Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

A glória póstuma do assassino

Pedro Correia, 01.08.11

 

Há um nome de um assassino que nunca me sairá da memória: Shiran Bishara Shiran. Foi o indivíduo que matou traiçoeiramente Robert Kennedy, irmão do malogrado presidente, na cozinha de um hotel em Los Angeles, quando o ex-procurador-geral dos EUA, com apenas 42 anos, acabava de ganhar a decisiva primária da Califórnia pelo Partido Democrata, o que o colocava em excelente posição para concorrer à Casa Branca.

Corria o mês de Junho de 1968. Eu era um miúdo mas já acompanhava com todo o interesse as imagens dos telejornais e Robert Kennedy foi o primeiro dos meus heróis. Fixei para sempre o rosto escuro e triste daquele indivíduo natural da Palestina que, ao premir o gatilho, matou também para sempre os sonhos de milhões de norte-americanos. Escapou por um triz a ser executado, após ter sido condenado à morte, pois a pena capital acabou entretanto por ser abolida no estado da Califórnia, e ainda hoje está detido. Um destino bem diferente do de Lee Harvey Oswald, o assassino de John Fitzgerald Kennedy a 22 de Novembro de 1963 e por sua vez assassinado dois dias mais tarde, em Dallas, por um tal Jack Ruby, figura do bas fond. Este último foi o primeiro homicídio transmitido em directo pela televisão – para os EUA e para o mundo todo. Algo impensável em 14 de Abril de 1865, quando John Wilkes Booth assassinou o presidente Abraham Lincoln enquanto este assistia a uma representação teatral em Washington.

Tenho pensado um pouco em tudo isto por estes dias, a propósito do massacre na Noruega. O que assassinos deste calibre procuram, sob um pretexto político, religioso ou outro qualquer, é um grau máximo de notoriedade – se possível à escala universal. A repetição até à náusea do seu nome, nos mais diversos órgãos de informação, constitui uma homenagem involuntária à barbaridade do acto que praticou. O seu nome banaliza-se, ganhando uma espécie de estatuto de imortalidade. Foi assim com Booth, foi assim com Oswald.

 

 

É por isto que me revejo por inteiro naquilo que Jorge Almeida Fernandes escreveu há dias no Público. «Em Julho de 356 a.C um anódino Eróstrato incendiou o Templo de Artemisa, em Éfeso, de que se dizia ser uma das “sete maravilhas do mundo”. Assumiu que o fizera como desesperado meio de alcançar a glória. O sacrilégio foi condenado com a morte. Como póstuma punição, os magistrados proibiram os efésios de jamais citarem o seu nome, que foi também apagado de todos os documentos. Mas um historiador de outra cidade nomeou-o, outros o repetiram e Eróstrato entrou na História. Ninguém conhece o nome do arquitecto que desenhou o templo de Éfeso. Tal como Eróstrato, B. está a ganhar.»

B. é o assassino norueguês. Recuso-me a escrever e até a fixar o seu nome. Como certamente sucede com Almeida Fernandes, indigna-me vê-lo a toda a hora impresso e difundido pelos órgãos de informação. Como se de um filantropo ou um benemérito se tratasse. Como se fosse uma figura familiar, muito lá de casa. Como, no fundo, fosse um de nós.

Não é um de nós. E, por mim, nenhum jornalista deveria atribuir-lhe o estatuto de Eróstrato do nosso tempo. Retemos na memória o nome de demasiados assassinos, o que constitui uma espécie de caução póstuma aos seus actos criminosos. Entristece-me saber que jamais apagarei da memória o nome de Shiran Bishara Shiran – o primeiro homicida de que ouvi falar quando percebi, menino ainda, que o Mal é capaz de triunfar sobre o Bem e assombrar-nos para sempre. Como um lado lunar dos contos de fadas. Na vida, ao contrário do que sucedia nos filmes e séries da nossa infância, nenhum final feliz está garantido.

O fim do sonho em seis segundos

Pedro Correia, 22.11.10

 

Quase meio século depois, o mistério permanece. Quem foi o cérebro do assassínio de John Fitzgerald Kennedy? O 35º presidente dos Estados Unidos terá sido vítima de um psicopata de 24 anos, munido de uma espingarda de 12 dólares que o alvejou com três tiros certeiros ao fim da manhã de 22 de Novembro de 1963 em Dallas, pondo fim em seis fatídicos segundos ao sonho americano?

Poucos acreditam hoje nesta versão do atirador solitário, tanto mais que o suposto homicida, Lee Harvey Oswald, viria por sua vez a ser assassinado, dois dias após a morte de Kennedy, na própria sede da polícia de Dallas por um indivíduo ligado à Mafia, chamado Jack Ruby.

A verdade é que nasceu aí a chamada “maldição Kennedy”, que viria a fazer outras vítimas. Três delas mulheres de algum modo ligadas ao jovem presidente que permaneceu apenas 1037 dias na Casa Branca.

 

A primeira foi amante de Kennedy entre 1961 e 1963. Chamava-se Mary Pinchot Meyer: era uma das mulheres mais deslumbrantes de Washington naquela época. Segundo os registos da Casa Branca, entrou 13 vezes no edifício naqueles dois anos –  a última visita ao presidente ocorreu escassos dias ante do crime de Dallas. O seu fim foi igualmente trágico: em Outubro de 1964, quando passeava junto a um canal em Georgetown, foi alvejada com dois tiros – um na cabeça, outro no coração. O assassino nunca foi capturado.

Outra tragédia envolveu uma jornalista da estação televisiva ABC, que gozou de uma fugaz celebridade. Lisa Howard tinha 37 anos em 1963, quando funcionou como intermediária entre Kennedy e Fidel Castro. Deslocou-se várias vezes a Havana, nesse ano, e tornou-se íntima dos dois dirigentes, formalmente inimigos. A morte de Kennedy inviabilizou a aproximação a Cuba. Lisa não tardou a ser despedida da ABC. A 4 de Julho de 1965, ingeriu uma dose fatal de barbitúricos.

Outra celebridade televisiva da época era Dorothy Kilgallen, única jornalista que conseguiu entrevistar Jack Ruby na prisão e se preparava para contar a história dele num livro. Também ela apareceu morta, no seu apartamento, a 8 de Novembro de 1965. Os capítulos do manuscrito sobre Ruby nunca foram encontrados.

 

Uma das mortes mais misteriosas de pessoas ligadas a John Kennedy ocorreu escassos dez dias após o assassínio do presidente. A 2 de Dezembro de 1963, Grant Stockdale, grande amigo de Kennedy, caiu de uma janela do seu gabinete, situado no 13º andar de um prédio de escritorios em Miami. Não deixou bilhete de suicídio.

Stockdale, corretor da Bolsa e antigo embaixador norte-americano na Irlanda, andaria com problemas financeiros e a notícia do assassínio de Kennedy ter-lhe-á agravado uma depressão. Mas não faltou quem especulasse que alguém o empurrara da janela para calar segredos ligados ao trágico fim do presidente. Meses antes, quando velejavam em Palm Beach, Kennedy perguntara-lhe: “Achas que vou ser assassinado?” A pergunta – premonitória – ficou a pairar para sempre na memória perturbada de Grant Stockdale.

“Teria Oswald agido sozinho?”, questionava a capa da Life, na edição de 25 de Novembro de 1966. Poucos acreditam hoje nisso. E a maldição Kennedy permanece.

 

 

Imagens:

1. John Kennedy  

2. Mary Pinchot Meyer

3. Grant Stockdale com Kennedy

4. Lisa Howard com Fidel Castro

Texto reeditado

O fim do sonho em seis segundos

Pedro Correia, 05.06.10

 

Quase meio século depois, o mistério permanece. Quem foi o cérebro do assassínio de John Fitzgerald Kennedy? O 35º presidente dos Estados Unidos terá sido vítima de um psicopata de 24 anos, munido de uma espingarda de 12 dólares que o alvejou com três tiros certeiros ao fim da manhã de 22 de Novembro de 1963 em Dallas, pondo fim em seis fatídicos segundos ao sonho americano?

Poucos acreditam hoje nesta versão do atirador solitário, tanto mais que o suposto homicida, Lee Harvey Oswald, viria por sua vez a ser assassinado, dois dias após a morte de Kennedy, na própria sede da polícia de Dallas por um indivíduo ligado à Mafia, chamado Jack Ruby.

A verdade é que nasceu aí a chamada “maldição Kennedy”, que viria a fazer outras vítimas. Três delas mulheres de algum modo ligadas ao jovem presidente que permaneceu apenas 1037 dias na Casa Branca.

 

 

A primeira foi amante de Kennedy entre 1961 e 1963. Chamava-se Mary Pinchot Meyer: era uma das mulheres mais deslumbrantes de Washington naquela época. Segundo os registos da Casa Branca, entrou 13 vezes no edifício naqueles dois anos –  a última visita ao presidente ocorreu escassos dias ante do crime de Dallas. O seu fim foi igualmente trágico: em Outubro de 1964, quando passeava junto a um canal em Georgetown, foi alvejada com dois tiros – um na cabeça, outro no coração. O assassino nunca foi capturado.

Outra tragédia envolveu uma jornalista da estação televisiva ABC, que gozou de uma fugaz celebridade. Lisa Howard tinha 37 anos em 1963, quando funcionou como intermediária entre Kennedy e Fidel Castro. Deslocou-se várias vezes a Havana, nesse ano, e tornou-se íntima dos dois dirigentes, formalmente inimigos. A morte de Kennedy inviabilizou a aproximação a Cuba. Lisa não tardou a ser despedida da ABC. A 4 de Julho de 1965, ingeriu uma dose fatal de barbitúricos.

Outra celebridade televisiva da época era Dorothy Kilgallen, única jornalista que conseguiu entrevistar Jack Ruby na prisão e se preparava para contar a história dele num livro. Também ela apareceu morta, no seu apartamento, a 8 de Novembro de 1965. Os capítulos do manuscrito sobre Ruby nunca foram encontrados.

 

Uma das mortes mais misteriosas de pessoas ligadas a John Kennedy ocorreu escassos dez dias após o assassínio do presidente. A 2 de Dezembro de 1963, Grant Stockdale, grande amigo de Kennedy, caiu de uma janela do seu gabinete, situado no 13º andar de um prédio de escritorios em Miami. Não deixou bilhete de suicídio.

Stockdale, corretor da Bolsa e antigo embaixador norte-americano na Irlanda, andaria com problemas financeiros e a notícia do assassínio de Kennedy ter-lhe-á agravado uma depressão. Mas não faltou quem especulasse que alguém o empurrara da janela para calar segredos ligados ao trágico fim do presidente. Meses antes, quando velejavam em Palm Beach, Kennedy perguntara-lhe: “Achas que vou ser assassinado?” A pergunta – premonitória – ficou a pairar para sempre na memória perturbada de Grant Stockdale.

“Teria Oswald agido sozinho?”, questionava a capa da Life, na edição de 25 de Novembro de 1966. Poucos acreditam hoje nisso. E a maldição Kennedy permanece.

 

 

Imagens:

1. John Kennedy  

2. Mary Pinchot Meyer

3. Grant Stockdale com Kennedy

4. Lisa Howard com Fidel Castro

O guarda-chuva de Chamberlain

Pedro Correia, 11.09.09

 

As primárias do Partido Democrata norte-americano, em 1960, foram extremamente concorridas. Entre os candidatos, destacavam-se John Fitzgerald Kennedy – representante da elite da Nova Inglaterra, sofisticada e liberal – e Lyndon Baines Johnson, um texano até à medula, representante da chamada ‘América profunda’, com raízes rurais e esclavagistas. Estava em causa a escolha do nome que iria apresentar-se contra um candidato forte: o republicano Richard Nixon, vice-presidente do inquilino cessante da Casa Branca, Dwight David Eisenhower.
Kennedy e Johnson, cada qual apostado na vitória, esgrimiram argumentos e trocaram duras acusações durante esta animada campanha interna, que culminou na convenção de Los Angeles em Julho de 1960. A dado passo, Johnson – que era o líder dos democratas no Senado – atacou John Kennedy em termos pessoais, não poupando sequer o pai do seu rival, o milionário Joseph Patrick Kennedy, que quando foi embaixador dos Estados Unidos em Londres, entre 1938 e 1940, revelou alguma simpatia pela Alemanha nazi. “O meu pai nunca andou a segurar no guarda-chuva de Chamberlain”, disparou Johnson, aludindo ao primeiro-ministro que capitulou perante Hitler em Munique. O que revela bem até que ponto o debate aqueceu nessa convenção do tudo-ou-nada.
Kennedy conquistou a nomeação democrata – com 806 votos dos delegados, contra 409 recolhidos por Johnson e 287 distribuídos por vários outros concorrentes, entre os quais Adlai Stevenson, Hubert Humphrey e Stuart Symington. E logo o seu primeiro passo, aliás incompreendido à época por vários dos seus colaboradores, foi estender a mão ao seu principal rival no interior do partido, convidando-o a ser o candidato à vice-presidência. Uma aposta que valeu a pena. Em Novembro desse ano, a dupla John Fitzgerald Kennedy-Lyndon Baines Johnson bateu os republicanos por margem muito escassa: cerca de 110 mil votos. Sem a junção dos dois nomes complementares, concluem hoje os historiadores sem sombra de dúvida, a derrota dos democratas teria sido inevitável.
 
Apeteceu-me fazer esta digressão histórica para assinalar o contraste entre dois modos muito diferentes de estar na política: o que Kennedy revelou em 1960, superando até agravos pessoais, e o de políticos contemporâneos, nomeadamente em Portugal, que preferem subtrair em vez de somar. Como se o verdadeiro adversário estivesse intramuros e não no exterior. E como se não precisassem de cada militante nos combates eleitorais. Vivem obcecados com o guarda-chuva de Chamberlain, que nunca protegeu ninguém contra intempéries políticas.
 
Imagem, em cima: John Kennedy, Jacqueline Kennedy, Lady Bird Johnson e Lyndon Johnson, Agosto de 1960. Foto: Paul Schutzer (Life)

O que parece nem sempre é

Pedro Correia, 25.08.09

A autoconfiança é um atributo fundamental num político. John Kenneth Galbraith notou certa vez que nunca tinha conhecido um homem tão confiante em si próprio como John Fitzgerald Kennedy – o que serve para explicar grande parte do sucesso do 35º presidente norte-americano, ainda hoje uma das personalidades mais aclamadas do século XX. No fascinante livro The Best and the Brightest, dedicado aos bastidores da presidência Kennedy, David Halberstam mostra-nos outra característica do jovem presidente que acabaria por ser assassinado em Dallas: ele era exactamente como parecia. Ao contrário de outros políticos, que fazem tudo para parecer o que não são, Kennedy tinha uma autenticidade que empolgava os seus adeptos e desarmava os seus adversários.

Há um episódio da disputadíssima campanha eleitoral de 1960 que ilustra bem tudo isto: a certa altura alguém pergunta a Kennedy se não se sente exausto. A resposta, negativa, veio num sorriso. Mas o então senador do Massachusetts que se candidatava à Casa Branca pelo Partido Democrata acrescentou ter a certeza de que o seu antagonista republicano, Richard Nixon, se encontrava à beira da exaustão (o que mais tarde se provaria ser verdade). E como é que Kennedy sabia isto? O futuro presidente esclareceu o seu interlocutor: “Sei bem quem sou e não tenho de me preocupar em adaptar-me ou transformar-me. Tudo quanto tenho que fazer, em cada etapa da campanha, é mostrar-me tal como sou. Mas Nixon não sabe bem quem é. Portanto, cada vez que faz um discurso tem de decidir que face dele próprio irá mostrar, o que deve ser extenuante.”

Este episódio ajuda a demonstrar a importância da autenticidade na política. Um dirigente postiço, plastificado, sempre em pose, acaba cedo ou tarde por ser desmascarado. Perde grande parte da sua capacidade de atracção quando lhe desvendam o verdadeiro rosto. E termina esgotado por ter consumido energias em excesso ao tentar parecer o que não é.

Os melhores são capazes do pior

Pedro Correia, 04.02.09

Chamo a isto uma boa surpresa. Um amigo fez-me chegar de Londres um livro que há muito quero ler: The Best and the Brightest, a célebre obra sobre os mil dias do Executivo de John Fitzgerald Kennedy, que reuniu uma das melhores e mais brilhantes equipas governativas de que há memória nos Estados Unidos, como o próprio título indica. Homens como Robert McNamara, McGeorge Bundy, Dean Rusk, Walt Rostow, George Ball.

O livro, publicado em 1972, consolidou a fama do seu autor, o jornalista David Halberstam. E tornou-se uma das obras mais influentes das últimas décadas: garantem-me que é fundamental não só para conhecer a fulgurante presidência Kennedy mas também, de maneira geral, os bastidores da política norte-americana.

Halberstam, que se destacou como repórter de guerra no Vietname e correspondente em Leopoldville, Saigão e Varsóvia, aos 35 anos era já considerado uma lenda do jornalismo estadunidense. Recebeu o Prémio Pulitzer pelos despachos enviados do Vietname em 1962 e 1963 para o New York Times: começava então, em plena era Kennedy, a mais absurda guerra em que os americanos se envolveram em toda a sua história. Os melhores eram afinal também capazes do pior: descodificar esta aparente contradição será, suponho, um dos fascínios do livro que agora tenho entre mãos.