Dia Mundial do Livro
"Quanto a mim, apenas sei que não sei nada. E quando quero saber, procuro nos livros, aos quais a memória nunca falha."
Arturo Pérez-Reverte, O Clube Dumas
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"Quanto a mim, apenas sei que não sei nada. E quando quero saber, procuro nos livros, aos quais a memória nunca falha."
Arturo Pérez-Reverte, O Clube Dumas
Em 1887, Eça de Queiroz concorreu com A Relíquia ao Prémio D. Luís, instituído por este monarca e atribuído pela Academia Real das Ciências de Lisboa. O júri, presidido por Manuel Pinheiro Chagas (oficial do Exército e historiador menor, um homem que havia sido ministro da Marinha e detestava Eça) excluiu aquele romance, conferindo o galardão à peça teatral O Duque de Viseu, assinada por Henrique Lopes de Mendonça, oficial da Armada, contista e dramaturgo, autor da letra do actual hino nacional.
Cento e trinta e quatro anos depois, A Relíquia é um dos títulos fundamentais da ficção portuguesa do século XIX enquanto o drama de Lopes de Mendonça jaz sepultado na poeira de velhas bibliotecas.
Em 1934, Fernando Pessoa concorreu com Mensagem à primeira edição dos prémios literários promovidos pelo Secretariado de Propaganda Nacional. O júri, presidido por António Ferro, elegeu A Romaria, de Vasco Reis (pseudónimo do padre franciscano Manuel Reis Ventura), como melhor livro de poesia do ano, atribuindo-lhe o Prémio Antero de Quental, enquanto relegava a obra de Pessoa para uma "segunda categoria" com valor pecuniário cinco vezes inferior. Ferro, que presidia ao júri por ser director do SPN, não votou: só lhe caberia escolha num eventual caso de empate. Três dos quatro restantes membros - Alberto Osório de Castro, Acácio de Paiva e Mário Beirão - optaram por Reis (pelo menos dois deles detestavam Pessoa e não guardavam segredo disso). A única mulher com voto, Teresa Leitão de Barros, ficou isolada ao enaltecer a «beleza literária» dos versos pessoanos.
Oitenta e sete anos depois, a Mensagem é um dos títulos fundamentais da poesia portuguesa do século XX enquanto a lírica de Reis desapareceu do mapa e hoje só é lembrada por este triste exemplo de miopia de um júri literário.
Lembro-me sempre destes dois casos cada vez que oiço falar na atribuição de prémios. Tantas vezes os juízos contemporâneos acabam por distinguir e enaltecer a incompetência. Muitas vezes estas escolhas são condicionadas por inaceitáveis preconceitos estéticos ou mesquinhas animosidades pessoais. Assim os Mendonças e os Reis são levados em ombros enquanto os talentosos ficam à margem, como autores sem préstimo nem valia.
É verdade que o tempo acaba por repor a escala de valores, conduzindo cada qual ao lugar que merece. Mas não é menos certo que isso costuma suceder tarde de mais. Eça e Pessoa - figuras incontestáveis do património cultural português, com leitores em todo o mundo - nunca recuperaram por completo destas humilhações que lhes foram infligidas pelos referidos grupúsculos de pequenos e médios literatos. O segundo nem sequer viveria um ano mais: o resto da sua obra acabaria por ser póstuma, aliás à semelhança do que ocorreu com Eça, exceptuando Os Maias, já concluído em 1887 e lançado logo no ano seguinte.
Serão casos isolados? Nem por isso. Pelo contrário, ambos ilustram um velho mal português: acontece asneira quando o critério de julgamento e o poder de decisão são confiados aos medíocres.
O que, para nossa desgraça, acontece quase sempre. Não só na literatura, mas em tudo o resto.
Amiga envia-me ligação para programa radiofónico: o vice-presidente da Associação de Professores de Português e um antigo secretário de Estado da Cultura, antigo director de jornal e reconhecido romancista dialogam sobre o "racismo no "Os Maias" de Eça de Queirós", contestando as recentes acusações de uma doutoranda estrangeira pertencente à universidade norte-americana classificada em 217º lugar no rol universitário daquele país. Esta gente tem a cabeça onde?
Amigo-FB envia-me ligação para um artigo de investigadora anglo-portuguesa, denunciando o silêncio português sobre a história nacional e a manutenção daquilo que considera ser a visão imperialista emanada do fascismo - implicitando a inexistência de historiografia posterior e da sua difusão pública e pedagógica durante os últimos 30-40 anos, e denunciando mesmo que há um centro comercial "Vasco da Gama" - e clamando sobre a necessidade de dar visibilidade ao comércio de escravos. O texto é publicado num canal público do Catar. Esta gente não tem pingo de vergonha.
(Em cima, retrato de D. Afonso Henriques - figura a ser "desconstruída" e "intervencionada" - em quadro de Eduardo Malta - pintor a ser vituperado -, feito para a Exposição de 1940 - acontecimento a ser denunciado)
Que literatura pode mudar a nossa vida? É matéria que dá pano para mangas: vivendo nós na civilização do Livro, nem poderia ser de outra forma. A simples frase “Não matarás”, impressa na Bíblia, mudou milhões de vidas.
Mas atenção: os livros que foram fundamentais para a nossa transformação interior raras vezes coincidem com aqueles que o critério académico – incluindo o da Academia de Estocolmo – consagra como decisivos. Conheço, por exemplo, muita gente que decidiu cursar Direito por influência do bom desempenho de Perry Mason como advogado de ficção – e ninguém incluirá decerto Erle Stanley Gardner entre os maiores escritores do século XX.
Gostar e admirar raras vezes coincidem.
Sei bem do que falo: gosto de toda a obra de Ernest Hemingway, incluindo vários títulos que estou longe de admirar. Gosto de tudo quanto me transmite George Orwell, ainda que possa estar longe de admirar a sua escrita. Gosto de todo o Graham Greene, talvez o autor que mais me ensinou como se deve escrever, embora não partilhe o essencial das suas ideias.
Basta a menção dos apelidos Kafka, Borges ou Malraux para me fazer reviver o prazer da leitura – e no entanto nenhum destes escritores ganhou o Nobel, o que não altera um milímetro a minha devoção de leitor por eles.
Já o consagradíssimo Thomas Mann, pelo contrário, me faz bocejar de tédio perante o pedantismo da sua escrita, a que nunca aderi, por mais que entenda a importância que o cânone oficial lhe atribui como romancista de “ideias”. Vale a pena lê-lo por “dever” intelectual? Certamente que sim. Retiraremos daí algum prazer? Essa é uma questão muito diferente.
São insondáveis os caminhos que nos transportam nas mais diversas direcções literárias. No seu leito de morte, Lenine pedia que lhe lessem contos de Jack London: o grande autor americano teria mudado mais a vida do fundador da União Soviética do que alguém fora capaz de imaginar.
Tudo seria bem diferente se a literatura nada tivesse a ver com a vida. Mas felizmente que tem. E nenhum de nós gostaria que não tivesse.
Há em várias cidades um punhado de estátuas de Hemingway. Deixo um excerto do autobiográfico "As Verdes Colinas de África", escrito em 1935. Talvez seja um exemplo apropriado para uma era em que as sensibilidades pretéritas andam a ser avaliadas. A preto e branco ...
"M'Cola foi, aos saltos, pela montanha abaixo e, através do riacho, mesmo no lado oposto ao nosso, surgiu um rinoceronte a correr, num trote ligeiro, pela parte de cima da margem. Quando o observávamos, apressou o passou e correu, em trote rápido, perpendicularmente à beira da estrada. Era de um vermelho sujo, o chifre muito visível, e não havia nada de pesado nos seus movimentos, rápidos e deliberados. Ao vê-lo, senti-me excitado.
- Vai atravessar o regato - observou Pop - Está ao alcance do tiro.
M'Cola pôs-me a Springfield na mão. Abri-a para me certificar de que estava carregada. O rinoceronte estava fora da minha vista, mas distinguia-se o agitar do capim alto.
- A que distância julga que pode estar?
- A uns quatrocentos metros.
- Hei-de apanhar esse malandro.
Conservei-me alerta, procurando deliberadamente acalmar-me, fazendo cessar a excitação como quem fecha uma válvula, entrando naquele estado impessoal que se atinge ao fazer pontaria.
O animal surgiu no regato baixo e pedregoso. Naquele momento apenas pensava em que era perfeitamente possível alvejá-lo, mas que para isso era necessário alcançá-lo e ultrapassá-lo. Alcancei-o, ultrapassei-o e disparei. Ouvi o ruído da bala e, como animal seguia a trote, esta pareceu-me ter explodido mais à frente. Com um resfolegar sibilante, caiu prostrado, esparrinhando água e roncando. Disparei de novo, levantando uma coluna de água atrás dele. Como tentasse escapar-se para a relva, voltei a disparar. (...)
Droopy correu. Carreguei a espingarda e corri atrás dele. Metade dos homens do acampamento estavam espalhados pelas colinas (...). O rinoceronte tinha-se dirigido precisamente para debaixo do lugar onde eles se encontravam e subia o vale em direcção ao sítio onde se perdia na floresta. (...)
O rinoceronte estava no capim alto, atrás de uma qualquer moita. Enquanto avançávamos, ouvimos um roncar surdo, quase um gemido. O ruído voltou a ouvir-se, terminando desta vez com um suspiro sufocado pelo sangue. Droopy ria. (...) Sabíamos onde estava o animal e, ao aproximarmo-nos, lentamente, abrindo passagem pelo mato alto, descobrimo-lo. Estava morto, caído sobre um dos flancos. (...)
Quando chegou o grupo todo, voltámos o rinoceronte de forma a ficar como que numa posição de ajoelhado e cortámos o capim em volta para tirarmos fotografias. (....) ali estava com a sua comprida carcaça, pesados flancos, de aspecto pré-histórico, a pele como borracha vulcanizada e vagamente transparente, com a cicatriz de uma ferida causada por uma cornada e depois picada pelos pássaros, a cauda grossa, redonda e aguçada, carraças de mil patas formigando-lhe no corpo, as orelhas franjadas de pêlos, olhinhos de porco, com musgo na base do chifre, que lhe saía da parte de frente do focinho. (...) Era um animal dos diabos! (...)
- Estou louco de satisfação - confessei."
(Ernest Hemingway, As Verdes Colinas de África, Livros do Brasil, 77-81. Tradução de Guilherme de Castilho. Edição original em inglês de 1935)
Leio que neste cerimonial contestatário também a estátua de Voltaire foi atacada, devido a que o filósofo investiu, in illo tempore, na Companhia das Índias francesa e até aceitou que baptizassem um navio com o seu nome. Encolhi os ombros mas, de facto, fiquei a remoer o assunto. E noto-o pois no dia seguinte a ter sabido do acontecido de súbito lembrei-me que Lowry escreveu sobre um navio chamado Diderot. "Onde?", resmunguei ... Não me pareceu que fosse no Vulcão, e ainda por cima não o tenho comigo, pois levei-o para o confinamento para releitura - houve um tempo, não tão benfazejo assim, em que ele me foi Bíblia, felizmente amadureci e nisso tornou-se-me um Livro de São Cipriano - e por lá ficou neste meu interregno lisboeta.
Vasculhei as estantes e encontro-a, a tal navegação no Diderot "foi" naquele naco Através do Canal do Panamá (tradução da excelsa Ana Hatherly). E é extraordinário o início, logo na terceira página um monumento de profecia, tudo resumindo de tudo isto, tudo demonstrando sobre toda esta gente:
" ... as fúrias em mercês. A sensação inenarrável inconcebivelmente desolada de não ter o direito de estar onde se está; as vagas da inesgotável angústia perseguidas pelo insaciável albatroz do eu. Há um albatroz, de facto."
Moles perseguidas pelo insaciável albatroz do ... nós. Do seu "nós", apenas isso, que julgam injustificado. Acima de tudo cada um incapaz de encarar o seu próprio albatroz, assim querendo exorcizá-lo nesta pantomina. Histriónica, que todos julgam poder sossegar-lhes esta desolação. Pobre crendice.
Muitos resmungam ou indignam-se com a campanha contra as estátuas e monumentos, devido à sua mácula colonial ou pré-colonial. Espantam-se também com a censura de uma empresa televisiva ao "E Tudo o Vento Levou". Estão enganados. Todas as gerações que foram actuantes fizeram uma avaliação do seu legado cultural e seleccionaram aquilo que deve ser preservado e retransmitido às novas gerações, construindo mundivisões consideradas adequadas. Chama-se a isso educação.
Entretanto, reli há dias este livrinho, afamado, do poeta francês Charles Baudelaire, um oitocentista ainda algo lembrado. O que ele diz das mulheres é totalmente inaceitável, propagandeando a sua inferioridade, naturalizando-as. Exemplo de discriminação negativa, pura e simplesmente.
Urge expurgá-lo, ao poeta, dessa educação. Cercear o acesso à sua obra. Reservá-la, porventura, apenas aos estudiosos dos processos opressivos.
E há, decerto, mais exemplos. Deitemos "mãos às obras".
Vejo na Netflix uma série islandesa de que estou a gostar muito: Os Crimes de Valhalla. Numa cena do terceiro episódio, um investigador da polícia entra na casa deserta de uma mulher de classe média que foi assassinada. Uma das primeiras coisas que vê - e nós com ele - é uma estante cheia de livros ocupando quase por inteiro uma das paredes da sala.
Para quem esteja atento, os cenários aparentemente irrelevantes nas séries de qualidade podem dizer-nos muito sobre as características de um país. Esta diz-nos, desde logo, que existem hábitos de leitura na Islândia muito superiores aos nossos. Em que série, filme ou telenovela veríamos "adereço" semelhante numa casa portuguesa de classe média? Façam o teste e verão. As estatísticas confirmam o que a experiência empírica nos sugere: mais de dois terços dos nossos compatriotas passa um ano inteiro sem ler um livro: 67%. Lideramos o triste pódio europeu nesta matéria, superando Grécia (54%) e Espanha (53%). Em proporção inversa ao que ocorre na Suécia (28%), Finlândia (35%) ou Reino Unido (37%).
Talvez para marcar o contraste com esta idiossincrasia nacional, por estes dias não faltam políticos, comentadores e simples bitaiteiros que persistem em prestar depoimentos televisivos recolhidos em casa, escolhendo lombadas de livros a servir-lhes de moldura. São tantos os casos que não pode tratar-se de mera coincidência: entre nós, o livro continua a servir de elemento acrescido de autoridade natural a quem produz opinião, o que não deixa de ser irónico numa sociedade onde a norma é não ler.
Não vou presumir sobre os genuínos hábitos de leitura das personalidades que, devido à pandemia, nos vão desvendando ínfimos recantos dos seus lares. Mas aproveito para deixar a sugestão aos meus amigos editores - Francisco José Viegas, Guilherme Valente, Hugo Xavier, Inês Pedrosa, Manuel S. Fonseca e Rui Couceiro, entre outros - para transformarem estas imagens que começam a tornar-se familiares entre nós numa vasta campanha publicitária de promoção da leitura. Com a chancela institucional do Ministério da Cultura e parte da choruda verba que não chegou a ser gasta no abortado TV Fest. Faz sentido, numa altura em que o sector vai de mal a pior: a venda de livros caiu 83%, com milhares de pessoas em lay-off ou sem trabalho.
Deixo aqui algumas sugestões de figuras que poderiam figurar nessa campanha de promoção do livro. Com certeza os visados aprovariam.
Aos meus amigos que por estes dias se tornam coniventes com a pirataria, partilhando livros inteiros, jornais inteiros e revistas inteiras por via digital ou acedendo "grátis" a filmes e séries, como já fazem com a música, chamo a atenção: os profissionais da escrita, do cinema e da televisão vivem do seu trabalho. No dia em que ninguém pagar por um livro, um jornal, uma revista, um filme ou uma série deixaremos de ter acesso a estes bens de serviço público e utilidade social. Pelo mais simples e lamentável dos motivos: eles deixarão de existir.
Ao fazermos um banalíssimo clique num dispositivo electrónico, distribuindo por outros aquilo que não pagámos, estamos a dar mais uma machadada em profissões que em larga medida já caminham sobre o fio da navalha, condenando-as à extinção a curto prazo.
Um mundo sem cultura, nem informação nem entretenimento de qualidade será um mundo mais árido, mais pobre, mais primitivo, mais inóspito. Será um mundo muito menos livre.
Um mundo em que nenhum de nós desejaria viver.
E não é um cenário de ficção: pode mesmo acontecer. Só depende de nós.
Permito-me recomendar a leitura deste "Diário da Guerra aos Porcos" de Bioy Casares, ainda que o meu livro esteja lá além-Tejo, assim não podendo ilustrar este meu atrevimento com citações ou com uma douta e fresca recensão.
A história é simples: em Buenos Aires os jovens caçam e exterminam os velhos, acelerando o "curso natural da vida", numa ideologia sanitária, por assim dizer. Os velhos movem-se, resistindo, na calada da noite.
E agora algum mundo virou esse Buenos Aires. Mas não temos noite. A incúria do comunismo chinês foi estufa disto. Pois deste vírus. E há por aí colaboracionistas, teclistas lestos a criticar o "ocidente", e seus líderes, e a louvar a "disciplina" chinesa, os feitos que têm tido. É pena que o "estado de emergência" não nos permita rapar o cabelo das mulheres que papagueiam essas loas. E a internar os homens que andam nos mesmos propósitos. Por tempo indeterminado ...
Mas mais próximos daqui temos muitos destes "eugénios". Trump está a assumi-lo, preferindo resistir numa guerra económica, recusando trancar a produção e ficar à mercê da economia chinesa, esta já quase pós-covidiana. Porventura o número de baixas americanas será terrível. Mas ele preferirá abater os velhos a ceder espaço (económico). Bolsonaro é ainda mais histriónico nisso, convoca manifestações, persegue quem procura o confinamento, ele-próprio convive. Nele será muito mais estupidez do que estratégia. É o drama de um país estúpido. E Boris meteu-se nisso, também, mas teve que recuar, provavelmente tarde demais para evitar uma hecatombe. Idiossincrasia "brexitiana", fazer diferente dos pérfidos e fracos "continentais". Burro. Convencido. Nada de novo, nesse contexto de brexiteers ... Nos últimos anos um segmento locutor luso andou entusiasmado com estes alarves, até se autodenominaram "nova direita" ou tralha similar. Nesse frenesim pu(lu)lam alguns doutores, até pelo FB/twitter/blogs. Alguns travestidos de liberais, outros de soberanistas, vão doutorando. Mas agora estarão confinados em casa, a teclarem no whatsapp ...
Próximo livro a recomendar? Um de Boris Vian, "Hei-de Cuspir-vos na Campa" - se me safar, cinquentão fumador que vou.
O Dia Internacional da Mulher serviu de pretexto para, durante o passado dia 8, em alguns grupos mais geek do Twitter se partilharem personagens femininas preferidas de filmes, séries, bandas desenhadas e videojogos. Por imagens, claro - o Twitter convida a muita coisa, mas a prosa não é uma delas. Felizmente, os blogues ainda cá estão, e são tão amigos da imagem como da palavra, pelo que pensei valer a pena pegar nesta ideia e desenvolvê-la um pouco para além dos 140 caracteres. O objectivo era ter escrito no Domingo um único texto que passasse por todos estes formatos, e ainda referisse alguns livros, mas o projecto logo se tornou demasiado longo para um artigo num blogue ("the tale grew in the telling", passe o anglicismo). Assim, um artigo dará lugar a vários, ao longo dos próximos dias, sobre autoras e personagens que me marcaram ao longo dos anos. E começamos hoje pelos livros.
Já aqui falei do livro que me serviu de introdução à ficção científica literária - The Snow Queen, de Joan D. Vinge (não costumo desperdiçar oportunidades para escrever sobre este livro). À data da sua publicação em 1980, esta space opera inspirada no conto tradicional de Hans Christian Andersen foi descrita como um Star Wars feminista, e se é certo que reconheço à descrição algum mérito, nem por isso deixo de a considerar demasiado redutora: a narrativa de Vinge passa-se de facto numa galáxia distante, mas é infinitamente mais complexa e ambígua do que qualquer filme saído dos conceitos iniciais de George Lucas. Certo é que a inocente (mas determinada) Moon e a cruel (mas visionária) rainha Arienrhod ficaram sempre comigo; volta e meia lá regresso àquelas páginas, sem nunca deixar de me maravilhar.
The Snow Queen abriu-me as portas de todo um género que, sendo predominamente masculino, foi tendo as suas grande autoras. Ursula K. Le Guin será o nome incontornável, claro - quem nunca leu The Left Hand of Darkness (1969) está a perder um dos grandes livros do século XX, tanto pela desconstrução e pela problematização das identidades de género como pela profunda humanidade das suas personagens. E a trilogia Earthsea (The Wizard of Earthsea, The Tombs of Atuan e The Farthest Shore, de 1968, 1971 e 1972 respectivamente) figura com justiça entre as obras maiores da fantasia literária, tanto pela riqueza do mundo secundário que criou como pela capacidade de dizer tanto, e tão bem, em tão pouco espaço. Ao reler, há algumas semanas, The Wizard of Earthsea (na lindíssima colectânea ilustrada por Charles Vess), dei por mim a pensar que, para qualquer autor contemporâneo de fantasia, a trama que Le Guin desenvolve com elegância nos cinco primeiros capítulos, em poucas dezenas de páginas, seria suficiente para pelo menos um calhamaço de seiscentas páginas e longas descrições inúteis. Saber escrever também é isto.
Ursula K. Le Guin, fotografia de Benjamin Brink/The Oregonian via AP; fonte.
Outro grande nome feminino da ficção científica é o de Alice Sheldon, ou James Tiptree Jr. - o pseudónimo masculino deu azo a muita especulação e a alguns episódios caricatos nos anos 70. Contista notável, Sheldon/Tiptree encantou-me com a sua prosa clara e com a ambiguidade, a sofisticação e a imaginação dos seus contos. Textos como The Girl Who Was Plugged In (1973), The Women Men Don't See (1973), Love is the Plan the Plan is Death (1973), Houston, Houston, Do You Read? (1976), ou The Screwfly Solution (1977) serão leitura obrigatória tanto para apreciadores de contos em geral como para fãs de ficção científica em particular. As polémicas recentes envolvendo o prémio literário atribuído em seu nome e as circunstâncias da sua morte em 1987 em nada diminuem o seu enorme legado (e já agora, para quem quiser saber um pouco mais sobre Alice Sheldon/James Tiptree Jr., aqui deixo um artigo muito interessante que descobri enquanto fazia algumas pesquisas).
Alice Sheldon/James Tiptree Jr.; fotografia de autor desconhecido. Fonte.
Das minhas leituras dos últimos anos destacaria ainda três autoras notáveis. A primeira, Ann Leckie, cujo romance de estreia, Ancillary Justice (2013) deu um contributo notável para a revitalização da space opera literária partindo de um ponto de vista marcadamente feminista (também já cá falei dele). A segunda, Emily St. John Mandel, que não sendo uma autora de ficção científica explorou alguns temas clássicos do género no notável Station Eleven (2014), um romance pós-apocalíptico cuja narrativa explora as vidas de algumas personagens antes e depois de uma pandemia de gripe ter destruído a civilização tal como a conhecemos (uma leitura curiosa para estes dias). E, por fim, Nnedi Okorafor, norte-americana de origem nigeriana que tem pegado em décadas de convenções narrativas para lhes dar um novo fôlego de inspiração africana. Nas minhas leituras encontrei poucas alienígenas tão intrigantes com a Ayodele de Lagoon (2014), e a odisseia da jovem Onyesonwu em Who Fears Death (2010) é absolutamente espantosa.
Os próximos textos incidirão mais sobre personagens do que sobre autoras, pelo que talvez valha a pena concluir esta breve viagem literária com uma personagem: Esmerelda (Esme) "Granny" Weatherwax, protagonista de um dos arcos narrativos da longa série de fantasia satírica Discworld, de Terry Pratchett. Líder informal (e incontestada) do círculo de bruxas da região montanhosa conhecida como Ramtops, Esme é conhecida pela sua absoluta confiança nas suas capacidades e pelos seus princípios inamovíveis; quem a procura, obtém não aquilo que procura, mas aquilo de que precisa. Não é muito frequente encontrar protagonistas com a vetusta idade de Granny na fantasia literária, pelo que ler as suas aventuras acaba sempre por se revelar refrescante (e divertido - estamos em Discworld, afinal). A galeria de personagens que Pratchett criou para Discworld é notável, mas, pese embora a competição renhida, é bem possível que Granny Weatherwax tenha sido a sua maior criação.
Granny Weatherwax, esboços de Paul Kidby. Site oficial.
Em Maio tomei a decisão de ler até ao fim do ano praticamente só livros de autores portugueses publicados no século XX. Para suprir enfim lacunas que há muito pretendia superar. E assim foi: nestes cinco meses, até ao momento, li ou reli 28 livros destes escritores (indico-os por ordem alfabética): Agustina Bessa-Luís, Almada Negreiros, Alves Redol, Aquilino Ribeiro, António Alçada Baptista, António Lobo Antunes, Eça de Queiroz, Fernando Assis Pacheco, Fernando Namora, Joaquim Paço d' Arcos, Jorge de Sena, José Cardoso Pires, José Rodrigues Miguéis, José Saramago, Manuel da Fonseca, Mário de Sá-Carneiro, Miguel Torga, Nuno Bragança, Raul Brandão, Rui Zink, Sophia de Mello Breyner Andresen, Tomaz de Figueiredo, Urbano Tavares Rodrigues e Vergílio Ferreira.
Livros de todas as décadas do século XX. De estilos muito diversos, reflectindo imaginários muito variados. Alguns de leitura penosa, reconheço: estive quase a abandonar dois deles a meio - um pela escrita incompetente e canhestra, de manifesta pobreza vocabular; outro pela ridícula profusão de adjectivos, em doses imoderadas e enjoativas. Mas o balanço, até ao momento, é largamente positivo: várias obras funcionaram para mim como revelação ou deslumbramento. Já falei de algumas, tenciono falar de outras. Hoje refiro-me apenas à mais recente, aliás uma releitura: A Noite e a Madrugada, de Fernando Namora.
Menciono-a porque estamos em 2019, ano do centenário do nascimento do autor de Domingo à Tarde, que tão maltratado tem sido post mortem. É uma injustiça que exige reparação. E só pode ser reparada lendo os livros que nos deixou.
«Raia de Espanha. Serranias azuis e violetas que se amaciam subitamente em olivais, campinas de trigo, planaltos de terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo sai dos buracos e dos muros, ou caminhos melancolicamente guarnecidos de plátanos, abrindo clareiras na mata de pinheiros mansos, dum verde calmo e opulento, onde se escondem os celeiros das companhias agrícolas. Mas antes dos ganhões desempregados e dos contrabandistas de profissão chegarem a essas terras têm que atravessar os baldios do seu país. Para cá das faldas desabrigadas, com o rio Erges esmagado em granito e quartzo, o casario nasce dos moinhos afogados nas enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras, agacha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas mesquinhas. Depois vem a planície, triste como um descampado, devassada pelo vento de Espanha que satura o ar de poeira e solidão. Planície nua, crestada pelo sol que amadura as infindáveis searas de trigo.»
Boa prosa, sugestiva descrição de uma paisagem que nos marca para sempre. Português do melhor.
Namora não merece este esquecimento a que vem sendo votado. Urge revisitá-lo, começando precisamente por este magnífico romance a que em boa hora regressei.
O que têm em comum livros como Guerra e Paz, Lolita, O Coração das Trevas, A Casa de Bernarda Alba, A Condição Humana, O Poder e a Glória, 1984, Admirável Mundo Novo, O Processo, Memórias de Adriano, Debaixo do Vulcão, Viagem ao Centro da Terra, Em Busca do Tempo Perdido, O Grande Gatsby, Servidão Humana, Música Para Camaleões, Longe da Multidão e A Oeste Nada de Novo? Foram todos escritos por autores que, podendo ter ganho o Prémio Nobel da Literatura, se viram privados deste galardão, do qual os académicos de Estocolmo não os acharam merecedores.
A lista de galardoados com o Nobel, que no campo das letras se destina a premiar anualmente “a obra que mais se distinguir, numa perspectiva idealista”, conforme Alfred Nobel deixou escrito em testamento, é – salvo raras excepções – uma antologia da ilegibilidade. Que começou aliás logo em 1901, com um poeta francês pouco menos que obscuro: Sally Proudhomme.
É uma lista que ignora a grande maioria dos gigantes da literatura do século XX, e mesmo de escritores do século XIX que ainda viviam em 1901: esquece Lev Tolstoi, Émile Zola, Joseph Conrad, Marcel Proust, Pérez Galdós e Thomas Hardy. E se até nem admira que nomes imensamente populares – como Júlio Verne, Somerset Maugham, Erich Maria Remarque, Georges Simenon e Conan Doyle – tivessem sido esquecidos pela exigentíssima Academia Nobel, outros estão ausentes da lista de premiados de forma quase escandalosa, como Henryk Ibsen, Rainer Maria Rilke, Pio Baroja e Anton Tchekov. Enquanto autores como Wladyslaw Reymont, Carl Spitteler, Karl Gjellerup, Verner von Heidenstam, Gerhart Hauptmann, Rudolf Eucken, Grazia Deledda e Giosuè Carducci integram a lista de premiados. Ninguém hoje os lê, e provavelmente ninguém nunca os leu, mas também já ninguém lhes retira a distinção que foi negada a Marguerite Yourcenar, José Lezama Lima, Malcolm Lowry, Paul Bowles, Ernst Jünger, Katherine Mansfield, Evelyn Waugh, John dos Passos, Tolkien, Italo Calvino e Norman Mailer.
As omissões são, pelo menos, democraticamente distribuídas por diversos idiomas. A começar na língua inglesa, que não viu conferir o Nobel a autores como Henry James, Scott Fitzgerald, G. K. Chesterton, Aldous Huxley, D. H. Lawrence - ou até Jack London, de quem Lenine, no leito de morte, pedia que lhe lessem alguns dos trechos que mais admirava.
Da língua francesa estão ausentes autores como André Malraux, Marguerite Duras e Saint-Exupéry.
Entre os italianos, nenhuma menção a Cesare Pavese ou Alberto Moravia. Dos russos, nada de Vladimir Nabokov (que até escreveu principalmente em inglês), Marina Tsvetaeva ou Maiakovski.
Escandalosa também a omissão de grandes figuras da literatura de expressão espanhola, como Federico García Lorca, Unamuno, Rubén Darío, Julio Cortázar, Cabrera Infante, Antonio Machado e Juan Carlos Onetti. Ou da literatura germânica, como Franz Kafka, Robert Musil e Stefan Zweig. Ou mesmo da japonesa, como Yukio Mishima.
A língua portuguesa, que até hoje viu apenas reconhecidos os méritos de José Saramago (em 1998), é das que tem mais razões de queixa: a Academia Nobel ignorou Fernando Pessoa - o que até pode desculpar-se pelo facto de o autor de Mensagem ter sido quase nada publicado em vida. Mas também Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Clarice Lispector. Havia que premiar, em alternativa, ilustres desconhecidos, como Erik Axel Karlfeldt, Harry Martinson e Eyvind Johnson, representantes das línguas nórdicas, as mais favorecidas por Estocolmo.
A lista de omissões é interminável. Inclui Virginia Woolf, Dylan Thomas, Sylvia Plath, Raymond Carver, John Updike e Arthur Miller, por exemplo. Em flagrante contraste com Winston Churchill, galardoado em 1953, quando exercia pela segunda vez as funções de primeiro-ministro do Reino Unido – menos por motivos de ordem estética do que de ordem política.
Não deixa de ser irónico, já que muitos autores ficaram à margem do Nobel por motivos políticos – uns de esquerda, como Bertolt Brecht, Arthur Koestler e George Orwell, outros de direita, como Ezra Pound, Céline e Jorge Luis Borges. Embora Churchill escrevesse inegavelmente bem e até tivesse deixado um dos mais sábios conselhos de escrita aos seus leitores: «Das palavras, as mais simples; das mais simples, a menor.»
Graham Greene, uma das ausências mais imperdoáveis na lista dos premiados, encolhia os ombros em cada ano que passava sem lhe atribuírem o Nobel. E costumava afirmar: «Para um escritor, o sucesso é apenas um fracasso adiado.» De muitos que a Academia Nobel distinguiu não se pode dizer mais nada senão isto.
Imagens: Jorge Luis Borges e Graham Greene
Logo que a guerra acabou fui trabalhar na Bósnia-Herzegovina, colocado em Tesanj. Na Europa muito difícil será encontrar um contexto fisicamente duro, e ali não o foi. Mas, e ainda que apenas tenha sido um mês, foi -me moralmente muito duro. Pois deu para perceber a inacreditável razia que ali acontecera, demoníaca. Anos depois escrevi um textinho, balbuciadas memórias sobre isso, a modos que catarse. E lembro também, já questões pessoais, do meu horrível regresso a Lisboa, um domingo de manhã, abatido pois comovido com tudo aquilo que vira e ouvira, e o chegar a casa para sofrer uma separação totalmente inesperada, por espúrias e até patéticas razões, uma verdadeira crueldade que me derrubou. Isso são outras contas, é certo, mas nunca me lembro da Bósnia sem elas virem ao de cima. Mas o que agora conta é que muito me irrito cada vez que vejo gente a defender os sérvios - e esse é um discurso muito presente nos (ex)comunistas portugueses, ocamente reduzidos a uma eslavofilia. Mesmo sabendo da enorme complexidade daquela guerra jugoslava, do verdadeiro pan-demónio que ali grassou.
Isso é uma coisa. A outra coisa é ver agora as reacções na imprensa, nacional e estrangeira, ao Nobel atribuído a Handke. Li um punhado dos seus livros, autor que esteve em voga. Muito provavelmente o primeiro terá sido este "A Hora da Sensação Verdadeira", uma das primeiras capas - e bem bonita - do meu amigo Emílio Vilar - mais ou menos contemporânea da belíssima linha gráfica que então ele criou para a muito boa colecção "Memória e Sociedade" também da Difel. Lembro-me bem disso, e que foi ele que me deu um dos exemplares que tinha. Depois li o tal punhado de Handke. E marcou-me, em particular o "Para Uma Abordagem da Fadiga" (vou relê-lo agora, como reagirei 25 anos depois?).
Mas antes fico só com uma questão, que a mim próprio responderei. Pois, e mesmo que nada goste dos defensores dos sérvios, tão malvados que estes então foram, interrogo-me: que gente é esta que avalia os escritores principalmente (ou mesmo somente) pelas suas opiniões políticas? Imprestável. Vizinhos imprestáveis.
Há pouco mais de um mês fiz um apelo público - aliás motivado por um inquérito sobre leituras de Verão promovido pelo Sapo, em que participei - à aquisição do romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada, de Fernando Assis Pacheco. Logo vários leitores, com inegável simpatia, me deram boas pistas para chegar ao livro, o que muito lhes agradeço. Li-o num instante e, como já esperava, é um romance que recomendo sem a menor dúvida - considero-o um dos melhores que se publicaram em Portugal nas últimas décadas do século XX. Julgo que terá sido editado inicialmente pela Asa, depois passou a integrar o catálogo da Assírio & Alvim. Estranhamente, encontra-se ausente das livrarias: nem na recente Feira do Livro de Lisboa consegui vislumbrá-lo.
Agora faço outro apelo, desta vez para encontrar outro romance que se encontra igualmente fora do mercado: Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis. Dizem-me na Bertrand que não dispõem sequer de um exemplar em fundo de armazém. Desde a declaração de insolvência da Editorial Estampa, em 2017, as obras deste escritor - um dos maiores prosadores portugueses do século XX - deixaram de estar disponíveis ao público fora das bibliotecas. Ao que me garantem, por supostas desavenças entre os seus herdeiros, algo infelizmente bastante mais comum do que muitos imaginam.
É um delito de lesa-cultura. E eis-me agora, por via disso, à procura dos dois volumes deste Milagre Segundo Salomé. Quem souber fornecer-me alguma pista, será bem-vinda. E declaro-me muito grato desde já.
Ia lendo penosamente um laureado romance de um dos bonzos das letras pátrias, publicado na década de 80, e a cada página encalhava naquela prosa macilenta, mastigada e conselheiral, parida sem um pingo de emoção, com o intuito deliberado de vergar os basbaques ao "estilo" do autor.
A meio, enjoei - e pus o obeso livro de lado. Para desenjoar, peguei noutro. Com metade do tamanho e o dobro da qualidade: O Hóspede de Job, que já tinha lido há uns trinta anos, em edição da defunta Arcádia.
Não é o melhor romance de José Cardoso Pires, mas tem uma prosa vibrante, que ama o idioma e não trata o leitor com desdém. Reli-o em dois dias e deu-me grande prazer, em contraste com o calhamaço anterior.
«No largo de terra batida passeiam dois cavaleiros armados e perguntam com o olhar se é isto Cimadas - este terreiro, este poço.
Nem uma árvore. Tudo apagado, tudo branco; alto silêncio do meio-dia. Os cavaleiros, que trazem farda de cotim e carabina na sela, empinam as montadas ao sol. Fazem-nas rodar, movem-nas como uma arena deserta. Sabem muito bem que há gente na taberna e, a cada porta do largo, uma mulher muda a espiá-los.»
Confirmo nesta obra as maiores virtudes de Cardoso Pires enquanto ficcionista: criador de atmosferas envolventes e sugestivas, com notável economia verbal mas sem perder capacidade descritiva, enquanto mantém mão firme nos diálogos, que nunca soam a reprodução postiça.
Isto sim, é a literatura a que me apetece voltar sempre. Seja Verão ou seja Inverno.
Já aqui expressei a minha perplexidade pelo facto de haver tão escassas descrições de lautos manjares na literatura portuguesa. Perplexidade tanto maior quanto é sabido que gostamos de comer e encontramos uma apreciável variedade de opções gastronómicas no País, viajemos para onde viajarmos dentro das nossas fronteiras. Às vezes parece-me que os nossos escritores consideram o tema um assunto menor. Ou, para ser mais directo, que não apreciam mesmo os prazeres da mesa. Podemos percorrer a obra inteira de vários autores sem depararmos com um único repasto memorável.
Há excepções, claro, e bem notáveis. Mas, certamente não por acaso, são aquelas que todos conhecemos - com destaque para a inesquecível ceia proporcionada a Jacinto na sua primeira noite em Tormes.
Foi, portanto, com imenso agrado que deparei há dias com uma apetecível refeição descrita por Agustina Bessa-Luís na terceira e última parte do seu romance Fanny Owen. Abriu-me o apetite, confesso. De tal modo que não resisto a partilhar convosco esse excerto:
«Faziam-se bolachas de amêndoa e de cidrão, assim como refrescos de violeta e de bergamota. Servia-se peru à Cardeal, colorido com cascas de camarões pisados e assado no espeto, receita que só era ainda aviada nas cozinhas de Mesão Frio, assim como a empada de lombo de lebre, assim como leitão de javali com molho picante.»
Caramba, uma descrição destas até dá gosto. Sobretudo por ser tão rara nas nossas pomposas letras, jamais propícias a trocar a sala pela cozinha. Falta-nos um Rex Stout, falta-nos um Georges Simenon, falta-nos um Vázquez Montalbán - escritores que não tinham complexos em demonstrar a sua paixão pela arte culinária. Ao contrário do que sucede na literatura portuguesa, em que muito se fala e quase nada se come.
Mais um motivo para aqui lhe deixar a minha vénia grata enquanto seu leitor muito atento, Dona Agustina.
Mania tão nossa esta, a de alterar os nomes às coisas. Como sucedeu com Uma Agulha no Palheiro, de Salinger, entretanto baptizada com um título horrível, À Espera no Centeio. E com a já clássica Cabra-Cega de Roger Vailland, que passou a um insípido Jogo Curioso. Ou - pior ainda - com o magnífico Monte dos Vendavais, de Emily Bronte, transformado sucessivamente em O Monte dos Ventos Uivantes, O Alto dos Vendavais e A Colina dos Vendavais.
Ainda há dias vi dois destes títulos diferentes para crismar a mesma obra alinhados numa livraria em Lagos: surgem documentados nesta fotografia, como irmãos siameses. Interrogo-me se estaremos perante simples manha comercial para iludir uns incautos (que pensam adquirir uma obra diferente daquela que já terão lá por casa) ou mera vontade de mudar o que está bem, outra mania muito nossa. Sem absorver um salutar princípio colhido do futebol: em equipa que ganha não se mexe. Dos livros devemos dizer o mesmo.
Desonestidade intelectual, em qualquer dos casos. Ou nem isso: burrice apenas.
Na minha livraria preferida, espreito as novidades literárias. Novos romances, por exemplo. Há sempre vários à disposição dos leitores.
Pego num deles, espreito a primeira página. Traz citação. Coisa fina: é de Sun Tzu. A Arte da Guerra, clássico com várias traduções em português.
Mas esta citação surge em inglês, idioma que o admirável filósofo chinês, nascido no século VI antes de Cristo, não dominava. Desde logo porque a língua imortalizada por Shakespeare, Byron e Dickens só começou a generalizar-se, no seu figurino actual, cerca de mil anos depois.
Excluindo o chinês original, só faria sentido, portanto, que uma frase destas surgisse no nosso idioma como epígrafe de um romance escrito por um autor português e destinado a leitores portugueses. O inglês, aqui, indicia apenas aculturação bacoca e espúria. Algo digno de um pesca-frases em modo rápido nesse amplo mar da palha que é o Google.
Passei adiante, claro. Sem necessitar de ler mais nada.
No último mês e meio, li dez romances portugueses do século XX. Em quase metade desses livros, muito celebrados e enaltecidos, o trabalho está totalmente ausente. As personagens principais são homens, vagamente intelectuais, que nada fazem senão arrastar-se de restaurante em restaurante e de bar em bar em Lisboa enfardando e decilitrando, sem visíveis meios de subsistência. Intitulam-se escritores sem escreverem uma linha, denominam-se pintores sem um só quadro para amostra. Falam pelos cotovelos e só buscam o prazer fácil, embora não grátis: as mulheres, nestes marcos da nossa ficção, são todas putas ou para lá caminham. O que não parece depreciar tais obras aos olhos do feminismo contemporâneo.
Em jeito de balanço provisório das mais recentes leituras, por contraste, concluo que a chamada corrente neo-realista, ao traçar uma clara demarcação não apenas ao nível das ideias mas também da escrita, foi um movimento mais importante do que o cânone dominante nas últimas décadas reconhece. Não tanto pelo seu inquestionável valor documental ou por haver enriquecido o registo escrito da nossa língua com as múltiplas tonalidades do vocabulário oral, mas por ter trazido o trabalho, como pilar da dignidade humana, para as ociosas páginas daquilo a que se convencionou chamar a nossa melhor literatura. As pessoas comuns, sem nomes brasonados, residentes na província ou na periferia da capital. Gente que irrompe nas páginas de obras-primas hoje injustamente esquecidas, como Casa na Duna, de Carlos de Oliveira, ou Cerromaior, de Manuel da Fonseca, que alguns omitem nas suas listas muito tendenciosas de títulos imprescindíveis do romance português do século XX. Uma delas, salvo erro, não consta sequer do copioso rol de títulos incluídos nas 788 páginas de recomendações do Plano Nacional de Leitura.
É tempo de livros como estes serem revalorizados. Sem anátemas ditados pelo preconceito estético ou político. E de os apreciarmos pelo seu valor intrínseco, não por constituírem armas de arremesso em ultrapassadas contendas ideológicas.