Onde a queda é um frame cinematográfico; estar bem é um imperativo; comunicar é pouco; a destruição pode ser um quadro perfeito; 36 é capaz de ser 40; a festa é o que uma festa deve ser; as visões podem ser limitativas; a emoção é deficiente; a imaginação é um truque; o diálogo verdadeiro se dá;
Carlota deixou-se ficar apoiada a Martim. Havia uma familiaridade quase estranha no rosto daquele homem, ele que lhe pegava na perna, examinando a ferida no joelho como se fosse um médico. Era um frame de um filme mau, cocktails ao fundo, vestidos e pessoas aprumadas a passar por eles, quase invisíveis, desleixados, coitados. Iriam perder a festa. Carlota não ligara a Jaime, não avisara. Estava a ver o seu interlocutor e nem sequer o ouvia, tentava entender-lhe o corpo.
Carlota percebeu, nas redes sociais, que o irmão estava envolvido na festa, a festa onde Jaime iria. Decidiu-se sem ponderar, algo não habitual na sua conduta. Pensar, pensar em demasia, era um dos seus problemas. A avó tinha-lho dito, Jaime também, até Carlota, a traidora. Refez o pensamento, Carlota não a traíra. Fora almoçar com Jaime. Mais nada. Pois não? Chegou à festa com esses pensamentos sem sentido, sabendo que não tinha convite para apresentar. Não se importava muito com o constrangimento desse pormenor. Considerava o cabelo, o vestido e se o batom teria escorrido para os dentes. Queria estar bem. Era imperativo estar bem.
Primeiro viu Martim. O irmão, inconfundível, na altura, na estrutura. Um homem que podia quase tudo, uma ilha poderosa capaz de aguentar todas as tormentas apenas por o ter decidido quando era ainda um adolescente. A vida ser-lhe-ia fácil, era a opção tomada, mesmo que a família desaprovasse. A família contava pouco para Martim. Carlota apercebeu-se, subitamente, de que o irmão tinha alguns cabelos brancos, e que ela não o via desde a morte da avó. O facto de estar de relações cortadas com o pai de ambos facilitava a falta de comunicação. A mãe dissera a Carlota, ao telefone:
É melhor assim. O teu irmão é difícil. Às vezes, comunicamos tanto para dizer tão pouco, escusamos de fazer esse esforço. Somos só três no Natal.
Depois, em segundos – tudo decorreu em segundos -, Carmen viu Carlota sentada na beira do passeio, o joelho ensanguentado, as calças rasgadas, o cabelo esticado, os lábios vermelhos, perfeita na sua destruição. Podia ter ficado dentro do carro, segura, calada, sem dar nota de nada. Em vez disso, viu-se a caminho, a dizer:
Carlota? Martim! Está tudo bem?
A festa estava ao rubro. Martim fizera a sua magia. Carlota já tinha uma saia haute couture, preta, com laivos de cinzento, compondo uma figura muito mais elegante. Ele sabia quase tudo. Carmen assistira impávida ao telefonema dele:
Preciso de uma saia... Não, preta, pode ser a preta e cinza prata, veja só se é número 36 ou 38.
Carmen ainda esteve quase a dizer que Carlota é uma falsa magra, seria sempre um 38 ou 40, mas deixou-se ficar calada, a mão da amiga na sua, um som ligeiro de um telemóvel a vibrar dentro da clutch abandonada. Martim estava decidido a entrar com aquela mulher na festa mais badalada de Lisboa. Ao telemóvel, o irmão de Carlota era um homem feliz com uma missão, competente, com bom ar. Um ministro passou perto dele e apertaram as mãos. Carlota questionou Carmen com um olhar. Carmen nada disse, nem sobre a saia, nem sobre o ministro ou sobre o irmão. Estava calada. Por dentro e por fora....
Tudo aconteceu relativamente depressa. Carmen não se recorda dos pormenores que hoje a ajudariam a descodificar a situação. Estava sentada numa mesa de canto, a festa estava ao rubro. O dj fazia a sua encenação e era mais importante observá-lo do que dançar. Martim enfeitiçado por Carlota, ela impecável na sua saia que tapava o joelho ferido; ele capaz de falar, de rir das próprias piadas e ignorar a irmã.
Jaime, com um copo na mão, descobriu-os naquele canto depois de varrer a sala à procura da sua suposta acompanhante. Viu Carmen com espanto e depois receio e depois com imensa coragem. Era só uma ex-namorada, dizia o néon exposto em cima da sua cabeça. Jaime considerou a quem falar primeiro: a Carmen que o olhava de forma impossível de classificar; Carlota que se ria de forma quase obscena para um homem demasiado próximo do corpo dela, o corpo dela que ocupava, decerto, os sonhos de outros tantos homens?
A questão ficou resolvida por Paulo que, no seu fato-envelope-armadura surgiu como que por magia. Uma enchente de gente obrigava a movimentos involuntários e Paulo ficou perto de Carmen, ajeitou os óculos, reconheceria aquele rosto em qualquer lado, aquela cicatriz andante, uma deficiente emocional. Não reparou em Carlota ou em Martim, menos ainda em Jaime. O irmão ficou a vê-lo ao longe.
Paulo beijou Carmen numa única face, um gesto que Jaime sabia que a irritava; Carmen era o tipo de mulher que fora educada no sentido de dar dois beijos. Mesmo que para o ar. Paulo disse qualquer coisa. Jaime imaginou o diálogo impossível:
Carmen. Que bom ver-te.
Olá, Paulo. Como estás?
Viste o meu irmão?
Não, não vi.
Carmen a olhá-lo, como alguém especial, alguém com poderes reais, o olhar a queimar-lhe a pele e Jaime a abandonar a festa.
Carmen...
Paulo.
Estranho encontrar-te aqui.
Sim, não é um sítio onde uma pessoa como eu pudesse estar.
Não sejas irónica.
Porquê? Tens alguma coisa contra a ironia?
Não... É cansativo.
Cansativo é viver com o teu fantasma.
Ah, então eu sou responsável pelo fim da tua relação com o Jaime?
Tu és o macho alfa.
Tu não sabes o que dizes.
Pois, parece que não.