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Delito de Opinião

Ceci n'est pas un post (6)

Ana Vidal, 21.10.10

Nas tuas mãos

 

Reinventa-me tu. Dou-te pincéis e tintas de todas as cores, uma tela em branco e, mais do que tudo isso, a imensa liberdade de me recriares à tua medida. Redesenha-me: dá-me olhos menos inquietos, mãos menos aventureiras, braços que embalem tudo menos sonhos. Dá-me pernas imóveis, que não acabem em pés andarilhos. Pinta-me o corpo de um tom de mármore belo e pálido como o das estátuas antigas, em que todo o ardor se transformou já em História. Não te detenhas nos cabelos, deixa-os inacabados. Podem ganhar vida própria e enlear-te como algas, e tu sabes como é perigosa a maresia. Evita a curva do pescoço, e foge dos pormenores no peito e no ventre. Passa a correr pela boca, aí todo o cuidado é pouco. Um último aviso: não me pintes um coração nem um cérebro. Porque, se o fizeres, eu volto a construir-me como era.

 

(Imagem - René Magritte, "Tentando o Impossível")

Ceci n'est pas un post (5)

Ana Vidal, 14.10.10

 

Metades

 

Sou como tu, Sophia: metade de mim é maresia. E até na outra, a que devia contrapôr ao sal e à espuma a terra firme, há rastos de algas e um canto de sereia. Há pedras roladas por infindáveis marés. Fazem sentir-me, em vez de terra, areia. Essa metade minha é ao revés. Metade de mim voa, é ventania. A outra, só ecoa. Procura a luz, talvez, essa metade inquieta. A outra... vegeta. Mas é a mais rasteira, essa metade que me prende ao chão, a que me faz matéria verdadeira. A que me liga ao mundo, a que tem sombra e fundo. A outra não. A outra, só me assombra. Sou como tu, Sophia: metade de mim é pura fantasia. A outra? A outra é alquimia.

 

(Imagem: René Magritte, La Magie Noire)

Ceci n'est pas un post (3)

Ana Vidal, 30.09.10

 

Matéria

 

E no entanto, meu amigo, não é de evidências, mas de intangíveis, que se faz essa fugaz matéria a que chamamos amor. Faz-se de uma substância estranha, mutante e imprevisível, apenas materializada na surpresa que de repente nos devolve o espelho: um corpo que desconhecíamos, um olhar perplexo. Faz-se de um súbito sobressalto que nos invade as entranhas, um imperioso capricho da pele, um inapelável desassossego. Faz-se de um gesto irreprimível, todo languidez e impotência. Faz-se da essência dos rios, correndo em curso livre até se precipitarem num mar que nunca viram, mas sabem ser o seu único destino. E faz-se da placidez dos lagos. Faz-se da beleza terrífica de um incêndio, da voragem de um tornado, do mortífero poder de um raio. Faz-se de clarividência e de cegueira, de lucidez e de loucura. Faz-se de júbilo e de angústia. Faz-se de pudor e de lascívia. Faz-se do mais magnífico festim e da mais insuportável solidão. Faz-se de glória e de miséria, de riso e de pranto, de cobardia e de audácia, de música e de silêncio, de luz e de sombra. Faz-se de guerra e de paz. De vida e de morte. De tudo. De nada.

 

(Imagem: René Magritte - Liaison Dangereuse)

Ceci n'est pas un post (2)

Ana Vidal, 23.09.10

 

Ponto de fuga

 

Um dia destes ganho coragem e salto a janela. Passo uma perna, sem pressas, sobre o peitoril familiar; depois a outra, talvez ainda mais devagar, avaliando o risco e todas as consequências futuras dessa loucura, uma por uma. Ou então faço tudo de repente, com a urgência dos cobardes e dos desistentes, que se precipitam no vazio porque temem arrepender-se. E porque preferem entregar-se à sorte, pensando que ao menos terão a fatalidade como álibi e o destino como culpado a quem apontar o dedo. Um dia destes aproveito uma qualquer pedrada certeira para acabar com as dúvidas e estilhaçar utopias, feitas dos pálios e das fanfarras que sustentaram no seu pedestal uma ilusão de liberdade. Um dia destes atiro para uma mala todas as lembranças, todas as memórias, todos os sonhos vividos, desejados ou apenas temidos, e levo tudo comigo para a derradeira aventura. Não faltarão cheiros, cores, sabores intensos, sol e chuva, terra e mar, muito mar. Tudo isso irá comigo, porque tudo isso se me colou à pele com os anos e já faz parte de mim. Um dia destes reaprendo a dizer lareira, mesa, pão, vinho, consoada, linho, lã, aconchego. Está decidido. Um dia destes salto a janela e volto para casa.

 

(Imagem -René Magritte)

Ceci n'est pas un post (1)

Ana Vidal, 21.09.10

 

Retomo aqui, no Delito de Opinião, uma série dedicada a um dos meus pintores preferidos - René Magritte - que em tempos iniciei noutro blogue. Irreverência, ironia, subtileza, clarividência, ousadia, inteligência, talento. Todos estes adjectivos (e muitos outros mais) se aplicam a esta mente privilegiada, que interpretou a realidade que a rodeava de uma forma única. Não tenho, naturalmente, nem uma vaga ilusão de estar à altura dos quadros que inspiraram os textos. Leiam-nos como uma homenagem, nada mais do que isso.