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Delito de Opinião

A propósito de justiça e sorte

Pedro Correia, 01.12.22

Há dois conceitos que evito associar às minhas reflexões ocasionais sobre o fenómeno desportivo - e o futebol em particular.

O primeiro é o conceito de justiça. Escuto e leio muitas análises aos jogos ancoradas neste conceito - «se houvesse justiça, a equipa X teria ganho»; «a vitória da equipa Y foi justa».

Ora, salvo no que se refere a procedimentos disciplinares, a justiça não é para aqui chamada. Um desafio de futebol não é uma audiência de tribunal. Aqui o importante é vencer - por uma margem muito dilatada, de preferência, mas se for pela diferença mínima também serve. Que se vença até por «meio golo», como na velha boutade das conversas de café.

 

 

Ao pretendermos explicar tudo em futebol recorrendo ao conceito de justiça, acabamos por não explicar nada. Porque aquilo a que por comodidade chamamos injustiça é uma espécie de lei não escrita imanente a todo o jogo. Uma das mais brilhantes proezas técnicas da carreira em campo de Cristiano Ronaldo foi aquilo a que se chama um golo limpo, "injustamente" anulado pelo árbitro por alegada deslocação de Nani numa vitória da selecção portuguesa contra a Espanha.

Eu estava lá - e vi. Nunca hei-de esquecer aquele golo, reproduzido aqui mais acima.

 

É inútil insistir no contrário: não existe uma justiça poética nos estádios que resgata os verdadeiros campeões, projectando-os da relva dos estádios para esse simulacro de Campos Elíseos a que se convencionou chamar verdade desportiva. Penso nisto todas as vezes que me lembro de um dos jogadores mais celebrados da história do futebol. Diego Maradona, ele mesmo. Um dos seus golos mais famosos - e decisivos - foi marcado com a mão, à margem das leis do jogo. Passou à eternidade não como infractor, mas como lenda viva.

Onde mora a justiça em tudo isto?

 

 

O segundo conceito é o de sorte.

Diz-se que Fulano é um sujeito com sorte ou que Beltrano, figura estimável, padece no entanto do facto confirmado por todas as evidências de não ser acompanhado por essa cobiçada deusa a que chamamos Sorte. E ninguém quer figuras tocadas pelo estigma do azar na sua equipa do coração.

A sorte conquista-se, constrói-se. Dá muito trabalho. Prefiro sempre usar a palavra mérito em vez da palavra sorte. E volto a Cristiano Ronaldo: desde cedo, ainda na escola desportiva de Alvalade, onde se formou para o futebol e para a vida, o campeão madeirense prolongava as sessões de treino, continuando a exercitar-se mesmo após a partida dos colegas. Aperfeiçoou e desenvolveu da melhor maneira as suas aptidões naturais. Ultrapassou a fronteira que separa os jeitosos (que é quanto basta quase sempre em Portugal) daqueles que têm verdadeiro talento.

A sorte ajuda? Pois ajuda. Mas não explica nada. Quando Cristiano, com um remate bem colocado, cheio de força, faz tremer o poste da baliza adversária, os analistas que adoram cultivar o lugar-comum dirão: «Teve azar.» Ele será o primeiro, no entanto, a reconhecer que esteve quase mas terá de esforçar-se ainda um pouco mais para a bola entrar na próxima vez. Que poderá ser já no minuto seguinte.

 

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Foto de Robert Capa no Dia D (Normandia, 6 de Junho de 1944)

 

Experimentem usar mérito ou competência no lugar da palavra sorte.

Não é uma simples questão semântica: há toda uma filosofia de vida subjacente às palavras que escolhemos.

Cristiano Ronaldo está para o futebol como Robert Capa estava para as reportagens de guerra. Merecidamente distinguido em vida com o título de melhor repórter fotográfico da sua geração, Capa costumava dizer: «Se a foto não estava suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto.»

A sorte é isto. E constrói-se a todo o tempo por aqueles que beneficiam dela.

Complicar a descomplicação*

José Meireles Graça, 11.11.22

Francisca van Dunem deu há tempos uma entrevista e terá sido a única vez em que disse alguma coisa que não fosse uma banalidade: o cargo de ministra teve para ela (e, somos levados a acreditar, para o marido, conhecido advogado), uma pesada factura moral e financeira. A declaração é ingénua e, no caso dela, quase cómica, tem precedentes (em tempos Cavaco também se queixou da pitança que recebia) mas poderia conter, para outras personalidades, alguma verdade: não falta quem se tenha recusado a ser ministro ou deputado porque com isso teria prejuízo, e são alguns os políticos que caíram fora do bilhar do poder descobrindo que investiram anos da sua vida numa carreira que, para quem não for corrupto, nem tiver um lugar cativo à sua espera, nem faça parte da quadrilha das portas giratórias do poder para o tacho, pode ir dar a um beco – um assunto de que não me vou ocupar aqui.

Das bem fornidas coudelarias do PS e adjacências saiu outra ministra, Catarina Sarmento e Castro. E esta senhora foi a Ourém para um evento e fez um discurso onde, entre outras coisas, disse: "Só uma justiça mais acessível e mais próxima, com uma linguagem mais simples, mais clara, mais transparente, ajudará a evitar controvérsias e chegar à compreensão das pessoas".

A afirmação tem um aspecto positivo e vários negativos. O positivo é que é uma censura aos juízes. As sentenças são com frequência prolixas, gongóricas e pedantes, e talvez os meritíssimos fizessem bem em triturar menos as circunvoluções cerebrais para produzirem peças que imaginam literárias, com o intuito de impressionar advogados e colegas, e antes cultivassem o amor do sucinto: os factos apurados são estes e o direito que se lhes aplica é aquele, a parte que decai não tem razão por isto e aquilo – um discurso ático se puderem, cru no caso do talento não abundar.

A ministra não disse, porém, como se muda a tradição, deixando pairar a suspeita de que não faz a menor ideia. Os magistrados da opinião que, de longe em longe, referem a Justiça, como António Barreto, crucificam-na; ninguém, tenha a audiência que tiver, ousa dizer que naquele reino as coisas vão bem, e pelo contrário há um consenso persistente de que vão muito mal; a opinião pública sabe que o sistema (que inclui, além dos tribunais, as polícias, a Autoridade Tributária e outras Autoridades, bem como a magistratura do Ministério Público), acusa muito, mói bastante, arrasta os pés e condena pouco porque o que chega à fase de julgamento é inconsistente; nos tribunais administrativos e fiscais toma-se como normal, e uma fatalidade impossível de resolver, que se espere anos, quando não mais de uma década, por decisões cuja complexidade é nula – e ainda que o não fosse; e, como se tudo isto fosse pouco, uma percentagem abracadabrante de juízes acha que alguns seus colegas são corruptos – nada que há muito não se dissesse à boca pequena.

Embora tenha referido incidentalmente a Justiça penal, desses problemas não curo aqui que estou com falta de vagar, senão para dizer que o caso Sócrates prova que o sistema seria de gargalhada, se não fosse para chorar. Regresso aos outros.

A recomendação de decisões mais próximas não é isenta de perigos: a juridicidade desenvolveu um jargão próprio que contém decerto inutilidades para impressionar pategos e analfabetos (processo que aliás começa nas faculdades de Direito com, por exemplo, o recurso a locuções latinas perfeitamente traduzíveis, a utilizar por quem não sabe Latim mas sabe fingir), mas isso não quer dizer que as sentenças tenham de ser acessíveis às pessoas cujo domínio da expressão escrita não vai além da compreensão dos jornais desportivos (e da maior parte dos outros, já agora). O rigor das decisões passa também pelo rigor na utilização de palavras com um significado jurídico preciso; e lá onde a decisão parece obscura há o advogado para explicar.

De modo que hierarquizemos as coisas, o que Catarina não fez: o que o cidadão sobretudo quer é rapidez, não necessariamente que ao cabo de anos venha a sentença redigida de modo a que ele a possa entender. A “acessibilidade” que interessa tem sobretudo a ver com as custas demenciais e a “linguagem mais simples” só interessaria se fizesse perder menos tempo ao juiz, e só nessa medida.

Os problemas da justiça criminal não são os mesmos da cível, e a administrativa e fiscal é ainda diferente. Nesta última o instituto falimentar, o de recuperação de empresas, os tribunais de comércio, os agentes de execução, que são depositários de poderes públicos, tudo constitui uma nebulosa onde a inépcia do legislador, o atraso indesculpável e sistemático, os abusos sortidos, são uma escara no interesse público e na saúde da economia, que só não escandaliza tanto como outros desastres porque afecta menos pessoas, tendo portanto menos visibilidade; e da panóplia de recursos para a defesa contra abusos da administração fiscal nem é bom falar porque o Estado que aí vigora não é o de Direito, nem é inocente a falta de quadros e meios nos tribunais respectivos, aí sim reais, e onde o Estado não é qualificado como réu, mas deveria.

Nada disto é novo. Mas não vale a pena pedir soluções aos magistrados judiciais, e menos ainda às organizações sindicais da magistratura (cuja existência, aliás, nem sequer devia ser permitida): dirão que o problema não é decidirem pouco e tarde, é os advogados atazanarem-nos com incidentes e recursos, para além da falta de meios. Nem adianta falar com funcionários judiciais porque não conseguem dar vazão a tanto trabalho, estão mal pagos e aliás têm falta de meios. Nem ao Observatório Permanente da Justiça Portuguesa porque está lá o Professor Boaventura e portanto o asneirol é garantido, e além do mais tem falta de meios. Nem aos juristas porque a AR está cheia deles, o ministério também, e os resultados são o que se vê.

Eu discursava pouco (para estas partes gagas institucionais podes – o tutear não é falta de respeito, é um privilégio da idade – despachar um ajudante, ele que diga qualquer coisa), ouvia muito, incluindo alguns estrangeirados, e arranjava um ou mais tribunais cujos magistrados e funcionários anuíssem à presença de empresas de organização e métodos que ao fim de certo tempo (bastante) produzissem um relatório. Não para fazer sangue. Para que quem tem o olhar virgem veja o que os mergulhados no lodaçal não veem. Depois ia meditar e discutir. E, é claro, aquelas empresas não poderiam ter sido enjorcadas há pouco tempo por um socialista dinâmico e as estrangeiras não seriam excluídas.

Isso chegava para reformar a Justiça? Não. Mas pior não ficava. E depois para fazer melhor que a longa teoria de ministros da Justiça que deixaram um rasto, no melhor dos casos, de inutilidade e, no pior, de reformas desastradas, basta pegar no objecto por outra ponta.

 

* Publicado no Observador

A propósito da condenação de Seixas da Costa

jpt, 27.09.22

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Seixas da Costa, à esquerda, e seu advogado no início do julgamento no Tribunal do Bolhão a 11 de março, fotografia de Artur Machado / Global Imagens

O antigo diplomata - e também bloguista - Francisco Seixas da Costa foi agora condenado por "difamação agravada" ao treinador de futebol Sérgio Conceição. É um tema interessante, que me toca bem de perto, o que me leva a este postal.  Em primeiro lugar, friso que nenhuma simpatia tenho pelo agora condenado: uma das minhas grandes amigas, hoje em dia já embaixadora, trabalhou sob a sua direcção e tece-lhe os maiores encómios, pessoais e profissionais. Mas não esqueço que ele foi um enérgico activista do socratismo, o que considero ser uma nódoa indelével na pessoa pública. Quanto ao queixoso, e por mais que me irritem os seus modos e, talvez acima de tudo, os seus sucessos, a minha costela futebolística impede-me de esquecer a enorme alegria que um dia ele me proporcionou, algo pelo qual ainda lhe estou reconhecido. Mas o que me convoca a atenção não é o que penso (ou sinto) sobre os intervenientes. É sobre o fundo da questão, e também sobre os trechos de retórica jurídica que os jornais ecoam. E pelo que me aviva a experiência própria.

Pelo que leio Seixas da Costa foi condenado por no Twitter ter chamado "javardo" a Conceição. Alguns pontos iniciais isso me levanta. Leio agora que o tribunal considera negativo que o tenha feito "não (...) durante um jogo no estádio; escreveu-a por trás de um computador, quando tinha tempo para refle[c]tir". Isto é uma extraordinária demonstração da superficialidade do pensamento dos juristas envolvidos (espero que isto não seja passível da instauração de um processo), pois significa que consideram menos gravoso o insulto público - em estádio - quantas vezes em interacção pessoal directa, e ainda mais vezes potencialmente indutor de comportamentos colectivos agressivos. verbais e até físicos, do que uma mera interjeição proferida na efectivamente vácua "nuvem" internética, desprovida de qualquer dimensão potencialmente causal. E sobre a efectiva inadmissibilidade das agressões verbais nos estádios de futebol botei eu neste meu postal "Viva o treinador adjunto de Sérgio Conceição": defendendo veementemente o treinador portista e sua equipa técnica e invectivando os "javardos" adeptos do meu Sporting. No qual disse, explicitamente, "não é legítimo (legal) ir a um local de trabalho insultar os trabalhadores. Como um campo de futebol." Parece que para os juristas do tribunal do Bolhão será...

Um segundo ponto sobre a retórica e o ponderar que foi exarado. O jornal cita "É diferente dizer que é grosseiro ou que é javardo. Podia ter dito tudo o que disse sem ter usado a expressão em causa. Aqui mostra-se a linha que não se deve ultrapassar.". Ora isto é inaceitável. Por mais que isto possa parecer adequado ao senso comum, o culto de um "bom gosto", de uma "boa educação", não é ao Estado - e ao seu sistema jurídico - que compete estipular as "fronteiras" da semântica adequada - e até um feroz estatista como o socialista Seixas da Costa concordará com isto.

Ou seja, nós podemos e até devemos ser sancionados se caluniarmos alguém, se errada ou malevolamente atribuirmos atitudes ou intenções a outrem. Mas estas reclamações jurídicas relativas a injúrias ou aquela nebulosa "difamação" são meras sobrevivências de outros tempos. Pois a proclamada "honra" (esse velho e reaccionário valor nobiliárquico) que a justiça afirma defender com estas condenações, não se coloca acima da fundamental liberdade de expressão, por formato mais deselegante que esta possa assumir - até porque, mas não só por isso, por vezes os termos mais "pesados", um léxico mais plebeu (lá está, a âncora sociológica das punições jurídicas) representam exactamente aquilo que sentimos ou pensamos. E por isso mesmo os acusados de "difamação" ou de "injúrias" que têm recursos económicos e paciência recorrem das sentenças que os vetustos tribunais portugueses exaram, vão de estrado em estrado endógeno e, depois, até Haia. E ganham. Claro que após anos a fio e, repito, de pesados encargos económicos e morais.

Esta notícia tocou-me pessoalmente pois há algum tempo fui alvo de um processo similar instaurado por um correligionário de Seixas da Costa. Ao tomar conhecimento do processo fiquei estupefacto. A minha advogada disse-me ali ter encontrado apenas "liberdade de expressão" mas logo me avisou ser evidente que eu iria ser acusado e condenado. E que poderia recorrer, processo que levaria anos em curso. Aconselhando-me a aceitar a culpabilidade. Assim, desprovido de recursos económicos para sustentar assistência jurídica e - confesso a custo - de coragem moral para enfrentar anos de embate jurídico, ainda por cima face a um dos próceres do regime socialista, anuí (lembro que com ridículas lágrimas de raiva nos olhos) a uma suspensão do processo, em troca de um pagamento, que foi ponderado em 200 euros a doar a uma instituição à escolha do tribunal.

A causa dessa punção que sofri foi este meu postal. Aceito, um texto algo desabrido, com termos ríspidos desnecessários - até porque significaram que "dei o flanco". Mas também por outra razão, pessoal - há alguns anos a minha filha, então ainda adolescente, coligou-se com a minha irmã, exigindo-me a depuração lexical no bloguismo, e disse-me com uma total pertinência: "ó pai, um cavalheiro não fala assim!". Haverá melhor argumento censor do que esta filial imagem do seu pai? É certo que há termos que ajudam a resumir o que pensamos, que bem substituem um parágrafo inteiro. E como me dizem palavroso - e ainda agora vizinhos me disseram isso a propósito de um texto sobre o café do bairro - muitas vezes tendo a socorrer-me dessa bengala sulfurosa. Mas convém utilizá-la com parcimónia e, acima de tudo, "cautela e caldos de galinha" enquanto a Justiça portuguesa não se actualizar. Ou seja, continuo a dizer que quem exerce funções governativas com impertinência, quem no parlamento confunde artistas com terroristas assassinos, e quem é solidário até à última instância com o problemático José Sócrates, não é agregável ao topo da hierarquia jurídica nacional. Mas, e repito-me mais uma vez (palavroso, dizem-me), face às concepções vigentes na Justiça nacional há que doirar a pílula verbal, evitar a tal adjectivação ácida.

Finalmente, e em suma, algo concordo com Seixas da Costa (malgré tout): às vezes pedir desculpas é demais. Chapeau...

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 17.07.22

Hoje assinala-se O Dia Mundial da Justiça Internacional

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"Também conhecida como Dia Internacional da Justiça ou Dia Internacional da Justiça Criminal, esta data lembra a importância dos tribunais no respeito pelos direitos humanos e na manutenção da igualdade dos direitos internacionais e civis em todo o mundo.

Este dia é escolhido para a comemoração pois a 17 de Julho de 1998 adoptou-se o Estatuto de Roma, o tratado que deu luz ao Tribunal Penal Internacional, responsável pelo julgamento dos crimes mais graves, incluindo genocídios e crimes de guerra.

É um dia especial para reflectir também sobre os esforços da comunidade internacional por um mundo mais pacífico e justo."

Justiça para todos. A justiça é uma mulher, mas poderia ser um homem que para não ser um vendido teria de estar vendado. A balança pesa a decisão e a espada impõe-a. Como as mulheres são mais ponderadas, Júpiter escolheu Iustitia para corrigir, punir e executar.

Justiça para todos. A justiça é uma das quatro virtudes cardinais e consiste na firme vontade de dar a todos o que lhes é devido.

Justiça para todos. Lamentavelmente a perversão do conceito e o contorno das leis fizeram da justiça a fraqueza da nossa sociedade e onde se lê justiça para todos, deveria ler-se justiça mal parada.

Os Mettalica é que têm razão.

 

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17 de Julho é O Dia Internacional do Gelado

"Copo ou cone? Isso é tudo o que precisamos saber. O Dia Internacional do Gelado, celebrado neste terceiro Domingo de Julho, oferece todos os sabores do menu para homenagear o dia! Há milhares de anos, as pessoas no Império Persa colocavam neve numa tigela, despejavam sumo de uva concentrado sobre ela, e comiam-na com deleite. Mesmo quando o tempo estava quente, saboreavam esta doce iguaria. O truque deles? Colocavam neve em câmaras subterrâneas conhecidas como yakchal, onde as temperaturas impediam que a neve derretesse. Os persas caminhavam até ao topo da montanha perto da sua capital de Verão para recolher a neve no cume.

Os chineses, sob a dinastia Tang por volta de 697 d.C., começaram a congelar lacticínios com sal e gelo. Mas não eram exactamente os sorvetes que hoje apreciamos. Nápoles terá sido o local de nascimento do primeiro gelado, creditado a Antonio Latini, que em 1642 criou um sorbet à base de leite."

O refrescante Gelado. Uma óptima sobremesa, um snack entre refeições ou apenas porque sabe bem. Eu adoro gelados. Os meus favoritos são morango e limão, com crepe, com bolo, com tarte... Gelado de limão com vodka e natas traz-me recordações felizes, de tempos em que um excesso moderado era divertido e até salutar. Numa noite de Armação de Pera, em que gastámos o stock de vodka da gelataria. Outros tempos, outros gelados.

 

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A 17 de Julho comemora-se O Dia Mundial do Emoji

Os emojis já fazem parte das nossas vidas, mas sabem o que significa, de onde vieram e por que hoje é o Dia Mundial do Emoji?

Emoji é palavra de origem japonesa, composta pela junção dos elementos e (imagem) e moji (letra). 

Os primeiros emojis surgiram no Japão na década de 1990, criados por Shigetaka Kurita, membro da principal empresa japonesa de telemóveis.

>Os emojis tornaram-se muito populares nas redes sociais e em comunicações de troca de mensagens instantâneas. O Dicionário Oxford elegeu emoji como palavra do ano em 2015.

Como diz o ditado popular, “uma imagem vale mais que mil palavras”.

Esta data foi escolhida pela Apple devido ao seu emoji de calendário, que exibe “17 JUL”. A maçã não escolheu o número por acaso: neste dia, em 2002, foi lançado o iCal, calendário da Apple."

Eu não percebo patavina de internetês. Para mim as siglas e as abreviaturas são indecifráveis. Sou aquele tipo de pessoa à qual é comum perguntar "Não percebeste? Queres que te faça um desenho?" Quero! Com a bonecada é tudo bem mais simples, e há um para cada estado de espírito. São simpáticos e basta olhar para perceber. Acredito que todos se parecem com alguém que conheço. O dos óculos escuros, por exemplo, faz-me lembrar um segurança, membrudo como um jogador de futebol americano e com o intelecto inversamente proporcional à postura.

(Imagens Dreamstime/Google)

Atenta a direitos, liberdades e garantias

Maria Lúcia Amaral

Pedro Correia, 29.06.22

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O Provedor de Justiça foi inovação introduzida na Constituição de 1976. Mas a eficácia desta instituição unipessoal depende muito das características de quem ocupa o cargo. Neste quase meio século, houve figuras que por ali passaram sem deixar rasto. Não é o caso de Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral, 65 anos, provedora desde Novembro de 2017.

Primeira mulher neste cargo, tem-se pronunciado várias vezes sobre diversos assuntos, sem recear controvérsia ou incompreensão do poder político. É a única forma de desempenhar com zelo e manifesta utilidade o papel atribuído a quem ocupa o 12.º lugar na lista de precedências das altas entidades públicas, tal como determina o protocolo do Estado.

 

Professora catedrática de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa e anterior juíza do Tribunal Constitucional (2007-2016), de que chegou a ser vice-presidente, Maria Lúcia Amaral esteve em foco nos últimos dias ao criticar o famigerado artigo 6.º da pomposa Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Se este artigo fosse aplicado, corríamos o sério risco de ver reintroduzida a censura oficial neste país que a suportou durante décadas. Desta vez de forma sonsa, mediante «selos de qualidade» atribuídos por «entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública» a pretexto do combate à desinformação.

Num pedido de apreciação da constitucionalidade desta lei – proposta pelo PS, secundada pelo PSD e votada em 2021 por unanimidade na Assembleia da República, indiferente às vozes críticas que já soavam – Lúcia Amaral alerta para a aparente «violação dos princípios da reserva de lei e da proporcionalidade na restrição da liberdade de expressão e informação». Lembrando esta evidência que passou despercebida a deputados habituados a votar sem ler o que aprovam: «A principal obrigação dos intervenientes estatais é abster-se de interferir e censurar, e garantir um ambiente favorável a um debate público inclusivo e pluralista.»

Apesar de o Tribunal Constitucional ainda não se ter pronunciado, há já sinais de que o PS está enfim disposto a rever o diploma.

 

A provedora agiu aqui em consonância com o Presidente da República, que já havia solicitado um parecer do TC sobre o tema. É sinal acrescido de que os direitos, liberdades e garantias estão salvaguardados por quem tem a missão institucional de zelar por eles. Na linha de outros recentes alertas de Lúcia Amaral – sobre a desprotecção social de trabalhadores independentes, a falta de apoio do Estado a pessoas forçadas ao isolamento profiláctico durante a pandemia ou a forma como são recolhidos e conservados os metadados pelas operadoras de telecomunicações.

Não por acaso, o número de participações de cidadãos à actual Provedora de Justiça tem sido o mais elevado desde a entrada em funcionamento deste órgão independente, eleito pela Assembleia da República mas por definição imune a pressões políticas. Indiciando que o sistema de freios e contrapesos – pedra angular de qualquer democracia liberal – é mais do que mera metáfora entre nós.

 

Texto publicado no semanário Novo.

E o Óscar vai para

Maria Dulce Fernandes, 01.06.22

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Depp vs Heard

O veredicto não foi uma vitória, mas foi uma conquista.

Não sou políticamente correcta. Não vou em modas. Fui seguindo o filme, conforme as notícias iam saindo. Mesmo sem tomar partidos, sempre me inclinei para o "lado dele". 

Há cinco ou seis anos a esta parte, este veredicto seria inconcebível, devido ao turbilhão de acusações e à caça às bruxas que se vivia.

Muitos intervenientes foram acusados de imundas práticas, impróprias e imorais, julgados e condenados. Eram inequivocamente culpados. Muitos outros foram com a maré, vítimas de vindictas pessoais e, mesmo sem qualquer tipo de acusação provada, ficaram com a vida estilhaçada. Este é provavelmente o caso mais mediático.

Disse quem viu as sessões de tribunal que passavam na TV ao vivo, na Law & Crime Network, que ambos se empenharam em actuações dignas de um Óscar.

Estou contente pelo Johnny Depp, que pode até não ser isento no lodaçal de toda aquela roupa suja, mas a Menina Heard nem sequer era coerente no seu discurso.

O veredicto pelo menos vingou muitos daqueles que arderam na fogueira das vinganças mentirosas que denegriram o verdadeiro feminismo, na sua essência e nas suas causas, revanches escondidas por detrás de um hashtag que apostou na notoriedade e não se preocupou com as consequências.

(Imagem do Google)

Portas que não se deviam abrir

José Meireles Graça, 20.04.22

Fernanda Câncio não sabe decerto (ai) quem sou, e menos conhece os meus escritos. Porque com certeza gostaria um pouquinho do que escrevi a propósito deste texto dela sobre a guerra na Ucrânia:

Durante anos a minha camarilha censurou-me a parcialidade a favor da ex-namorada de Sócrates e expelidora de fartos asneiróis em forma de opinião e eu hirto na minha consideração – ao que acham adversários ligo nada e ao que pensam correligionários pouco. Agora partilham-lhe um texto, por ser muito bom. Taiszaver? Eu já cá estava.

A minha consideração continua imperturbável mas a Fernanda regressou ao ordinário da missa, isto é, hoje levanta alto o facho da superioridade moral a propósito do racismo, nomeando-se protectora das minorias oprimidas, um clássico das seitas de esquerda, o que nem lhe fica mal, mas também harpia castigadora dos relapsos da opinião, o que não lhe vai bem. E diz:

“… uma coisa é a opinião que cada um tem, necessariamente livre, por mais repugnante, porque se trata de pensamento; outra a respectiva divulgação pública, em relação à qual pode, como no caso da discriminação e do incitamento ao ódio, aplicar-se o Código Penal”.

Mais claro não se pode ser: pensa lá o que quiseres mas se acreditas que a generalidade das mulheres conduz pior que a generalidade dos homens, ou que  a cultura cigana, ou de inúmeras sociedades muçulmanas, comporta aspectos que são incompatíveis com o acquis civilizacional do Ocidente, ou que os negros não têm qualquer direito a discriminações positivas a título de reparação pelos tortos que os nossos (dos brancos) bisavós infligiram aos deles; ou outra coisa qualquer que os guardiões das ideias boazinhas achem que é discriminação ou incitamento ao ódio: guarda lá essas ideias para ti, que o SOS Racismo, ou outra organização qualquer igualmente cheia de virtude (e, suponho, de subsídios) vela, queixa-se e estás feito ao bife, lá vais ter de contratar advogados e andar embrulhado em processos e julgamentos.

E quando em casa pensa bem antes de abrir a boca, que se a moda pega até mesmo em processos de divórcio litigioso já se está a ver o cônjuge queixoso: ai senhor juiz que ele (ou ela) estava sempre a falar dos pretos e dos ciganos, causou-me grandes danos psicológicos por causa do ódio e assim.

Porém, constata-se que não é impossível tropeçar num magistrado sensato que, para não mobilizar o atravancado sistema judicial com frescuras, despache:

“Qualquer opinião, ainda que tenha o conteúdo que o assistente [SOS Racismo] lhe atribui, não pode, assim, preencher a incriminação em análise neste processo (a do artº 240º), com vista a permitir a mais ampla expressão de pontos de vista sobre a vida pública. A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão (…)”.

Lapidar. Assim não o entenderam os senhores desembargadores, que mandaram regressar o assunto à base porque, dizem eles, “a adjectivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de ‘ciganos’ e ‘africanos’ apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de ‘crenças’, ‘códigos de honra’ e ‘valores’ moralmente superiores…”

Sucede que se não houvesse sociedades mais ou menos adiantadas em termos de estado civilizacional não seria sequer pensável qualquer ideia de progresso social. Enunciemos o óbvio: uma sociedade esclavagista é inferior a uma sociedade em que todos os cidadãos sejam iguais perante a lei; uma sociedade onde a fonte do exercício do poder não é o consentimento dos governados, ou onde este é condicionado pela ausência da liberdade de expressão das opiniões, é inferior a uma que não sofra dessas entorses; e é defensável que uma das fraquezas do Ocidente seja precisamente a desconfiança em relação aos seus valores que um simplismo acéfalo, quando não interesseiro, acha equivalentes a quaisquer outros.

Se Maria de Fátima Bonifácio, que agora se vê nestes assados, tivesse escrito que o cigano Ricardo Quaresma, por o ser, sofre destas e daquelas inferioridades, estaria a injuriá-lo, e cairia justamente sob os rigores do Código Penal. Mas se generalizou para uma comunidade imputações que quem com ela convive frequentemente subscreve, estará quando muito a ser injusta – não tendo nenhum autor, nem nenhum opinante, obrigação legal de ser justo. Precisamente o contrário do que entendem os senhores desembargadores, por não alcançarem que a porta que estão a abrir é o da choraminguice institucional e da litigiosidade americanizada – há ofensa sempre que alguém se sente ofendido.

De modo que, hoje, ódio sinto eu – aos senhores desembargadores. E discriminação também defendo, aliás duas, uma positiva e outra negativa: acho que eles, que estão numa instância superior, deviam ser despromovidos à inferior – é a negativa; e os magistrados judicial e do MP que tão bem entenderam o problema, a julgar pelas transcrições que dos respectivos despachos fez a abnegada Fernanda, é que deviam ir para a Relação – é a positiva.

Estado de Não-Direito

José Meireles Graça, 26.03.22

Sempre achei que às magistraturas não deveria ser permitido terem sindicatos porque não é possível a ninguém fazer uma partição no disco mental: sou completamente independente, devendo apenas obediência às leis e à minha consciência, parte A; vou ali discutir com quem tem o poder de me fixar vencimentos e regalias, e que posso ter de investigar e julgar, parte B. Como se casa a independência dos magistrados (passo em claro as distinções, aliás significativas, entre os judiciais e os do ministério público porque não é esse o escopo deste post) com os seus vencimentos, condições de trabalho e regalias é assunto de interesse público e eminentemente político, razão pela qual a interferência opinativa dos próprios interessados os faz automaticamente serem parte do jogo da política, o que os diminui.

Daí que encare quaisquer declarações de representantes sindicais com reserva mental, ainda que já tenha acontecido vê-los a dizerem coisas razoáveis. Comecei a ler esta entrevista preparado para a estopada que costuma ser decifrar o palavreado hermético que os próprios julgam que é inerente à condição de jurista e tropecei nisto:

“O PSD chegou a propor, na sua reforma da Justiça, a eliminação da obrigatoriedade de prestar uma caução para contestar execuções fiscais. A eliminação dessa obrigatoriedade faz sentido? Devemos reforçar os direitos dos contribuintes em sede de justiça tributária?
Compreendo que impugnar uma determinada decisão nos tribunais administrativos e fiscais seja um esforço incomportável para muitos contribuintes. Contudo, não penso que essa seja uma forma de resolver o problema. O que temos é de dotar a máquina administrativa e fiscal de maior agilidade. Sem isso, vamos continuar a problemas de celeridade e, em vez de ser o Estado a ficar com o dinheiro, ficará o contribuinte, sendo que, no caso de a impugnação vir a ser declarada improcedente mais tarde, poderemos ter problemas em executar esse mesmo contribuinte para que o Estado consiga arrecadar o imposto devido”.

Inacreditável. Se os senhores jornalistas, em vez de copiarem notícias das agências e entrevistarem famosos para o efeito de lhes perguntarem inanidades, ou, quando investigam, não procurassem histórias de faca e alguidar, ou ainda não abundassem na ventilação de suas preciosas opiniões, encontrariam sem dificuldade casos de pessoas e empresas cujos direitos foram espezinhados, quer porque não lhes foi reconhecido na prática o direito de acederem aos tribunais, quer porque obtiveram ganho de causa mas o esforço financeiro entretanto sofrido os destruiu.

O senhor magistrado sindicalista não se impressiona com isto. O que o impressiona é que, em caso de não ser dada razão ao impugnante, este já não tenha meios (por não ter mesmo ou por os ter posto ao fresco) para pagar. E isso, acha ele, não pode ser porque as empresas podem insolver, os credores ficarem a arder, os trabalhadores no desemprego, o contribuinte supostamente relapso arruinado, e tudo é tolerável – menos que o Estado deixe de cobrar.

É por estas e outras que a inversão do ónus da prova em processo fiscal, uma nódoa indelével no Estado de Direito, não comove excessivamente a profissão jurídica. Nem os cidadãos: a esmagadora maioria nunca foi vítima da Inquisição Fiscal, nem lhe conhece os processos, e julga decerto que sempre que há fumo há fogo – o senso comum é com frequência o outro nome da estupidez.

Há muitos ilícitos em que as penas de prisão podem ser substituídas por multa, mas nem por isso se entende que as regras e garantias do processo penal, nesses casos, devam ser aligeiradas.  Isto significa que o legislador acha que a privação da liberdade é, dentro de certos limites, comparável à privação de recursos. Excepto se a ofensa, mesmo que imaginária, for um dano financeiro do Estado – aí a privação de recursos já não precisa de processo nenhum digno desse nome. Faz, de certo modo, sentido: pilhar o cidadão está muito bem, sustentá-lo é que é escusado.

Precisamos do Estado de Direito para defender os fracos dos fortes. Destes, o mais perigoso é o Estado e as suas agências, e dentro destas o Fisco. A independência dos magistrados é necessária, precisamente, para que não tome o partido do forte e, no limite, se recuse a aplicar leis iníquas.

Adão Carvalho, de toda a evidência, acha que há aqui um problema, mas não lhe alcança a gravidade. Daí que, para o resolver, diga que é preciso dotar a máquina administrativa e fiscal de maior agilidade”. Extraordinário: podem continuar a atropelar, mas menos um bocadinho.

Não li o resto da entrevista.

Idólatras

jpt, 20.03.22

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A cada idólatra as suas idolatrias, terá de dizer qualquer idólatra da razão, se minimamente nesta mesmo crente e assim dela obrigatoriamente algo desiludido. E nisso fenece o espanto, substituído por um morno sorriso de tépida ironia, face a este envio da estátuta da virgem Maria para a Ucrânia, como se que a querer fazer do que lá se passa uma qualquer cruzada (mariana) ou mesmo um qualquer esclarecimento, empiricamente fundamentado, de um dos tais cele(b)rados segredos de Fátima. E face à (tão humana) pantomina nem me acorre, ateu que sigo, invocar alguma inadmissibilidade da guerra que tenha sido proferida em papado mais recente, pois argumento que decerto será apupado por exegetas mais belicosos e mais atreitos a exemplos da longa história dos santos padres...

Ou seja, nesta proto-vetusta idade já não sigo furibundo iconoclasta, encolho os ombros às patuscas leviandades alheias, ainda que sabendo-as nada despiciendas, de poluentes que são. Mas não será isso que funda uma neutralidade face às crendices. Pois que se envie, com tonitruante eco, este ídolo para afrontar o demo russo muito significa do pateta estado de alguma lusa pátria. Mas não do Estado pátrio.

Mas sobre este, e das idolatrias que promove, isso já será outro assunto e bem mais grave. Pois que o Estado suspenda o ónus sobre a idolatria nazi e a panóplia de crimes e abominações intelectuais que lhe são concomitantes, e nisso de facto envie à Ucrânia - qual simbólica escolta da estatueta - o líder dos nada patuscos nazis portugueses, demonstra um estado do Estado totalmente inadmissível. 

E sendo inadmissível é necessário a ele obstar. Ou seja, identificar o juiz que isto promoveu. E retirar-lhe responsabilidades. Sem qualquer hesitação. Pois é ele um idólatra abjecto.

O Segredo de Justiça e a CMTV

jpt, 19.01.22

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(Ante)Ontem, já noite adulta, fui ver em diferido o grande colóquio eleitoral ("a nove"). Nessa rota cruzei a CMTV onde reinava um painel de futebol e vi um sumarento rodapé sobre o "Cartão Vermelho", um processo de investigações judiciais sobre o Benfica que está em voga. Prossegui na demanda da cidadania eleitora mas resguardei a apetência clubística para ali regressar. 

Do debate retirei dois galardoados: a medalha de prata foi para João Cotrim de Figureiredo (IL). Talvez devido a algum viés meu, mas quero crer que não só por isso. Pois o candidato foi esclarecedor na sua apresentação e incisivo nas suas críticas, sublinhadas por uma saudável rusticidade na forma como afrontou o incumbente António Costa. Mas o grande vencedor, arrecadando a medalha de ouro da noite, foi Rui Tavares (LIVRE), de longe aquele que mais terá sossegado os seus eleitores e até a outros atraído. Pois Figueiredo havia, nas suas duas primeiras intervenções, utilizado uma sarcástica confrontação com Costa, ao solidarizar-se com o moderador Daniel, dado não se ter dignado o primeiro-ministro a responder-lhe às perguntas que este lhe colocara. E logo de imediato Tavares, assumindo sem rodeios as presumíveis dores de Costa, contra-atacou o dirigente da IL utilizando a mesma formulação, assim esvaziando-lhe a eficácia de qualquer continuidade estilística. Demonstrando assim a todo o país e, em especial, ao seu putativo eleitorado a sua disponibilidade para ombrear com o PS e também a sua competência e o seu afã como guarda-costa retórico, e assim político, do secretário-geral socialista.

Ainda assim, mesmo que amputado dessa sua específica artimanha,  Figueiredo ainda logrou outro sucesso ao aflorar o tópico da "maioria absoluta" como garante da almejada, porque sacrossanta, "estabilidade". Costa havia invocado o presidente Sousa como caução de futuras boas práticas socialistas se vier a conseguir esse objectivo eleitoral (o qual julgo muito plausível). Nesta sua investida o representante da IL lembrou, implicitamente, que a degenerescência da ideia de "maioria absoluta" nos foi legada pelo consulado de José Sócrates. E explicitou que no final desse período - sob a tal maculada maioria absoluta, prenhe de más condutas pessoais, arrombamentos do sistema financeiro, afrontas à liberdade de imprensa, tenazes sobre o poder judicial e, talvez acima de tudo, um enorme desplante colectivo -, exactamente nas vésperas do início de processo de "ajustamento estrutural "(sob instruções conjuntas de Bretton Woods e de Bruxelas), aconteceu o 16º congresso do PS. No qual triunfou a moção encabeçada por Sócrates, a qual fora delineada e capitaneada por António Costa. Assim lembrou aos eleitores o quão falsária é a "narrativa" vigente, a de que já in illo tempore Costa se havia apartado do socratismo, ao exilar-se nos Paços do Concelho lisboeta. O que de facto não acontecera, tal como o seu partido não o fizera, como o comprovam os resultados daquele congresso - em que Sócrates foi reconduzido por uns esmagadores 93,3% dos delegados -, e é escarrapachado no montante de membros de governo e seus assessores dos últimos seis anos, bem como de actuais (euro)deputados, que foram fiéis agentes do poder socratista.

Recordo tudo isto porque me lembro não só das incontáveis negações das evidentes aleivosias socialistas daquele período, então produzidas por políticos e fazedores de opinião, estes quantas vezes atribuindo tais indignações dos cidadãos a "ressabiamento" da "direita" (termo que nesse recente então era entendido como sinónimo de "extrema-direita", aliás "fascismo") e a "campanhas" (até "cabalas") urdidas por esconsos interesses malevolentes. Mas memória ainda mais interessante é a do acontecido após a explosão do processo judicial intentado contra Sócrates. Face ao transbordo, de facto civicamente inaceitável, das transcrições de escutas telefónicas para as páginas dos jornais - estes assim dolosamente tornados em receptadores de bens roubados - houve um demorado e veemente coro de reclamações socialistas, indignados com a violação do "segredo de justiça", exigindo até uma luta contra alguma volúpia dita populista, adepta da "república de juízes".

Enfim, enquanto me deixei eu vogar nestas tão recentes memórias, acabou-se o debate entre os nove dirigentes partidários. Fui então ao diferido da CMTV, onde vigorava o painel futebolístico - composto por uma moderadora que julgo filha do grande Rui Águas, pelo antigo jogador José Calado, por um painelista de agressivo ímpeto e carregado sotaque portuense e pelo deputado socialista Pinotes Batista. O debate era interessante, pois demonstrativo da estratégia comercial da estação para potenciar as audiências: durante o longo programa foram sendo enunciados nacos das transcrições das escutas telefónicas a dirigentes do Benfica. E cada revelação era acompanhada do anúncio de que outra viria a ser apresentada durante aquele programa, tendo o último desses três episódios sido acompanhado com a primeira página do jornal "Correio da Manhã" do dia seguinte, ali publicitado como contendo todo o conteúdo das conversas telefónicas que se referiram àquele último assunto. 

Concordando eu com escutas telefónicas como auxiliares de investigações judiciais, interrogo-me sobre a pertinência da gravação de conversas excêntricas às matérias em causa e, ainda mais, à transcrição destas. E é evidente que há crime no seu transbordo para fora do âmbito judicial e dolo na sua utilização comercial. Neste âmbito sempre se defende a imprensa - e assim o fez no "caso Sócrates" - invocando um superior "interesse público", o qual justificará a violação do basilar "segredo de justiça". Ainda assim tenho algumas dúvidas sobre se o tal "interesse público" nacional inclui saber-se se um funcionário do Benfica chama a outro "bufo do balneário", se um antigo  presidente do Benfica trata um futuro funcionário do clube como "artista" ou se um vice-presidente do clube discorda da contratação de um jogador de futebol antes de lhe serem feitos exaustivos exames médicos. Enfim, ainda que leigo em matérias de ciências jurídicas, parece-me que isto é uma escandalosa violação do "segredo de justiça" com meros intuitos comerciais e totalmente desprovida de qualquer "interesse público".

É então interessante que nenhum dos próceres socialistas nem algum dos seus correligionários opinadores, surja agora discordando destas violações. Mas ainda mais interessante é assistir-se - em pleno período de eleitoral - a um deputado socialista totalmente embrenhado nisto. Pois Pinotes Batista - que presumo ser remunerado nesta sua actividade, ainda que aceite a hipótese de que cumpra em regime pro bono essa tarefa a tempo parcial de comentador futebolístico em estação televisiva comercial - comenta todas aquelas violações do "segredo de justiça" com enfático entusiasmo e minucioso detalhe. E nada se ouve sobre esta mais-do-que-aparente contradição política e moral entre a postura de cidadania exigível a um deputado e o rasteiro e imoral atropelo das regras legais e do sentir democrático. Nem do seu secretário-geral, nem do presidente ou de algum órgão disciplinar (ou "deontológico") do seu partido. Pois decerto que aceitarão como relevante o facto do homem ser "anunciado na tv", os ganhos de visibilidade nisto de ser comentadeiro da bola. Note-se mesmo, nem a secretária-geral adjunta do PS, que encabeça a lista por Setúbal na qual Pinotes Batista consta em lugar certamente elegível, se incomoda com um dislate destes.

Porque é este o pessoal político do PS, entre o qual predomina este "vale (quase) tudo" desde que dê "jeito". E o qual se prepara para vencer com uma enorme maioria, talvez até absoluta. E que neste seu "jeito" governará. Olhando para o passado recente, recordo que João Galamba, apenas conhecido pelo seu veemente afã no negacionismo das aleivosias socratistas, ascendeu à tutela estatal das concessões mineiras. E sob esse paradigma nada me surpreenderei se ainda viermos a ver este Pinotes Batista no Ministério da Justiça... 

Temos uma vantagem. É que já estamos habituados, e pelos vistos satisfeitos, com esta cepa torta.

Pôr as coisas em perspectiva

beatriz j a, 23.12.21

 

Voltou a falar-se muito da inépcia da justiça a propósito da prisão cinematográfica de Rendeiro e da prisão tardia de Pinho. Por entre as muitas críticas que se fazem à justiça -os preços absurdos que a afastam do cidadão comum, a interpretação da lei que permite aos acusados escapar-se-lhe com a interposição infindável de recursos, a promiscuidade com o poder político- há uma que me parece não levar em conta a evolução da ciência e da tecnologia. Falo da lentidão da justiça.

Hoje em dia o processo da prova é muito mais complexo do que era há vinte anos, quando pouco mais havia que a testemunha, alguns testes imprecisos e alguns documentos. Agora existem perícias científicas de toda a ordem: médicas, químicas, balísticas, métricas, genéticas, de vídeo, de áudio e um ror de outras que eu nem sei porque não conheço a justiça pelo lado do forro, por assim dizer. Para não falar da complexidade da própria legislação. Essas perícias mobilizam pessoas de várias instituições, cada uma e todas elas com as suas burocracias a cumprir. 

Sabendo nós que as instituições públicas estão em processo de desfalque de recursos humanos, parece-me inevitável que todos estes factores tenham influência no tempo que leva a finalizar-se um caso judicial. A vantagem, no entanto, é haver maior rigor nos processos e cometerem-se menos erros, nomeadamente erros que atiram para a cadeia pessoas inocentes - no passado isso devia ser comum e, se fizessem cá a revisão de processos como fazem nos EUA e em Inglaterra, acredito que assistiríamos ao que vemos passar-se lá que é libertarem-se pessoas ao fim de dez, quinze, vinte ou mais anos, por erros judiciais. Esses erros, apesar de tudo, são piores que os seus contrários, aqueles que deixam fugir os Rendeiros. 

 

(texto também publicado no blog, Azul)

Defraudado e desapontado

Paulo Sousa, 13.12.21

As horas de transmissão da série televisiva Covid-19, vamos agora na temporada Ómicron, foram ontem de manhã seriamente abaladas.

O ex-banqueiro foragido à justiça João Rendeiro foi apanhado pela polícia sul-africana num resort de luxo.

A história tinha ingredientes de natureza diversa que lhe asseguravam espessura para estarmos perante um bom romance. Começando pela ascensão social e financeira da figura, até à sua fuga planeada com o rigor que se encontra apenas nos filmes mais realistas, passando claro pela implosão do seu banco, a revelação das suas burlas artísticas e sem faltarem as contradições entre a frieza do crime financeiro e a melosa paixão pelas três cadelas deixadas para trás a tomar conta da esposa. Tinha quase tudo para ser uma boa história. Claro que se dispensava bem o longo compasso de espera provocado pela sempre demorada e aborrecida justiça portuguesa, mas tudo o resto era muito bom.

Ficamos a saber que afinal, tal como nos filmes, a polícia consegue mesmo seguir o rasto dos pagamentos feitos com meios electrónicos. Se Rendeiro dedicasse algum tempo à filmografia de acção já saberia que devia ter outros cuidados e mais imaginação.

Num filme razoavelmente verosímil o ex-banqueiro agora fugitivo nunca teria sido apanhado sem primeiro obrigar a polícia sul-africana a uma perseguição automóvel pela baixa de Durban, com direito a carros destruídos às voltas pelos ares.

Mas para desmentir definitivamente a teoria da treta que afirma que a realidade ultrapassa a ficção, soubemos que a personagem principal da história foi apanhada de pijama e que se mostrou surpreendido.

Estes últimos detalhes revelam um deprimente desmazelo do romancista. O guião, que chegara a ser promissor, neste ponto já estava a caminho de ser arrastado para aquele cesto dos papéis no canto do écran. O que é que que podia ser mais infantil do que isto?

Mas para arrematar o afundanço, ainda faltava a cereja no topo do bolo. Então não é que o João de Portugal, viajante individual, logo depois de torrar uma boa maquia num programa de encriptação topo de gama, não resistiu em avaliar a sua experiência no Forest Manor Boutique Guesthouse?

Que saudades do Duarte e Companhia. Aquilo é que eram histórias bem apanhadas.

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Eraser

João Sousa, 09.04.21

À mesmíssima hora em que o juiz Ivo Rosa falava ao país, o canal Hollywood transmitia este filme:

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Isto não se inventa!

(Eraser é um título esquecível da filmografia schwarzeneggeriana. Tecnicamente competente mas sem grande rasgo e com apenas um par de one-liners razoáveis, penso que o filme já evidenciava o esgotamento de uma fórmula que tão bem funcionara durante anos. Apesar disso, ficção por ficção, preferi ficar a assistir à do bom velho Arnie.)

Os recados não verbais de um juiz

Paulo Sousa, 09.04.21

No dia 21 de Novembro de 2014 José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa à chegada de Paris.

Desde 2006, Carlos Alexandre era o único juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, e em Setembro de 2015 passou a ter a companhia do juiz Ivo Rosa.

Pouco depois, o sorteio do juiz que iria decidir se o caso Marquês avançava ou não para julgamento, foi pela primeira vez notícia. Nunca, que me lembre, o sorteio da atribuição de um processo a um ou outro juiz tinha sido noticiado, mas isso aconteceu também nesta sequência de eventos. Ivo Rosa foi o escolhido à quarta repetição do sorteio.

Para quem acredita nas instituições, as eventuais dúvidas levantadas por esta notícia, não eram mais que uma rebuscada tentativa de abalar uma eventual absolvição. Por outro lado, quem conhece o sistema por dentro mostra acreditar que a escolha do juiz que avalia o processo nesta fase pode ser determinante.

Nas conversas de café de hoje, dos que têm esplanada é claro, a recente decisão de Ivo Rosa não é mais do que o sistema a defender os seus. Estranho é que não haja rede social que não lembre que o vencedor do dia foi o André anti-sistema Ventura. Eu também acho que ele não vai perder uma oportunidade de fazer o boneco.

Para os que lamentam que as instituições do país, e do regime vigente, não sejam mais sólidas, Ivo Rosa envia a mensagem abaixo.

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(In)Justiça

José Meireles Graça, 17.01.21

Pedro Arroja foi em tempos alvo de uma queixa-crime por difamação (ou injúrias, já não recordo bem) por causa de umas coisas relativamente inócuas que disse sobre, salvo erro, o político Rangel. Processo esse que acabará possivelmente no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e com a condenação, tão habitual que já ninguém fica escandalizado, do Estado Português. Quem tiver curiosidade pode encontrar a história no seu blogue Portugal Contemporâneo, enterrada muito lá para trás, que Arroja escreve quase todos os dias, e quase sempre sobre o nosso sistema de Justiça.

Escreve com liberdade e coragem, que é mais do que se pode dizer sobre a quase totalidade dos escreventes, na blogosfera e fora dela. Liberdade porque não se importa de sustentar teses inteiramente originais; e coragem porque diz o que lhe vai na alma e na cabeça sobre as magistraturas, em particular a do ministério público, isto quando os membros deste último não estão habituados a que se lhes contestem as práticas e dispõem de um poder largamente não sindicado.

Não subscrevo boa parte do que diz (acho muito discutível que o Ministério Público seja herdeiro da Inquisição, por exemplo) nem, muito menos, acharia prudente que, como sucede em muitos países, este dependesse hierarquicamente do Governo ou sequer do Procurador-Geral (neste último caso apenas no que toca a decisões concretas nos processos).

Basta lembrarmo-nos do processo Sócrates, o qual, presumivelmente, nunca teria sido indiciado se houvesse dependência do ministério da Justiça.

Porém, alguma coisa terá de ser feita, não rumo a um sistema perfeito – não existe – mas para pôr a Justiça a funcionar de forma minimamente satisfatória. Não é razoável que um primeiro-ministro que esteve preso preventivamente quase um ano, a benefício de não interferir na investigação, ainda não tenha sido julgado seis anos mais tarde; que qualquer pessoa acusada pelo MP veja a sua vida arrasada, como sucedeu com o ex-ministro Miguel Macedo, sem que os magistrados que o acusaram sofram qualquer sanção disciplinar, não obstante terem sido criticados na sentença absolutória; que as taxas de sucesso das acusações sejam ridículas, o que revela ou incompetência ou encarniçamento acusatório; e que Portugal seja com tanta frequência condenado no TEDH, não obstante o Gólgota para lá chegar, o que quer dizer que inúmeras acusações e condenações foram injustas e a injustiça se manteve por falta de recursos e/ou teimosia dos réus.

E não se me venha dizer que estes assuntos são demasiado técnicos e herméticos, e portanto requerem professores de Direito, sindicatos de magistrados (cuja existência não deveria sequer ser permitida, por o Poder Judicial não dever ao mesmo tempo ser independente e comportar-se, nas suas reivindicações, como uma corporação de metalúrgicos ou amanuenses de ministério), os próprios magistrados, funcionários dos tribunais e advogados. Porque toda esta gente é responsável pelo estado calamitoso da Justiça, e passa culpas daqui para ali e, sobretudo, para o legislador. De modo que do que precisamos é de leigos – menos treta e mais sentido prático.

Por hoje, não é bem disto que quero falar, mas da última clamorosa asneira do MP, cuja história está contada, por exemplo, aqui. Uma magistrada de nome Andrea Marques decidiu mandar seguir dois jornalistas (e espiolhar as contas de um deles) no âmbito do processo e-Toupeira (moscambilhas do futebol), e isto porque queria saber quem os informou da detenção do assessor jurídico do Benfica e das suspeitas que incidiam sobre um polícia da PJ, presumido bufo.

Caiu o Carmo e a Trindade, os jornalistas e o seu sindicato abespinharam-se e todo o cão e gato zurziu na magistrada e na sua “chefe”. Esta, a chefe, veio declarar que “é tudo legal, tudo legal. Vocês seguem-nos e isso é possível. Então nós não podemos seguir jornalistas na via pública? Não é nas vossas casas, pois não?"

Fantástico: a magistrada acha que seguir jornalistas por suspeita do “crime” de divulgarem notícias verdadeiras é legítimo. E não se pergunta a si mesma se a liberdade de informação, que é um valor estruturante da democracia, não sairia prejudicada se a divulgação fosse considerada um crime em si sob pretexto de prejudicar a eficácia da investigação. A qual eficácia tem, como deveria ser óbvio, de ser assegurada por quem investiga, e não por quem tem outra profissão, que é a de dar notícias. E nem vale a pena falar da salvaguarda de reputações ofendidas (a outra razão para a existência do segredo de justiça): a detenção já é ofensa bastante, o segredo dela agrava o opróbrio e o risco de abusiva, não o diminui; e o que prejudica os arguidos (ou réus, parece que agora é assim que se designam) é sobretudo a lentidão, não a exposição pública que nas sociedades abertas pertence ao rol dos inconvenientes inevitáveis. Acresce que o que fazem os juízes é público, ao menos na fase de julgamento, maxime na sentença, e podemos razoavelmente presumir que não fiquem particularmente satisfeitos consigo mesmos por ver uma decisão anulada em sede de recurso. No MP os mecanismos de incentivo ao brio profissional talvez existam, mas eu, que sou razoavelmente informado, não os conheço. E deveria porque o instituto serve o povo, e não a si mesmo.

A Procuradoria-Geral abriu um inquérito, que dará em nada: é prata da casa a investigar prata da casa. E, parece, o pano de fundo desta lamentável história é uma guerra entre o MP e a PJ.

É para mim evidente que o MP não deveria investigar coisa alguma, tarefa policial para a qual não se percebe que qualificações ou experiência tem; e que, portanto, se deveria limitar a acusar quando ache que há razões para uma provável condenação, mandar a polícia bugiar no caso contrário e, eventualmente, denunciar inoperâncias de que tenha conhecimento no trabalho policial. Agora, guerras? Uns e outros são empregados da comunidade que lhes paga. E o que lhes garante este diletantismo das querelas intestinas é a impunidade.

Alguma coisa de bom poderia sair daqui. Mas não vai porque, ó deuses, há quem ache que o que a magistrada abusadora fez é perfeitamente razoável.

Qual é o truque do raciocínio? É considerar que o mensageiro e a mensagem são a mesma coisa; e que, se se impedir a publicação de notícias obtidas por ínvios processos, ficaria garantida a impossibilidade da prática do crime de violação do segredo de justiça.

Ficaria, de facto. E ficaria também dificultada a exigência de que certos crimes sejam perseguidos, porque ficava aberta a porta para que as investigações fossem sustadas; desapareceria o incentivo para o MP ter o pouco escrutínio que tem; e ficava a comunicação social reduzida a ser o altifalante das proclamações das autoridades judiciais e policiais.

Não tenho uma excessiva consideração pelas opiniões de Vital Moreira, cujo sol já foi Moscovo e é hoje Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt; e não me impressiona a sua condição de constitucionalista, por partilhar com outros, que todavia têm opiniões opostas, a peremptoriedade e a suficiência. Mas talvez não perdesse nada, já que conhece a Constituição de trás para a frente, em dedicar-se a estudar a jurisprudência do TEDH. Sempre tem a sede na segunda daquelas cidades.