e o merecido descanso daquele casal maravilhoso, que adorava a vida, os filhos, os desportos e me adorava a mim. Aprendi muito com ambos.

Gostava de ter uma foto do momento em que, com o meu longo cabelo solto, já manchado pelo sol, envergando um caftan cor de salmão com renda na frente, executado primorosamente pela minha mãe, a pele dourada por muitos dias de sol, olhei para o espelho e vi. Vi que era bonita para além de calções e t-shirts e não apenas a maria-rapaz de rabo de cavalo, magra, desengonçada e quase invisível. Senti-me bem. Senti-me feliz.

Ao jantar, à luz das velas, senti também os olhos brilhar. Não é verdade que o brilho não se sente, porque depois de perceberes que o tens, é algo que  guardas como uma jóia rara durante toda a vida.

É uma das minhas memórias mais doces, esta de zarpar  com ambos à descoberta e ter-me descoberto também a mim.

Ainda agora, nas profundas e cálidas noites algarvias, com a música das ondas que rebentam de mansinho, me chegam os acordes do Edelweiss, que acompanho baixinho, com saudade e gratidão.

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Dois deputados que deixaram saudades

Pedro Correia, 26.04.23

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O 25 de Abril fez-se para fundar uma democracia representativa em Portugal, sufragada pelo voto universal e livre dos cidadãos. Mas raras vezes, ano após ano, vejo homenagear esse órgão concreto da democracia - com o qual tantos sonharam durante gerações - que é a Assembleia da República, símbolo supremo do nosso regime constitucional.

Espero que este lapso seja corrigido e que em 25 de Abril de 2024, quando a Revolução dos Cravos comemorar meio século, possam ser homenageados 50 deputados, de diferentes partidos. Deputados que nunca foram ministros nem secretários de Estado nem presidentes de câmara nem presidentes de governos regionais: apenas deputados. Seria uma excelente forma de assinalar a instituição máxima da democracia portuguesa.

 

Fui repórter parlamentar do Diário de Notícias durante cinco anos e, nessa qualidade, tive o privilégio de conhecer competentíssimos deputados em todas as bancadas. A pretexto do 25 de Abril, quero distinguir dois desses parlamentares que conheci pessoalmente: Maria José Nogueira Pinto e João Amaral. Ela claramente de direita, ele inequivocamente de esquerda.

Em legislaturas marcadas por fortes combates políticos, nenhum dos dois alguma vez cessou de tomar partido, envolvendo-se convictamente no confronto de ideias que é função cimeira do órgão parlamentar: sabia-se ao que vinham, por que vinham, que causas subscreviam e que bandeiras ideológicas sustentavam. Mas também sempre vi neles capacidade para analisar os argumentos contrários, com elegância e lealdade institucional, sem nunca deixarem as clivagens partidárias contaminarem as saudáveis relações de amizade que souberam travar com adversários políticos.

Porque a democracia também é isto: saber escutar os outros, saber conviver com quem não pensa como nós.

 

Lembro-me deles com frequência. Como me lembro das sábias palavras que Giorgio Napolitano proferiu em 2013, ao tomar posse no segundo mandato como Presidente italiano. «O facto de se estar a difundir uma espécie de horror a todas as hipóteses de compromisso, aliança, mediações e convergência de forças políticas é um sinal de regressão», declarou neste notável discurso Napolitano, que aos 97 anos ainda é um dos políticos mais respeitados da turbulenta e caótica Itália.

Palavras que deviam suscitar meditação entre nós. Palavras que a conservadora Maria José Nogueira Pinto e o comunista João Amaral decerto entenderiam - desde logo porque sempre souberam pôr os interesses do País acima de tacticismos políticos.

Quis o destino, tantas vezes cruel, que já não se encontrem fisicamente entre nós. Mas o exemplo de ambos perdura, como símbolo de convicções fortes que - precisamente por isso - são capazes de servir de cimento para edificar pontes. E talvez nunca tenhamos precisado tanto dessas pontes como agora.

Emendar os textos antigos e racismo

jpt, 29.03.23

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(Jô Soares e casamento português)

A propósito disto das "sensibilidades" ofendidas e da "urgência" em higienizar os legados textuais (e outros) para, dizem, evitar desmandos e desvalorizações sociais, lembrei-me desta "piada de português" (muito brejeira, aviso os ouvidos frágeis) do João Soares. Só há pouco a conheci e ri-me imenso, apesar do/devido ao tom corrosivo que nos é dedicado. Ri-me apesar de saber do abrasivo do humor brasileiro contra todos nós, da sua origem xenófoba (e elitista) - recordo um belo artigo sobre a emergência na imprensa de meados de XIX destas invectivas contra os portugueses, publicado numa "Oceanos" de 2000, coordenada por Robert Rowland... Ri-me porque tem piada e porque o contexto o permite (e não é ilegitimado por qualquer patente ou presumida intenção), e ele é omnipotente nestas coisas. Tal como os "ouvintes" devem ser minimamente esclarecidos para se contextualizarem.
 
Nestas coisas de me ofenderem a "sensibilidade" (de me "racializarem") lembro dois episódios: há mais de uma década um casal moçambicano convidou-nos para jantarmos com um outro casal brasileiro, quadros de empresas recém-chegados a Maputo. Assim foi, eles simpáticos, cultos, conversadores. Mas de repente o marido contou uma "anedota de português". Não foi mal acolhida, pelo que seguiu um vasto repertório no tema. Como é evidente nunca mais convivemos com eles, desagradados num "que é isto?", e foi pena pois até poderia ter sido "o início de uma bela amizade". Mas a minha sensibilidade fora demasiado "racializada".
 
Décadas antes acontecera-me outra, ainda pior. Aos meus 14/15 anos, no Verão de São Martinho do Porto, uma família francesa (naquela época os turistas eram quase todos franceses) alugou uma barraca balnear perto da nossa. A filha era linda, loura, e aos meus anseios já se parecia com a Marion des Neiges dos "Pequenos Vagabundos", e o seu irmão e o amigo logo acamaradaram nos jogos de bola, mergulhos e outros que tais. Uns dias passados foram almoçar lá a casa, encantados com a simpatia da minha mãe - até porque ela era verdadeiramente bilingue - e com a sisuda placidez do meu pai (que devia estar a fruir o estado basbaque deste seu filho, assim notando-o a crescer "como um homenzinho"). Depois fui eu almoçar lá a casa, recebido como se adulto fosse pelo messire ali veraneante e sua extremosa mulher. À mesa a conversa fluiu, eu no meu francês pausado mas melhor do que o de agora, eles elegantemente acompanhando o meu ritmo. Entre conversas, e entre eles, o pai pediu à bela filha, sentada do outro lado da mesa, uma qualquer coisa e eu, de imediato, lha passei. Para sua sorridente surpresa, pois entendera eu não só o léxico mas, acima de tudo, a velocidade parisiense da fala... Ao que respondeu ela, talvez ufana do jovem pretendente, talvez precisando de justificar aquele convívio "inter-cultural", "ele é português mas é inteligente!"... Eu passei-me, mantendo a compostura diante dos pais, mas passei-me mesmo. Pior ainda com os outros rapazes a tentarem justificar a "gaffe" mas nisso, atrapalhados, metendo les pieds par les mains... Enfim, o pai lá soube fechar a questão, elaborando sobre a grandeza e a excelência lusa (e após a minha saída deve-se ter rido, vero gaulês, do sanguíneo petiz que lhe entrara porta dentro).
 
Ora esta minha sensibilidade foi reactiva apesar de não ter eu interiorizado (ou sofrido) qualquer pressuposto sobre a minha inferioridade intelectual, social, cultural - ou mesmo "racial" ("étnica" mascara-se agora). É pois normal que outros, provenientes de contextos recorrentemente desvalorizados (por exemplo os "parolos" que Augusto Santos Silva despreza), sejam mais epidérmicos com algumas expressões que vão enfrentando.
 
Por isso as nossas expressões e as nossas sensibilidades são educáveis, aprimoradas - só um imbecil se ri hoje daquele vil filme "Os Deuses Devem Estar Loucos" que há 40 anos foi um sucesso mundial, ancorado no humor racista do apartheid. Mas isso não implica andar a apagar o passado, a emendá-lo. Hoje a Agatha Christie e a Enid Blyton, amanhã o Engels e o Hegel (que vendem menos).
 
Enfim, mas de tudo isto o fundamental que retiro é que foi o Joaquim, um tipo do Porto, que depois conseguiu trocar uns beijos mais intensos com a Falbala de São Martinho do Porto. Não foi a última vez que isso me aconteceu, nem nada que pareça. Mas ainda me dói...

15 de Fevereiro de 2003

João Pedro Pimenta, 25.02.23

É certo que a efeméride que agora se comemora é outra, mas não queria deixar de recordar outra, mais antiga, que tem uma ténue ligação à da invasão da Ucrânia. Há pouco mais de uma semana passaram vinte anos sobre uma data que não teve grande eco nestes dias, mas que na altura não só era nota de primeira página como se tornou um marco da globalização. Refiro-me às enormes manifestações contra a invasão do Iraque, que acabaria mesmo por acontecer pouco mais de um mês depois, e que terão sido as primeiras realmente globais convocadas pela internet, ainda antes dos smartphones e das redes sociais, mas já com os blogues a despontar (e a dar-nos alguns dos melhores debates sobre a matéria).

O dia era 15 de Fevereiro de 2003. Tinham decorrido dez dias sobre o discurso de Colin Powell na Assembleia Geral das Nações Unidas, que, com a história das "armas de destruição maciça", tinha praticamente garantido que os Estados Unidos avançariam mesmo sobre Bagdade, assim cumprindo a primeira parte do plano contra o "Eixo do Mal" urdido pelos entusiastas neoconservadores, que na altura influenciavam decisivamente o Partido Republicano e a Casa Branca com a sua ideia de democratizar o Mundo e levar a pax americana a todo o lado nem que fosse à bomba (se bem que hoje, olhando para o GOP, quase tenha saudades deles). 

Apesar dos apoios, em especial dos tradicionais aliados dos EUA, começando pelo Reino Unido e Portugal e continuando pela "nova Europa", a reação seria dura, precisamente vinda da "velha Europa", com a França a liderar a oposição à guerra, secundada pela Alemanha, no que seria até uma mini-guerra cultural. Se uns clamavam contra os "belicistas" e "falcões", outros falavam em "covardia" e "anti-americanos" e acusavam a França de ser um país que estava habituado a render-se e que tinha sido graças aos EUA que a Europa se tinha livrado dos nazis (embora também se lembrasse com propriedade que os Estados Unidos deviam a sua existência à França pela ajuda decisiva na Guerra da Independência). O corolário dessa discussão seria a patética questão das "freedom fries", um nome aplicado efemeramente às "french fries", ou seja, às batatas fritas de palito, que algumas vozes com melhor memória lembraram ser belgas e não francesas (a isto se poderia chamar o síndrome Poirot).

E a 15 de Fevereiro, um Sábado, vieram as tais manifestações. Um pouco por todo o Mundo, mas particularmente na Europa e nos EUA, precisamente nos países cujos governos apoiavam a invasão. Socorrendo-me da Wikipedia, à falta de dados mais eficazes, a maior manifestação terá sido em Roma, com mais de dois milhões de pessoas na rua, seguindo-se Madrid, Londres (ou seja, as capitais dos países que apoiavam a guerra), Berlim, Paris, etc. Um pouco menos participadas, as manifestações nos EUA tiveram ainda assim largas dezenas de milhar espalhadas por todo o território. Havia de tudo: anarquistas, artistas, freiras, estudantes, reformados, etc.

 
 
Curiosamente, o "resto do Mundo", que se deveria ter mobilizado mais contra a guerra, demonstrou uma tímida oposição popular. Na Rússia, que tantas vezes invoca esta invasão para se justificar, houve escassa contestação, na China nem houve, na Ásia, mesmo no Médio Oriente, e em África, quase nem se viu. E se se pode sempre justificar com os regimes destes países, repare-se que no Brasil, de onde tenho visto críticas à "hipocrisia dos europeus", estiveram pouco mais manifestantes do que em... Malta.

 

 

Em Portugal também as tivemos. Na de Lisboa pontificava Mário Soares, ao lado de oitenta mil pessoas. No Porto bastante menos, cerca de cinco mil. Lembro-me de ir a essa, com epicentro na Praça dos Poveiros, por oposição à guerra mas também por alguma curiosidade sociológica. Por uma vez Ferro Rodrigues estava carregado de razão: na véspera, o então secretário geral do PS declarara que embora estivesse totalmente contra a guerra não iria apoiar oficialmente a manifestação (embora não estivesse contra) porque certamente haveria gente que aproveitaria para branquear o regime de Saddam Hussein. Dito e feito: entre os oradores, não faltaram aqueles que, claramente ligados ao PC, diziam conhecer o Iraque, afirmavam não haver quaisquer perseguições políticas e que Saddam o tinha transformado num país próspero e dinâmico. Ainda houve outras diatribes semelhantes, com discursos pró-Palestina e alguma propaganda, essa sim, anti-americana, como cartazes com insultos à porta do McDonalds por jovenzinhos anticapitalistas de ar pouco cuidado. Mas não dei a tarde por perdida. A causa fundamental era nobre e até reencontrei a minha velha professora da 1.ª classe, que me ensinou a ler.

Esse dia ficaria na história, como disse, como a primeiro e provavelmente maior, até agora, manifestação global da História. Acho estranho não ter sido mais recordada, embora tivesse deixado claras sementes, e até Ian McEwan escreveu um romance, Sábado, baseado nesse dia. Mas achei importante recordá-lo, não apenas pelo momento em si mas pelo actual. É que tenho ouvido muito boa gente dizer que o Ocidente apoiou todo a Invasão ao Iraque, e que particularmente os europeus são "hipócritas" porque reclamam conta a invasão da Ucrânia e apoiaram a do Iraque. Pois este dia 15 de Fevereiro de 2003, e não só, prova que isso é mentira. É mesmo o contrário. Vai-se a ver e a França, o estado francês, opôs-se-lhe bem mais do que a Rússia e a China, e os europeus manifestaram-se em massa contra a guerra, em claro contraste com a inacção de chineses, russos, brasileiros, indianos e do resto do mundo em geral. Houve muito mais indignação popular na Europa e nos Estados Unidos do que naqueles que agora se recusam a condenar a invasão da Ucrânia com a tese da invasão do Iraque (como se uma impedisse a outra, e aí está Sean Penn a prová-lo). E por cá, o PCP bramia contra a invasão de Bush mas vem sonsamente acusar a NATO de ser culpada da guerra na Ucrânia e Zelensky de ser "antidemocrático" e outras coisas que nunca disseram de Saddam. Por isso, quando ouvirem alguém com esta conversa desmemoriada e ignorante (ou de má fé) sobre a "hipocrisia dos europeus" e os "dois pesos e duas medidas" entre a invasão do Iraque e a da Ucrânia, recordem-lhes isto e mostrem que não eles têm qualquer moral para invocar whataboutismos falsos. A memória do 15 de Fevereiro cá está para lhos recordar.

Em memória atrasada de Mikhail Gorbachov

João Pedro Pimenta, 30.01.23

O mês de Janeiro de 2023 já vai a caminho do fim, em que parece que andei nos momentos e regiões certas atrás das intempéries, como a de Ano Novo no Alto Minhoa do segundo fim de semana no Porto e a da terceira semana nas terras altas transmontanas. E apesar disso, ainda fiquei com assuntos pendentes de 2022.

Uma das coisas que se menciona sempre no ano que acaba é o da necrologia. E esta esteve em destaque em 2022. A quantidade de personalidades de relevo internacional que nos deixaram é enorme. Talvez a que mais sensação tenha causado tenha sido Isabel II, que parecia eterna, e já mesmo no caír do ano deixaram-nos Pélé, provavelmente a maior lenda do futebol de sempre, e o Papa Bento XVI, cujo estado de saúde já declinava há bastante tempo. Uma rainha, um rei e um Papa, portanto.

Há muitos anos, na década de noventa, o Expresso lançou um destacável com mil figuras de relevo do século XX para celebrar a sua milésima edição. O primeiro capítulo tinha cinquenta personagens consideradas as mais relevantes do século. Duas delas morreram em 2022. Pélé era uma delas. A outra era Mikhail Gorbachov.

Gorbachov deixou-nos nos últimos dias de Agosto, enaltecido pelas democracias liberais e ignorado ou desdenhado pela sua Rússia. Putin deixou umas palavras de circunstância, apenas porque tinha de ser. O homem que tentou dar um rosto humano à URSS (literalmente, bastava olhar para ele e comparar com as faces patibulares ou caninas dos outros apparatchiks) e um rumo àquele sistema bloqueado e sem saída acabou por derrubar o regime e a próprio União Soviética. Pelo meio, assinou com os EUA o tratado de não proliferação de armas nucleares, o que causou o degelo nas relações entre blocos, aliviando o "equilíbrio pelo terror" e acabando efectivamente com a Guerra Fria. Rasgou a "Doutrina Brejnev", substituindo-a pela "Doutrina Sinatra", escusando-se a intervir nos países do Pacto de Varsóvia, cujos povos aproveitaram a oportunidade para derrubar os muros e respectivos regimes, já sem a ameaça de intervenção soviética. E internamente, também os integrantes da URSS começaram a questionar-se e a declarar a autonomia, começando pelo Báltico. O fim da Guerra Fria permitiu igualmente que do outro lado os EUA deixassem de apoiar certos cães de fila, o que originou, entre outras coisas, o fim da regime do Apartheid na África do Sul e a libertação de Nelson Mandela, a saída de Pinochet dos comandos do Chile e o fim da guerra civil em Angola (por pouco tempo) e Moçambique.

 

 

Poucos homens estiveram na origem de mudanças tão drásticas e radicais, mesmo que a intenção inicial não fosse essa. O problema é que internamente elas resultaram na implosão de um sistema que era totalitário, desumano e falhado, mas que deu lugar a anarquia, pobreza e violência extremas. Não era isto que realmente Gorbachov e os russos desejariam, mas acabou por ser o resultado, de tal forma que no fim da década de noventa colocaram um tal Vladimir Putin à frente dos destinos do país.

A morte de um ser desta dimensão nunca é positiva, mas o desaparecimento de Gorbachov ocorreu na pior altura possível, precisamente quando o regime vigente na Rússia está mais tirânico do que nunca desde Tchernenko - ou seja. a URSS pré-Gorby - e representa exactamente o contrário do que o último líder soviético representava: autoritarismo, corrupção, opacidade, militarismo e ultranacionalismo. E a tentativa de reversão das independências obtidas à época, com a brutal invasão à Ucrânia, depois de se ter mutilado a Geórgia e a própria Ucrânia.

Porque a morte de Gorbachov em Agosto levou-me a outro Agosto, o de 1991, em que fora vítima de um golpe de estado dos últimos defensores do regime soviético puro e duro. Recordei-me das imagens dos russos manifestando-se em Moscovo, de Ieltsin em cima de um tanque, com a Duma (a mesma que ele mandaria atacar dois anos depois) em fundo, a conferência de imprensa da junta golpista num anfiteatro de dimensão estalinista (diz-nos José Milhazes, então presente, que o primeiro-ministro Valentin Pavlov estava ausente porque não tinha recuperado de uma bebedeira na véspera), e a cara de fuinha do auto-proclamado presidente, Yanayev, e depois o falhanço do golpe e o regresso de um Gorbachov pálido mas aliviado. Vi tudo isso num mês em que não podia fazer muito mais porque decidi partir uma perna logo no último dia de Julho, o que constituiu um rude golpe nesse meu começo de adolescência.

 

 

E também nesse Agosto, aproveitando o fiasco do golpe, o que restava de facto da URRS ruiu. Lembro-me das imagens do anúncio do fim do regime comunista e em simultâneo da restauração da bandeira russa. Pensei até há pouco tempo que tivesse ocorrido no dia dos meus anos, mas afinal é de dois dias antes, 22 de Agosto. Em contrapartida, fiquei a saber há pouco tempo, por causa da guerra em curso, que a Ucrânia tinha como dia da independência precisamente o 24 de Agosto (de 1991). Assim, eu e a Ucrânia fazemos anos no mesmo dia. Como não poderia apoiar a causa da sua independência?

Gorbachov deixou-nos no mesmo mês - mas em ano diferente - em que as suas reformas e a reação às mesmas precipitaram tudo aquilo que era impossível manter. Que a sua memória seja no futuro tão favorável como a dos povos que graças a ele ganharam a sua liberdade.

Saramago e o Portugal de sempre

Pedro Correia, 16.11.22

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Vivi com José Saramago um dos momentos mais gratificantes da minha vida profissional. Aconteceu em Maio de 1981, quando o Círculo de Leitores, a propósito do lançamento da sua Viagem a Portugal, convidou um grupo de jornalistas a acompanhar o escritor numa deslocação ao interior do País em que ele próprio fez de cicerone. Foram três dias à descoberta de um Portugal que muitos de nós desconhecíamos, com etapas em locais deslumbrantes, como Sortelha, Marialva e Cidadelhe.

Eu era um miúdo, ainda a dar os primeiros passos na profissão, e talvez por ser o benjamim do grupo tive mais facilidade em travar longos diálogos com o escritor. No início daquela que seria porventura a década mais feliz da sua vida, Saramago estava ainda longe do reconhecimento público de que gozou mais tarde. Estivera largos meses desempregado, na sequência do 25 de Novembro de 1975, e aplicara toda a sua férrea força de vontade na escrita. Desse labor nasceu a obra que confirmaria a sua vocação de romancista: Levantado do Chão, lançada meses antes.

Mas esses, para o futuro Nobel da Literatura, ainda eram tempos de incerteza. O êxito de Levantado do Chão não foi imediato: o romance foi maturando entre o público e só ganhou projecção à medida que se sucediam as críticas favoráveis, com semanas de intervalo. O lançamento da Viagem a Portugal ocorreu nessa altura em que conheci pessoalmente Saramago e fui testemunha directa da paixão que o escritor tinha pelo País. Aqui e ali, revoltava-se com atentados notórios à nossa memória histórica. Uma vez e outra, maravilhava-se perante jóias do nosso património natural e cultural, procurando transmitir esse deslumbramento aos seus companheiros de jornada.

 

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Publicada a reportagem no jornal onde então trabalhava, liguei ao escritor, pedindo-lhe uma entrevista. E ele acedeu de pronto. Era o tempo do balanço de Levantado do Chão, o Memorial do Convento vinha a caminho.

Longe da imagem pública que transmitiu nos anos posteriores, Saramago era uma pessoa tímida, que procurava disfarçar essa característica - reflectida também numa ligeira gaguez - com um rosto fechado e até um pouco duro. Mas os seus traços fisionómicos logo se suavizavam à medida que a conversa progredia e se estabeleciam pontos de contacto com o interlocutor. Lembro-me de lhe ter dito na altura que também o apreciava como poeta: os seus Poemas Possíveis (1966), que lera pouco antes, deixaram-me uma excelente impressão. «Agradeço-lhe, mas sei que nunca serei mais do que um poeta mediano», disse-me. Não voltou a editar outro livro de poesia.

Depois dessa longa entrevista, seguiu-se outra, por ocasião do lançamento d' O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Guardo uma grata memória de uma tarde passada no seu apartamento na Rua da Esperança, em Lisboa, com a conversa a fluir para o gravador ao som das partituras de Bach e Mozart que enchiam a casa. Era já evidente, nessa altura, a consagração literária do escritor que 14 anos mais tarde se tornaria o único autor em língua portuguesa até hoje distinguido pela Academia de Estocolmo.

 

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Saí de Portugal, andei longos anos fora. Só voltei a ver José Saramago depois do Nobel, quando o escritor foi recebido no Diário de Notícias com uma estrondosa ovação dos jornalistas, por iniciativa de Mário Bettencourt Resendes, então director do jornal. Um gesto que pôs fim simbólico a uma traumática etapa da vida do centenário periódico onde Saramago, enquanto director-adjunto, escreveu alguns dos mais inflamados editoriais do Verão quente de 1975 - textos que o perseguiram durante o resto da vida.

Nunca partilhei das ideias políticas de Saramago nem apreciei um certo culto narcísico que o escritor foi alimentando nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao Nobel, aliás bem patentes em dezenas de páginas dos seus Cadernos de Lanzarote. Alguns dos seus livros são projectos falhados, como Jangada de Pedra ou A Caverna (que deixei a meio, farto de tanto ataque primário ao "capitalismo"). Mas é incontestável o lugar na história da literatura portuguesa do homem que nos legou o Memorial do Convento, o Ensaio sobre a Cegueira e As Intermitências da Morte, notável novela-testamento em que de algum modo ironizava com o seu próprio destino físico.

Mas o meu livro preferido será sempre a Viagem a Portugal: costumo ter à mão e consulto com frequência o meu exemplar da primeira edição, com uma amável dedicatória do autor. Recordação daqueles três dias inesquecíveis e testemunho perene do amor de José Saramago pelo Portugal profundo, pelo Portugal de sempre.

 

Texto reeditado, no dia do centenário do nascimento de José Saramago

33 anos após o derrube do Muro de Berlim

jpt, 14.11.22

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Lembro um episódio, longo, entre tantos. Em 1994 segui à África do Sul, para trabalhar nas eleições que fizeram ascender o ANC ao poder. Era a primeira missão de observação eleitoral da UE, coisa de três meses  - ricos como se muito tempo fossem, tão longa, milionária, pareceu aquela experiência. Ombreámos com os observadores da ONU, ali já colocados há muito tempo, que lhes era missão mais demorada. Na zona onde fui colocado vários desses estavam no país há mais de um ano, e vinham já experientes de outras áreas. Entre outros muito lembro o seu coordenador, Brian (ninguém usava apelidos), um velho com quase 50 anos, irlandês, ruivo, alcoólico (não tocava em álcool, num corajoso sorriso "já bebi o suficiente na minha vida..."), um tipo finíssimo. E Slobodan, um ex-diplomata jugoslavo, náufrago etilizado da "former Yugoslavia", trepidante num volante lesto de morrer, nisso um susto de coabitação, e homem "maior do que a vida" e isso também por todo aquele abissal desespero de recém-apátrida. E Marie-Vi, uma jovem e belíssima francesa, que a todos seduzia no seu simples estar (ainda assim não tanto a mim naquele tempo, apaixonado que seguia). E alguns outros, menos memoráveis.

Lembro-os também porque já então veteranos das missões de paz, eleitorais. Vinham de longas estadas, anos até, decorridas no Cambodja. Lembro-me daquelas noites diante do Índico, bebericando sôfregos, embrenhados naquele magnífico momento sul-africano. Até que, a um determinado momento, uísques ou cervejas cruzadas, muitos e muitas, seguiam eles a falar do que haviam vivido no Cambodja. Do que sabiam que fora, e ainda era.

Agora, décadas depois e por cá, leio ouço estes intelectuais, estes académicos, estes jornalistas, que continuam, ano após ano, a louvar o que chamam "socialismo" - de facto estão a falar dos países comunistas -, e sempre negam o horror. Alhures, entre outros, contado e recontado, olhos pesados, copos rodados entre-dedos, estes que tendem a trémulos. Dir-vos-ão (nunca a mim, que o insulto imediato logo me brota) que não era aquilo o "projecto", o "ideal". Utilizam para o seu miserável sonho (ou para os meros laiques de funcionários públicos burguesotes da descansada europa ocidental) um crivo totalmente diferente do que usam para o que dizem "pérfido capitalismo". Liberalismo? Gritam Pinochet (ignorantes que são nem invocam o ainda pior Videla). Socialismo (aliás, comunismo)? Refugiam-se num qualquer mito, nunca sobrevivido às pérfidas ditaduras. Aos massacres, aos genocídios, aos sociocídios, aos etnocídios, à tortura, à tanta coisa. Se lhes apontamos alguma memória histórica? Não é esse o ideal, respondem ... E ilibem-se, em conúbio entre eles, militantes e funcionários públicos do real.

A muitos o Estado paga-lhes salários. E eles seguem na sua abjecta falcatrua ideológica. E dela fazem profissão. Alguns, mais serenos, limitam-se -  quotidianamente nas "redes sociais" e ciclicamente nas urnas - ao sufragar dos grandes assassinos da história. Enquanto ensinam as novas gerações. E a nós - crentes na mediocridade trôpega da democracia, da necessidade de a sempre melhorar - dizem-nos desconhecedores da concepção de "dignidade humana", como um dia até se atreveu um renomado lente de Coimbra. E vão limpando a memória dos polpotismos ou outros comunismos, querendo apagá-la. Apenas 30 anos após aquelas gigantescas desgraças.

E não têm qualquer vergonha. Nem os locutores. Nem os "laicadores".

Memórias de Adriano

João Pedro Pimenta, 25.10.22

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Fazendo umas buscas entre datas e calendários antigos, confirmei o que pensava. Neste dia, 24 de Outubro, há já uns bons anos, ouvi pela primeira vez ao vivo o Professor Adriano Moreira, tendo tido o privilégio de falar com ele no fim. Tinha eu chegado a Lisboa poucos dias antes, iniciando uma estadia que se prolongaria por alguns anos, e logo no início, no curso de Política Externa que então realizava no IDN, apanhei logo com um gigante académico desta monta. Escusado será dizer que a aula se constituiu de conhecimento, experiência, ironia, clareza, saber académico e pedagogia. Voltei a ouvi-lo outras vezes, mas a primeira deixou-me uma viva impressão.

Dá-se o infeliz acaso do "aniversário" desse encontro calhar quase na data do seu desaparecimento. Não deve haver notícia mais natural acerca de uma pessoa com cem anos do que a da sua morte, mas esta, para além da tristeza pessoal, para mais quando o centenário tinha sido há tão pouco tempo, significa mesmo, segundo o adágio popular, o fecho de uma biblioteca, neste caso de colossais dimensões.

E de memórias do próprio Adriano Moreira ficou-me o seu afecto pela (e da) família, como se pode ver pelos artigos que os filhos, em particular a filha "rebelde" Isabel Moreira, lhe dedicam, em que mencionam o medo de deixar a sua mulher desprotegida, mas mais ainda, a memória dos pais, como quando realizou a sua primeira visita a Moçambique como Ministro do Ultramar e o seu próprio Pai, ainda polícia, quis ir com ele para assegurar a protecção do filho, ou quando tinha de ir ao cemitério de Grijó, Macedo de Cavaleiros, de onde era natural e onde está o jazigo dos pais, por achar que podiam sentir-se sozinhos. E ainda, quando lhe morreu recentemente um filho, há uns dois anos, a descrição feita por Ribeiro e Castro, na missa de corpo presente: "estava direito: velho e direito. É um carvalho antigo transmontano. Um pouco quebrado, pelo tempo e pelo dia, mas grande, velho e direito".

Tinha também esse característica que muito aprecio: um transmontano que nunca disfarçou as suas raízes, ao contrário de tantas figuras públicas, e que, pelo contrário, fazia questão em recordá-las e em dizer de onde vinha, e a sua cara em traços firmes e recortados, mas não rudes, assim o confirmava. Curiosamente a primeira vez que ouvi falar dele terá sido em Vila Real, ao reparar naqueles cartazes em que surgia com o filho mais novo, que devia ter pouco menos que a minha idade, na campanha em que o seu CDS ficou reduzido a um "táxi" (estranho como os mais preparados líderes nem sempre são os que têm mais sucesso, ou talvez até por isso...).

Este homem, que exerceu funções políticas e académicas neste regime, no anterior e que nasceu no anterior a esse, era o último de uma notabilíssima geração que estaria agora nos cem anos: Agustina, Gonçalo Ribeiro Telles, José-Augusto França, Eduardo Lourenço, que chegaram aos noventa e muitos, e desaparecidos com menos idade, Sophia (e muito mais novo o seu primo Ruben A.), Saramago, os irmãos António José e José Hermano Saraiva ou Natália Correia. Quase todos chegaram a idades bastante avançadas, mas só Adriano conseguiu chegar aos cem. 
 

Como era a juventude

Paulo Sousa, 19.09.22

Dizer que Portugal mudou muito nas últimas décadas é uma redundante repetição. Basta abrir um jornal português dos anos 50 ou 60, ou um noticiário num arquivo digital para descobrirmos um país que não conhecemos. Esses registos retratam sempre, ou quase, a vida nos grandes centros, o mundo dos que viviam em frente das objectivas e dos repórteres que lhe davam voz.

Nas terras pequenas o mundo também mudou bastante. Cresci a ouvir histórias contadas pelos mais velhos sobre o seu tempo de juventude, ou de mocidade, como então se dizia.

A juventude dos meus tempos foi bem diferente da desses tempos e foi também diferente da dos jovens de hoje. Comparando com o que acontece hoje, há cinquenta ou sessenta anos nasciam bebés em barda. Também morriam bastantes, mas só os rapazes da minha terra eram suficientes para, com dois ou três anos de diferença, fazerem várias equipas de futebol. Agrupavam-se por território. Os da parte alta da vila, então aldeia, jogavam contra os das ruas centrais e também, à vez, contra os do lado do pinhal. A modalidade não interessava, podia ser futebol, ao pião, assim como à pedrada ou à cachaporra. Em grupos mais pequenos, corria-se acima e abaixo por terrenos cultivados, por pomares e encostas, e competia-se também pelo número de ninhos da passarinhos encontrados. Os ninhos de aves de maior porte, milhafres, corvos, rolas ou pegas-rabudas eram reservados a uma elite que normalmente vivia na periferia e que, por perder menos tempo aos pontapés na bola, se especializava no que, entretanto, se passou a chamar birdwatching. Se bem que, tendo arte para isso, rapidamente eles iam além da observação e, em podendo, capturavam-nos para os criarem, ou simplesmente os ter, em casa.

Às vezes, a miudagem quando apanhava as aves progenitores fora do ninho, colocava as crias dentro de uma pequena gaiola e deixava-a no mesmo sítio. Após a surpresa inicial, os passarinhos novos lá continuavam a ser alimentados através das malhas da rede. Depois, já maiores e mais gordos, seriam apanhados sem se correr o risco de que aprendessem a voar e lá fossem à vida deles. Mas as gaiolas eram escassas e muitos acabavam por se escapar.

Quem sabia a receita, cozinhava numa panela velha uma mistura secreta que incluía a goma que escorre de algumas ameixoeiras e pessegueiros, bocados dos elásticos das fisgas e outros ingredientes desconhecidos por mim. A partir daquela mistela faziam visgo. Com esta cola, capaz de ficar agarrada às mãos durante semanas e que parecia nunca secar, untavam umas pequenas braças de arbusto que colocavam junto a algo que atraísse a passarada. Podia ser uma tigela de água no Verão, um montinho de milho britado ou uma gaiola com as próprias crias lá dentro. Com um pouco de sorte, após três ou quatros insucessos, lá apanhavam um bicho preso pelas patas. Depois era guardado em casa, numa gaiola maior, junto de outros capturados antes.

No meu tempo de garoto, só um primo meu mais velho é que sabia fazer visgo. Cozinhava-o dentro de uma lata vazia. Com o fumo daquele bruxedo mal-cheiroso pintou, numa parede velha, um largo risco negro, que ali ficou até ter sido demolida. Nunca me deixou ir com ele aos pássaros, pois era mais novo e iria espanta-los. Era o que ele me dizia.

Só do lado paterno, o meu pai tinha sete tios. Lembro-me de ele contar, que certa vez uns primos mais velhos tinham alinhavado umas folhas de papel, e alinhavado mesmo com agulha e linha, onde anotavam a localização dos ninhos que tinham encontrado e que iam espreitando até as crias estarem a jeito de serem apanhadas para fazer uma patuscada. Um dia, os mais novos conseguiram surripiar os apontamentos aos mais velhos. Perante a abundância daquela informação “classificada” decidiram antecipar a colheita.  O final do relato deste episódio termina na rampa empedrada com seixos redondos, que na casa dos meus avós dava acesso ao pátio. Ali juntaram toda aquela pardalada, que depois de morta foi depenada e amanhada. Não me lembro se os comiam guisados, mas imagino que sim.

Desses relatos transparecia uma mistura de, arrisco-me a dizer, reflexo antropológico de caça em grupo, de paixão pela beleza daqueles pequenos seres voadores, de partilha exibicionista de conhecimento entre os pares, de busca pelo apuro da nobre arte cinegética e, obviamente, também um complemento de proteínas.

 

Diz-se que o povoado que antecedeu a aldeia que, entretanto, se tornou vila, começou num vale a pouco mais de um quilómetro do actual centro. Aquela zona sempre foi cultivada com novidades e hortícolas várias. É muito fresco todo o ano e graças aos poços que ladeiam o ribeiro que ali passa quando chove, é possível fazer regas até mesmo durante o Verão. Este vale era por isso muito frequentado por texugos, que se alimentavam durante a noite do melhor que havia à disposição. Era uma apoquentação. Não se podia ali ter nada ao ponto de, sempre que necessário, se organizarem umas capturas. A caçada, tal como o bicho, era nocturna e isso fazia a emoção do desafio subir uns furos. Pelo que ouvi, o bicho era esperado à saída da toca, onde se armava um laço. Depois era só esperar em silêncio. O bicho era desconfiado, podia demorar a sair e isso obrigava a uma espera interminável. Por serem muito difíceis de apanhar, só mesmo os mais exímios caçadores eram bem sucedidos. A conquista significava algum sossego nas ervilhas e nas favas de todos os que ali amanhavam alguma coisa e por isso, na madrugada seguinte o bicho era exibido pelas ruas, porta a porta, pendurado num pau, amarrado pelas patas. Em todas as casas de quem já tinha sido roubado pelos texugos, os caçadores recebiam uma moeda. Ou então, um copo de vinho.

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Foto Rafael Coelho de Sousa

Os miúdos de outros tempos só eram atraídos à casa onde moravam, para comer e dormir. Quando muito para evitar umas sovas, que inevitavelmente acabavam por acontecer. Os mais macios também corriam para casa quando alguma rixa lhe corria mal. Os outros desapareciam para as fazendas onde, ágeis e velozes, eram impossíveis de apanhar.

Foi essa geração que preencheu as fileiras da Guerra do Ultramar. Já adultos, com umas toscas e mal escalavradas tatuagens nos bíceps, ouvi-os falar do Tete, do deserto do Namibe, de Nova Lamego e de Teixeira Pinto, com o mesmo desvelo e conhecimento com falavam do Talho Redondo, da Fonte Falsa e das Eiras Novas. Sem o saberem, quando apanhavam bicos-de-lacre, tentilhões e cias, estavam apenas na pré-primária da caça às pacaças, zebras e gazelas com que a vida os haveria de fazer cruzar. Nesses relatos da minha infância também ouvi alguns contarem que também tinham caçado pretos, mas isso agora não se pode dizer.

Antes e depois do serviço militar, o ponto de encontro dessa geração foi sempre nas adegas de uns e de outros, onde o vinho nunca faltava, nem conduto para o ensopar. Nesses anos, alguns mais novos, fundaram o clube de futebol, que oficialmente só foi constituído depois do 25 de Abril. A primeira sede foi num palheiro onde os jogadores se fardavam antes dos jogos de futebol. O primeiro campo, com balizas de madeira caiada de branco, foi num rectângulo de terreno no meio dos pinhais que lhe deram o nome, pois desde então passou a ser o Estádio da Pinhoca.

Nos anos quentes que se seguiram à revolução, o campo de futebol foi alargado à custa dos proprietários vizinhos. Naquele tempo, aquela turba gadelhuda, de voz grossa, de calças à boca de sino e conhecedora das artes da guerra, foi, treino após treino, domingo-de-jogo após domingo-de-jogo, alargando o campo até que este atingisse as medidas oficiais. Em pouco mais de dez anos, aquele rectângulo foi murado e ali foram construídos balneários e bancadas.

O declínio começou com um incêndio já nos anos 90, que fez desaparecer o pinhal e as pinhocas que lhe davam o nome. Depois foram os incomportáveis e crescentes custos das inscrições dos jogadores de todos os escalões na Associação de Futebol. A isso seguiu-se uma mudança da Direcção, que coincidiu com a construção ali mesmo ao lado de um pavilhão municipal, pago com fundos europeus. Tudo junto ditou que o clube desistisse do futebol de 11 e passasse a competir apenas no Futsal. A marca ainda é a mesma, mas os sócios fundadores já quase todos partiram. A sede está forrada com fotos de equipas de muitos escalões e de muitos anos. Há uns tempos mandei imprimir e pendurar na parede as mais antigas de todas. Foram tiradas pelo meu tio e são anteriores à fundação oficial do clube. Retratam as condições em que se jogava. No inverno metade do campo era uma poça única e o resto era apenas lama.

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Foto Rafael Coelho de Sousa

Actualmente o velho campo está abandonado, cheio de erva e sulcado pelos peões dos serôdios dos tunnings.

Em várias dezenas de hectares em seu redor, o pinhal, que depois daquele incêndio, nunca mais voltou a ter pinheiros, vai receber agora um parque solar. O Plano Director Municipal, actualizado há uns dez anos, acode-nos para ordenar o território, para complicar a vida aos proprietários, mas foi incapaz de nos defender daquela agressão estética. É um facto consumado e os eucaliptos já andam a ser derrubados a eito. É claro que todos queremos e precisamos de energia limpa e renovável, mas com tantos milhares de hectares desocupados no interior do país, tinha de ser logo aqui? Serão mais de 20.000 painéis a ocupar mais de 20 hectares e irão preencher totalmente o espaço entre duas povoações.

Há poucas semanas, numa sessão de esclarecimento no Salão Paroquial lá explicaram ao povéu que a proximidade de uma central de transformação da eléctrica nacional, que até pertence a uma nação que não é a nossa, justifica esta localização. Dizem que é a logística e agora já não há nada que se possa fazer.

Eu, que também gostava de ser energeticamente independente, lembrei-me que se fossemos da têmpera daqueles judéus (era assim que se dizia, com acento no é) caçadores de pássaros dos anos 50 e 60, os painéis seriam metodicamente danificados à pedrada, mas como todos só queremos é paz e sossego, nada disso irá acontecer.

Quando eu comecei a sair à noite, ia para o café, nessa altura a sede do clube não era a minha onda, e ficava à espera que os meus amigos e conhecidos aparecessem. O tempo fluía e, entre umas cervejas e umas cigarradas, para quem fumava, lá iam aparecendo uns atrás dos outros. Dali seguíamos para outras paragens. O café era o ponto de encontro e vivia também desse tempo de espera.

Com a massificação dos telemóveis, aquele café deixou de ser ponto de encontro e até já fechou. Agora os encontros da malta nova combinam-se on-line, e é na sede do clube que alguns teimosos insistem em ver a bola depois do treino de Futsal ou do dia de trabalho. Fuma-se na rua, debaixo do toldo.

A miudagem mais nova já não brinca na rua pois passa o tempo livre agarrada aos écrans, e o único pássaro que conhece é o logótipo azul do Twitter.

Coldplay e a Economia do Rock

jpt, 25.08.22

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Não é preciso afixar um retrato para comprovar a conclusão a que hoje cheguei: abandonei o estado de (mais-)velho e atingi o estatuto, frágil, de ancião.
 
Notei isso face à azáfama nacional na aquisição de bilhetes para os concertos do grupo Coldplay, que actuarão em Maio próximo em Coimbra - em espectáculos com algum apoio autárquico (ainda não especificado) -, numa hora esgotaram-se três lotações do estádio municipal  e outra se esgotou em breve, tamanho o afã de centenas de milhares de admiradores. O bilhete mais barato custa 90 euros, depois 150 e daí para cima. Demonstração de que há dinheiro na sociedade civil, algo óptimo, pois saudável.
 
Mas lembro-me, ancião ainda não totalmente desmemoriado, de uma coisa. Quando era miúdo tinha o hábito de coleccionar os bilhetes dos concertos, e de os afixar no quarto. Assim os seus detalhes acompanharam-me anos e recordo alguns: os bilhetes de rock em estádio custavam 420 escudos (Police, para exemplo de grandes "estrelas", e em organização de apenas um concerto, no topo do estádio, assim com menos audiência). Quantia que era, grosso modo, o equivalente ao preço de um LP e de um single. Já os concertos de pavilhão (principalmente no Dramático de Cascais, no Restelo ou em Alvalade, rondavam os 300 escudos - o tal LP).- Quando uma década depois (já na CEE) os Rolling Stones deram um (apenas um) espectáculo em Lisboa, na sua ansiada primeira actuação no país, o bilhete custou 5500 escudos. Era dinheiro que se visse. Mas, de facto, correspondia a um jantar bem regado num restaurante mediano no "Bairro" (esse que fomos nós que inventámos, não os d'agora).
 
E agora a lotação de 4 estádios com bilhetes de 90 euros para cima, esgotados numa manhã? A economia do rock mudou muito. E eu, ancião, congratulo-me. Finalmente o meu país está na "Europa", os patrícios abonados. Enfim, vou ali ao parque jogar dominó....

Construção Social do Género

jpt, 17.08.22

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Estas questões do "género" têm que se lhe diga, e o que sobre isso vem à baila também. Diz-se que "agora" os homens têm de se despachar em afazeres domésticos, aprendê-los e isso, num óbvio "os tempos mudaram", um viés do que hoje se diz "construção social do género" e antes se dizia divisão sexual do trabalho. Será assim, para os muitos das novas gerações, os desta "Era Identitária"... Acontece que sou velho e tenho outras memórias, "identitárias" por assim dizer.
 
Quando acabei o curso fui convocado ao "Calhau". Não guardo disso boas memórias, pois foi um azar nítido: não só pelas oportunidades laborais que logo perdi. Mas, acima de tudo, porque no meu edital (25 ou 50 nomes, já não recordo) fora o único a quem não tinha sido atribuída a ansiada "passagem à reserva territorial". Terá sido o dia de maior raiva da minha vida.
 
Depois foi o que sabem aqueles que fizeram a tropa. Algo rude - menos que antes, pois havia 2 anos que tinham morrido uns recrutas na "prova do fosso" e isso amainara o jovem oficialato e os temíveis furriéis. Pesado, porque aquela "ginástica até à morte" não era um mero mito. E dificilmente suportável, porque tudo aquilo era, acima de tudo, uma imensa perda de tempo para um puto cheio de pressa na vida. E depois, ainda por cima, era um bocado pacóvio, de anacrónico - cada um tinha a sua "namorada" (a G3): e todos tínhamos um "inimigo" ("o meu alferes dá licença?", um dia perguntou o sô Teixeira, durante a prelecção ao pelotão na parada, "diga, sô Teixeira!", "quem é esse inimigo?". Sorriso do jovem oficial - que era um puto porreiro, rijo mas porreiro - e "Bem, dantes eram os russos, agora não sabemos!!!", que o raio do Gorbatchov nos tinha trocado as voltas...).
 
Enfim, por lá andávamos, Tapada acima, Tapada abaixo, disparando quando nos diziam para isso, correndo e saltando quase sempre, marchando na parada com a monotonia ou nas cercanias do raio da vila (raisparta Mafra), com mochilas mais pesadas do que no inter-rail, estudando sebentas do pequeno oficialato noite afora, sorvendo o rancho que não vinha do Pap'Açorda, e o tintol que se dizia ter cânfora para reduzir os anseios (sodomitas, presumo), e sei lá mais-o-quê que já lá vão mais de trinta anos. E no meio disto tudo ainda se tinha de aturar - e isso talvez fosse o pior - os instruendos camaradas estuporados, pois ali deprimidos e/ou na ronha, sofrendo aquilo como se dali fossem partir para a frente leste, os esperasse um qualquer Estalinegrado e não apenas um anito de modorra numa Tavira ou Lumiar qualquer...
 
Enfim, no que tive de fazer lá me safei o suficiente, apesar de desajeitado naquilo (menos na pontaria, registo, apesar de destro com olho condutor esquerdo), muito devido ao que na avaliação final ficou explícito, uma boa referência em "rusticidade", algo que ainda hoje recordo com prazer, enfático.
 
Dito isto, foi na tropa que este burguesote, tão benjamim que quase filho-único, aprendeu a coser botões, a ir à máquina de lavar quando chegado a casa de trouxa às costas, a passar a ferro (mais ou menos, mais ou menos...), a ter os pertences muito bem arrumados, qu'a gente tem de limpar os sanitários (lavabos e cagadoiros), a ter calçado e vestes impecáveis. A organizar uma mesa (quando se é "chefe" dela"). E que fazer a cama é a primeira coisa após se vestir, e muito bem aprumadinha, que a "casa" não é para estar descomposta... E, mais do que tudo, a ser "mães de famílias" (como então se dizia) pois também era exigido o tomar conta dos outros (mais-novos, por definição) que não sabiam fazer as coisas, como eu desesperado com o bom do sô Cabecinhas, meu camarada de beliche, um daqueles alourados celtas que o Norte ainda nos oferecia, desajeitado nas artes de esticar lençóis e tão atrapalhado em tudo aquilo, assim sempre atrasando-se, que algo relapso na higiene pessoal, obrigando-me a trocar-lhe in extremis as fronhas, para evitar a gritaria do oficialato, aquela do "Sô Teixeira, você não está a ajudar o seu camarada... vamos encher". Etc...
 
Enfim, é isto apenas a minha contribuição de antropólogo para esta lengalenga da "construção social do género", sub-secção "lavores". Quanto ao resto? Raisparta Mafra...
 

Uma rapariga do meu tempo

Pedro Correia, 11.08.22

Eu era miúdo, mal saído da infância, ela já adulta. Foi um dos meus primeiros amores de adolescência. Linda: parecia uma princesa. Invejei o imbecil do Travolta: queria estar no lugar dele na película que ambos fizeram lá para finais dos anos 70. Filme foleiro, disseram alguns, sem perceberem que aquilo era uma festiva celebração da vida. Fugaz instante que tão cedo se esvai.

Demasiado cedo, no caso da minha sempre amada Sandy, também chamada Olivia Newton-John

Memórias do Vento

Maria Dulce Fernandes, 14.07.22

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No princípio, era a TV a preto e branco com um só canal, espremida numa caixa quadrada inestética e escura, com um pequeno cinescópio cheio de estática, que ligava aos fios que corriam até uma antena em formato de espinha de peixe fixa no telhado, que em dias bons nos permitia ver as notícias, alguns desenhos animados e as noites de teatro.
O Pai adorava as noites de teatro e posso dizer com sinceridade que, dos programas descontinuados, foi o que mais saudades me deixou.
O temporal que  sobre nós desabou deixou as sequelas de destruição que os ventos largados em fúrias assassinas costumam deixar por onde passam.
Vi e chorei. Chorei pela árvore que eu conheço desde que me conheço, aquela que soçobrou e com um gemido de dor não resistiu ao sopro forte do huno que a fustigou.
Chorei, porque me lembrei de estar com o Pai em frente à caixinha preta, a rever pela enésima vez "As árvores morrem de Pé", de Alejandro Casona, soberba interpretação duma já muito idosa Palmira Bastos, onde brilhava o também saudoso Varela Silva. Chorei por me recordar de como o Pai, de olhos brilhantes, repetia as palavras finais com a protagonista "Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores"... Fico parada a olhar para dentro da recordação que me acarinha, enquanto tudo à minha volta rodopia num turbilhão tão violento como as emoções que me assaltam. 
Lá fora,  o  vento  que estridente sopra do mar continua a poderosa investida contra as muralhas da nossa incapacidade, numa batalha que sabe ganha à partida.

O Palácio da Saudade

Maria Dulce Fernandes, 04.07.22

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A Tia Adelaide, que Deus tem em descanso há quase duas décadas, morava com o segundo marido numa casa antiga. O Tio Marcelino depois de praticar religiosamente o seu desporto favorito, dormir duas ou três horas diárias de modo a recuperar energias gastas a fazer laboriosamente o menos possível, acedia de bom grado aos pedidos que a esposa gentilmente lhe ordenava e bricolava pela casa de modo a que a mesma se assemelhasse cada vez mais àquele antiquário que a Tia Adelaide adorava visitar na Rua de S. Bento.

 

Um quadrozinho por outro com qualidade, pinturas do Sr. Monteiro do atelier copiando os Mestres, ladeava com molduras com recortes de revistas e pósteres tauromáquicos onde pontuava o nome da estrela da família, o trisavô Manuel dos Touros.

 

Caixinhas de música, loiça chinesa, jarras, vasos, potes, um sem número de preciosidades com que o Senhor Doutor, alto dignitário de Portugal em Macau presenteava a Tia Adelaide pelos seus dotes de passajar roupa de tal modo que os infelizes buracos de cigarro se perdiam na magia da agulha e do dedal. A Tia Adelaide não teve filhos, por isso coleccionava pequenas peças do Bordalo num aparador envidraçado que mostrava a quem a visitasse, sem nunca permitir que um "seu menino" deixasse a sua mão. Podiam muito bem ser admirados de longe.

A casa da Tia Adelaide era alta e castiça, e não fora a falta dos fados e guitarradas bem poderia ter sido a inspiração de Alberto Janes para as célebres tabuinhas. Tinha uma escada estreitinha que levava a um sótão com uma banca de carpinteiro e novelos de aparas de madeira pelo chão, lugar mágico onde eu buscava e rebuscava, tentando encontrar os macaquinhos que o meu Avô afiançava que a sua irmã mais nova possuía no sótão, sem qualquer sombra de dúvida.

Escusado será dizer que os nunca encontrei.

As janelas, altas como portas, davam para o Jardim do Ultramar, separadas apenas por uma nesga de rua e um muro. Passava horas a atirar pão duro aos patos, a assistir a corridas e lutas pelos pedaços e a imaginar histórias mirabolantes, enquanto me deliciava com bolachas de agua e sal com colheradas generosas de doce de tomate.

O Tio Marcelino, dez anos mais velho, de 1900, como orgulhosamente apontava, partiu também dez anos mais cedo. A Tia Adelaide manteve-se ali, rija, enquanto as pernas lhe permitiram. Depois, com grande pesar de deixar o seu cantinho e os seus quadros de natureza viva, que se animavam mal abria as portadas, foi viver com familiares até chegar a sua hora.

 

Lembraram-me hoje de ir espreitar a casa da Tia Adelaide.

De cara lavada e com plástica bem conseguida, brilha naquele filamento antes parelepípedos escuros, agora clara e alegre calçada, como uma relíquia que finalmente viu luz.

 

Não passou sem emoção é verdade, mas acredito que, gaiteira e divertida como ela só, a Tia Adelaide iria achar a casa um palácio.

Para mim foi revisitar o palácio da saudade.

Linchamento

jpt, 27.06.22

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Ao que parece a notícia não é especulativa, foi isto real: em Maluana, distrito da Manhiça (na província de Maputo, para quem desconhece) sete homens foram linchados, acabando enterrados vivos.
 
E regressa-me a memória, de há duas décadas. Um fim da tarde já escuro, o trânsito atravancado na Guerra Popular, em modo de linchamento uma exultante turba espanca um desgraçado pequeno meliante, que ali resta já mudo. Saio do volante para intervir e logo estanco, descorçoado entre-carros, digo-me em surdina "sai daqui, Zé!", atemorizado. E não tenho, nem virei a ter, um qualquer deus que me perdoe tamanha cobardia. Apenas a amnésia me vale, agora interrompida...

Watergate 50 anos depois

Pedro Correia, 17.06.22

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Escândalo Watergate começou com um assalto a 17 de Junho de 1972

 

A minha geração foi irremediavelmente influenciada pelo caso Watergate. Sonhei ser jornalista precisamente porque Watergate aconteceu. Dissequei-o nos mais ínfimos pormenores e na minha galeria de heróis figuram não só o duo Bob Woodward-Carl Bernstein (Robert Redford-Dustin Hoffman, na excelente versão cinematográfica de Alan J. Pakula) mas também Ben Bradlee, o director que confiou no talento e na sagacidade dos seus repórteres, e Katharine Graham, a proprietária de jornal que soube mostrar-se imune a todas as ameaças. Incluindo as da Casa Branca, reforçadas pela grosseria de Richard Nixon.

Woodward e Bernstein, os jornalistas que revelaram aos americanos e ao mundo todas as implicações do caso Watergate, tornaram-se celebridades. Fala-se muito menos em Bradlee, que aceitou dirigir o Washington Post quando este era uma espécie de parente pobre na alta roda da imprensa norte-americana, sempre à sombra do mítico New York Times.

A verdade é que nenhum dos artigos de Woodward e Bernstein (a dupla que ele baptizou de “Woodstein”, nos longos serões de trabalho no jornal durante a revelação do escândalo que conduziria à demissão do presidente Nixon) teria sido possível sem a firmeza de Bradlee, que lhes deu destaque em sucessivas manchetes. Contra pressões de todo o tipo.

 

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Nas suas memórias, Bradlee relata-nos a odisseia do relançamento do Post, que à época era apenas o terceiro jornal mais vendido na capital americana. Ele arejou o grafismo, destacou a imagem, criou um suplemento chamado Style, que dava prioridade ao lazer, valorizou o espaço de opinião, criou um provedor de leitores (em 1969!) e deu novo impulso à reportagem. Bastando-lhe adoptar como lema a velha lição que recebera da professora da instrução primária: «O melhor possível hoje, melhor ainda amanhã.»

A qualidade foi sempre um objectivo a atingir. «A detecção de talentos nunca cessa num periódico», defendia Bradlee, «decidido a que cada jornalista fosse o melhor da cidade no seu ramo de actividade».

Este foi um dos segredos do sucesso do jornal, a par das normas de exigência postas em vigor. O Post deixou de usar a ambígua expressão «segundo as nossas fontes», instituiu a norma da verificação dos factos junto de duas fontes autónomas e recomendou aos seus repórteres que nunca esquecessem o sábio preceito de Camus, que também foi jornalista: «Não existe a verdade. Só existem verdades.»

 

Neste caso, a verdade jornalística contrariou em toda a linha a suposta verdade oficial. A partir de um assalto ao edifício Watergate, faz hoje 50 anos. Ali funcionava a sede nacional do candidato democrata George McGovern, rival nas urnas do republicano Nixon, que já formalizara a recandidatura à Casa Branca.

Parecia ser mero caso de polícia, com a detenção de cinco supostos larápios de meia-tigela, a tal ponto que a cobertura jornalística foi confiada a Woodward, jovem repórter que costumava frequentar esquadras à cata de novidades. Mas transformou-se num escândalo político em cascata que foi cercando o presidente. Em 17 de Novembro de 1973, já muito acossado, Nixon fez uma alocução televisiva em que declarou categoricamente: «I'm not a crook» [«Não sou vigarista»] Ninguém tomou esta declaração pelo seu valor facial, mas pelo seu oposto.

Nove meses depois, o inquilino da Casa Branca - o mais poderoso político do planeta - viu-se forçado a resignar ao cargo. Nunca antes tinha acontecido algo semelhante nos EUA, nunca aconteceu depois.

 

Dir-me-ão uma vez, dir-me-ão cem vezes: o caso Watergate é irrepetível. Mas quanto mais único, quanto mais insólito, quanto mais raro, mais me serve de referência. E continuará a ser o maior dos motivos por que um dia, já há muito tempo, decidi ser jornalista.

Ingenuidade, dirão talvez. Felizmente podemos ser ingénuos em qualquer idade.

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Dustin Hoffman (Bernstein) e Robert Redford (Woodward) no filme Os Homens do Presidente

Hoje sonhei com castanhas

Maria Dulce Fernandes, 04.06.22

"A infância é como a água que desce da bica, e nunca mais sobe."

Camilo Castelo Branco

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Arde-me nos olhos o aroma inconfundível das castanhas assadas no carvão. Tusso com o fumo e salivo ao mesmo tempo por gulosa antecipação. Sou louquinha por castanhas.

 
O meu Avô, trajando um robe de chambre verde ervilha, sentava-se à mesa da cozinha com uma imensa malga cheia de castanhas fumegantes que tinha acabado de assar naquela ânfora de barro com buracos no fundo. Despia-as cuidadosamente, fazendo estalar a casca enfarruscada sob a suave pressão dos dedos, abria-as com desvelo pelo golpe transversal e colocava um pedaço loiro de manteiga, daquela quarta que a avó tinha trazido da leitaria embrulhada num papel vegetal. Repartíamos. "Toma", dizia. "Prova assim, é muito bom". E era, era delicioso e fantástico aparar na ponta da língua gotas divinais de manteiga derretida e apressar-me para que o calor da castanha a não dissolvesse por completo.
 
Depois chegava a Bisavó Júlia a arfar de cansaço, com um enorme pão escuro dentro dum saco de pano que tinha um bordado a ponto de cruz e que ainda cheirava a quente. Cortava uma fatia que barrava com o doce de tomate que a Avó Adelaide tinha naquele armário escuro, o da enorme porta de madeira amarela, sempre cheio de frascos com letras, e então era um toca a lambuzar.
 
A Mãe era mestre em castanhas cozidas, com sal, açúcar e muita erva doce e costumava pô-las já sem casca na minha cestinha da merenda, dento de um saquinho de guardanapo com uma flor e a letra D bordadas a azul e amarelo. Adorava sentar-me num banquinho debaixo da pérgula grande no Jardim Botânico da Ajuda, com o fraco sol outonal a brincar-me com as pernas, a merendar o pãozinho com marmelada e as castanhas da minha Mãe. A água gelada no repuxo do bebedouro completava aquele festim sempre tão reconfortante.
 
Perdeu-se a mística dos magustos de S. Martinho onde o Pai era presença emblemática, sempre com a sua acompanhante preferida. Perdeu-se mesmo a tradição das castanhas no dia 11 de Novembro, acompanhadas pela prova do vinho novo, ou da água-pé, ou até mesmo da jeropiga na qual que me deixavam pôr o dedo gordo e provar o ardor.
 
Provavelmente a minha cada vez mais próxima mudança de estado - sim, porque ser avó é seguramente o supremo estado de graça na vida de uma mulher resolvida - faz-me recuar no tempo e regressar aos dias mais felizes da minha vida. Recordo-os com muita frequência, muita saudade, nostalgia e alguma tristeza. Pelos que foram, pelo que eu fui, pelo que se perdeu.
 
Passei metade da minha vida num correr constante onde o tempo nunca me deixou tempo para parar.
Cadenciarei o passo. Impõe-se um abrandamento. Não posso deixar o tempo continuar  a correr  veloz como um pé de vento tornado furacão, que me desenraíze de vez. Quero poder mostrar à Neta que as coisas que são como são, nem sempre foram assim. Já foram diferentes, e boas, e felizes.
 
Acredito que a minha neta irá gostar de viajar na máquina do tempo das minhas memórias.
 
"E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós."
Alvaro de Campos

Sete de uma vez!

Maria Dulce Fernandes, 18.05.22

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A noite exalava calor, maresia e compostura orgânica, dos gatos que a Madame Louca rebentava contra a parede da quinta, mal farejava uma nova ninhada, indiferente a insultos e ameças de quem a achava uma pessoa odiosa e desumana. 

Meio vestida, meio despida, vagueava eu pela casa quente sozinha, indolente e entediada. Até os livros emanavam um calor salobro e enjoativo. 

Os meus pais tinham ido ver uma revista ao Maria Vitória. Os rapazes tinham saído, um com os amigos, o outro para jogar à bola na rua com a miudagem do costume. Ouviam-se da varanda "Chuta! Passa! Coxo! Mãos de Manteiga! Corre! Golo!"

Recostei-me no abrasador sofá de pele e deixei-me levar pela lassidão que o tédio arrasta. Dormitava.

Acordei com o grito rouco da campainha da porta. Corri ao intercomunicador e uma voz infantil e assustada gritava: "Vem rápido que o filho da Jorgete vai matar o teu irmão." O quê? Vem ajudá-lo depressa, que ele está escondido debaixo da furgoneta do pitrolino."

Enfiei um vestido ou um casaco e uns chinelos, desço a escada a correr e saio do prédio como se estivesse com a vida em  atraso.  

A rua estava inteirinha à janela. À volta da furgoneta do pitrolino estavam duas ou três velhotas e o Carlos Calmeirão com uma marreta numa das manápulas e uma bola debaixo do braço. "Malandro, partiste-me duas pernadas ao limoeiro! Levas uma sova. Não passa de hoje!"

"Deixa os miúdos, Carlos, tem juízo, são crianças!", gritavam as vizinhas. "Esta já não a vêem mais", dizia o  homenzarrão ufano, mostrando a bola nova que o miúdo ganhara de presente de Natal. "Sai daí, malandro! Vais apanhar nem que eu fique aqui  a noite toda."

Tremiam-me as pernas como se a temperatura, por magia, se tivesse tornado glacial. Respirei fundo. Ouvi algo estranho, um som abafado meio gutural, como se saído das entranhas da terra. "Posso saber o que se passa aqui?" Falei, acho que fui eu quem falou aquilo, porque o Carlos Calmeirão olhou para mim irritado e disse: "Este patife hoje vai apanhar. Vá para casa, isto não é coisa para as mulheres se meterem."

Não sei bem o que me deu. Ainda hoje estou para saber como consegui empurrar o Calmeirão e dizer ao meu irmão para sair debaixo da furgoneta. "Ele bate-me, mana!" "Não bate, que eu não deixo." "Ai não? Vamos lá ver se não lhe bato." "Então toque-lhe só que eu quero ver. Vá, toque-lhe lá, que vai ver o que lhe acontece."

O miúdo saiu do esconderijo a tremer e ficou atrás de mim. "Dê-me a bola se faz favor. Não é sua!"

Já com a bola na mão agarrei o meu irmão por um braço e levei-o para casa. Tremia tanto, mas tanto que nem sei como subi as escadas sem me ir abaixo das pernas, mas creio, ou tenho mesmo a certeza, que fiz o último patamar a gatinhar. Se o Carlos Calmeirão lhe batesse eu fazia o quê? Nada! O que podia eu contra um tipo que fazia dois de mim? Não sei como, nunca saberei, mas funcionou!

A verdade é que durante todo o tempo que morei com os meus pais até casar, o Carlos Calmeirão baixava os olhos sempre que passava por mim.

Lembrei-me deste episódio das minhas recordações mais delirantes quando lia à minha neta a história do Alfaiate Valente: "Matei sete duma vez!" Senti-me Indómita, indomável, inevitável... mesmo que se tivesse tratado apenas de moscas como as que me zurziam na garganta, me derretiam as pernas e me empurravam na direcção daquele adamastor.