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Delito de Opinião

...

Patrícia Reis, 10.11.15

 

Onde, de repente, Carlota se vê a receber um Oscar; o filme continua; a festa também se faz com silêncios;  o ódio é garantido; há impossíveis

 

Carlota cumprimentou Paulo com pouco à-vontade. Gostaria que desaparecessem, ele e a Carlota, tão idiotamente serena. Preferia não ver o Jaime, ficar ali com o Martim e perceber que a vida podia ser mais parecida com um automóvel de corrida. A metáfora era apropriada. Martim tinha esse jeito de carro desportivo. Rápido, dinâmico, bom design, solidez e modernidade. Uma cambada de clichés, é certo, porém Carlota estava como que presa a tudo aquilo e, se de repente, ele tivesse uma arma e começasse aos tiros para a salvar, seria apenas mais uma banalidade.

 

Martim, por seu turno, ciente de ter um palco só para si, um palco limpo de histórias para trás -  Carlota nem fazia ideia que era irmão de Carmen -, sentia-se a tecer as malhas da sedução com eficácia. Era o tipo de homem que conseguia perceber o efeito que tinha nas pessoas. Algumas mulheres eram imunes ao seu charme, em especial as mais pragmáticas. Carlota queria viver uma aventura com uma dose de perigo e, talvez por isso, ignorou a irmã e o cavalheiro ao seu lado, pegou na mão da sua donzela resgatada e encaminhou-se para as casas de banho. Carlota deixou-se levar e Carmen ficou a ver.

 

O silêncio entre eles tinha mais impacto do que o som alto do hip-hop. Como se Carmen e Paulo estivessem num casulo. Jaime não iria aparecer, disso tinha ela a certeza. Vira-o, encara-o com a calma de desafio ganho e ele esfumara-se entre os que dançavam e os outros que tentavam falar e, por isso, eram obrigados a gritar. Olhou para Paulo na certeza de compreender na totalidade o seu desconforto.

 

Carmen disse:

 

E se fossemos beber um copo a outro sítio?

Nós?

Sim. O teu irmão não vai aparecer.

E tu queres ir beber um copo comigo?

Sim. Não gostas de mim. Eu não gosto de ti. Não há perigo.

 

Paulo riu. Não conseguiu evitar. Carmen estava já de pé e mostrava as chaves do carro.  

 

Jaime saíra da festa há algum tempo. Tinha ficado sentado dentro do carro a ver as pessoas a circular. Gostaria de ter festejado mais o facto espantoso de ter sido promovido. Sentia-se menos mal por ter falado com os seus colegas e patrões, logo no início. Mostrara a cara, era a conclusão. O divertimento que se prometera falhara ao ver Carmen com o irmão. A vida não seria nunca uma dedução óbvia. Devia ter estado mais atento às aulas de lógica? Pensava nisto, sem grande ordem, quando viu o corpo do irmão entrar dentro de um carro que conhecia de sobremaneira. Não havia impossíveis e Jaime acabara de testemunhar um impossível. Estava escrito.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 03.11.15

 

Onde a queda é um frame cinematográfico; estar bem é um imperativo; comunicar é pouco;  a destruição pode ser um quadro perfeito; 36 é capaz de ser 40;  a festa é o que uma festa deve ser; as visões podem ser limitativas; a emoção é deficiente; a imaginação é um truque; o diálogo verdadeiro se dá;

 

Carlota deixou-se ficar apoiada a Martim. Havia uma familiaridade quase estranha no rosto daquele homem, ele que lhe pegava na perna, examinando a ferida no joelho como se fosse um médico. Era um frame de um filme mau, cocktails ao fundo, vestidos e pessoas aprumadas a passar por eles, quase invisíveis, desleixados, coitados. Iriam perder a festa. Carlota não ligara a Jaime, não avisara. Estava a ver o seu interlocutor e nem sequer o ouvia, tentava entender-lhe o corpo.

 

Carlota percebeu, nas redes sociais, que o irmão estava envolvido na festa, a festa onde Jaime iria. Decidiu-se sem ponderar, algo não habitual na sua conduta. Pensar, pensar em demasia, era um dos seus problemas. A avó tinha-lho dito, Jaime também, até Carlota, a traidora. Refez o pensamento, Carlota não a traíra. Fora almoçar com Jaime. Mais nada. Pois não? Chegou à festa com esses pensamentos sem sentido, sabendo que não tinha convite para apresentar. Não se importava muito com o constrangimento desse pormenor. Considerava o cabelo, o vestido e se o batom teria escorrido para os dentes. Queria estar bem. Era imperativo estar bem.

 

Primeiro viu Martim. O irmão, inconfundível, na altura, na estrutura. Um homem que podia quase tudo, uma ilha poderosa capaz de aguentar todas as tormentas apenas por o ter decidido quando era ainda um adolescente. A vida ser-lhe-ia fácil, era a opção tomada, mesmo que a família desaprovasse. A família contava pouco para Martim. Carlota apercebeu-se, subitamente, de que o irmão tinha alguns cabelos brancos, e ​que ela ​não o via desde a morte da avó. O facto de estar de relações cortadas com o pai de ambos facilitava a falta de comunicação. A mãe dissera a Carlota, ao telefone:

 

É melhor assim. O teu irmão é difícil. Às vezes, comunicamos tanto para dizer tão pouco, escusamos de fazer esse esforço. Somos só três no Natal.

 

Depois, em segundos – tudo decorreu em segundos -, Carmen viu Carlota sentada na beira do passeio, o joelho ensanguentado, as calças rasgadas, o cabelo esticado, os lábios vermelhos, perfeita na sua destruição. Podia ter ficado dentro do carro, segura, calada, sem dar nota de nada. Em vez disso, viu-se a caminho, a dizer:

 

Carlota? Martim! Está tudo bem?

 

A festa estava ao rubro. Martim fizera a sua magia. Carlota já tinha uma saia haute couture, preta, com laivos de cinzento, compondo uma figura muito mais elegante. Ele sabia quase tudo. Carmen assistira impávida ao telefonema dele:

 

Preciso de uma saia... Não, preta, pode ser a preta e cinza prata, veja só se é número 36 ou 38.

 

Carmen ainda esteve quase a dizer que Carlota é uma falsa magra, seria sempre um 38 ou 40, mas deixou-se ficar calada, a mão da amiga na sua, um som ligeiro de um telemóvel a vibrar dentro da clutch abandonada. Martim estava decidido a entrar com aquela mulher na festa mais badalada de Lisboa. Ao telemóvel, o irmão de Carlota era um homem feliz com uma missão, competente, com bom ar. Um ministro passou perto dele e apertaram as mãos. Carlota questionou Carmen com um olhar. Carmen nada disse, nem sobre a saia, nem sobre o ministro ou sobre o irmão. Estava calada. Por dentro e por fora....

 

Tudo aconteceu relativamente depressa. Carmen não se recorda dos pormenores que hoje a ajudariam a descodificar a situação. Estava sentada numa mesa de canto, a festa estava ao rubro. O dj fazia a sua encenação e era mais importante observá-lo do que dançar.  Martim enfeitiçado por Carlota, ela impecável na sua saia que tapava o joelho ferido; ele capaz de falar, de rir das próprias piadas e ignorar a irmã.

 

Jaime, com um copo na mão, descobriu-os naquele​ canto depois de varrer a sala à procura da sua supos​ta acompanhante. Viu Carmen com espanto e depois receio e depois com imensa coragem. Era só uma ex-namorada, dizia o néon exposto em cima da sua cabeça. Jaime considerou a quem falar primeiro: a Carmen que o olhava de forma impossível de classificar; Carlota que se ria de forma quase obscena para um homem demasiado próximo do corpo dela, o corpo dela que ocupava, decerto, os sonhos de outros tantos homens?

 

A questão ficou resolvida por Paulo que, no seu fato-envelope-armadura surgiu como que por magia. Uma enchente de gente obrigava a movimentos involuntários e Paulo ficou perto de Carmen, ajeitou os óculos, reconheceria aquele rosto em qualquer lado, aquela cicatriz andante, uma deficiente emocional. Não reparou em Carlota ou em Martim, menos ainda em Jaime. O irmão ficou a vê-lo ao longe.

 

Paulo beijou Carmen numa única face, um gesto que Jaime sabia que a irritava; Carmen era o tipo de mulher que fora educada no sentido de dar dois beijos. Mesmo que para o ar. Paulo disse qualquer coisa. Jaime imaginou o diálogo impossível:

 

Carmen. Que bom ver-te.

Olá, Paulo. Como estás?

Viste o meu irmão?

Não, não vi.

 

Carmen a olhá-lo, como alguém especial, alguém com poderes reais, o olhar a queimar-lhe a pele e Jaime a abandonar a festa.

 

Carmen...

Paulo.

Estranho encontrar-te aqui.

Sim, não é um sítio onde uma pessoa como eu pudesse estar.

Não sejas irónica.

Porquê? Tens alguma coisa contra a ironia?

Não... É cansativo.

Cansativo é viver com o teu fantasma.

Ah, então eu sou responsável pelo fim da tua relação com o Jaime?

Tu és o macho alfa.

Tu não sabes o que dizes.

Pois, parece que não.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 22.10.15

Onde a intimidade é isso: íntima; fumar podia ser bom; as chegadas são previsíveis; um marialva pode dar jeito

Jaime optou por parecer que não tinha pensado em nada, umas calças de ganga, camisa branca, casaco sem história. Esteve quatro minutos à espera que o creme depilatório lhe devolvesse a candura das orelhas, agora isenta de pelos. Perguntava-se se seria normal depilar assim as orelhas, nunca falara com Carmen sobre o assunto, muito menos com o irmão. Era uma coisa dele. Podiam dizer o que quisessem. Ele não gostava de pelos a sair das orelhas.

Paulo olhou para os fatos e escolheu o riscado por ser seguro. Precisava de​ um envelope que o mantivesse confortável e o fato cumpria a função. Experimentou colocar as mãos nos bolsos. Sentiu que as tinha suadas. Odiava a ideia da festa. Ensaiou dizer o seu nome em voz alta. Tirou os óculos e limpou-os. Gostaria, nestas ocasiões, de ser fumador. Entendia o conforto extraordinário de ter algo que fazer, de ter a hipótese de se escapulir para fumar fora do recinto.

Carlota encontrou o seu pequeno carro utilitário, citadino, a alguns metros da porta do prédio. Foi maldizendo os saltos agulha, embora feliz com a escolha das calças pretas de seda. Havia nela, apesar do batom roxo, uma garantia de profissionalismo e essa era a imagem que gostaria que tivessem dela. Guiou com destreza, sem hesitações. Havia um estacionamento improvisado, ela entregou o convite e as chaves do carro. Considerou o lado sofisticado de tudo aquilo. Depois tropeçou e caiu.

A mão que a amparou, no segundo exacto em que Carlota percebeu que o desastre tinha sido captado por um qualquer fotógrafo, pertencia a uma voz que dizia

 

Como facilmente perceberá, vai apagar essa fotografia.

 

Mas...

 

Não há mas nenhum, o senhor apaga a fotografia ou temos uma chatice e é já aqui.

 

Carlota não fazia ideia de quem era o seu salvador. A perna esquerda sangrava, as calças estavam irremediavelmente perdidas, percebeu que o telemóvel tocava no interior da sua clutch. Não ligou. Podia ser Jaime. Era ele, de certeza. Não atendeu. Levantou-se amparada àquele homem grande e ouviu-o perguntar

Está bem? Como se sente? Foi uma queda e tanto. Sou o Martim

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 13.10.15

 

onde o mundo de Paulo não gira,  o silêncio e a imaginação não se controlam, a possibilidade da festa esmaga, uma mulher também pode ser uma desculpa, a mãe é motivo de discórdia, o caminho da festa é não é um vestido vermelho

 

 

Paulo mantinha um consultório com alguma facilidade. Já trabalhava há anos suficientes para saber como manter uma clientela. O que contava era o boca à orelha, portanto o profissionalismo importava, a par da empatia. Paulo, sempre tão fechado, era profundamente carismático na sua reserva e, por qualquer razão insuspeita, os doentes não sentiam nenhum constrangimento, podia dizer tudo, Paulo estava lá para eles, atento, capaz de fazer prosseguir as sucessivas narrativas de vida. Pouco falava, ou melhor, falava o estritamente necessário, mas a maioria dos seus doentes não o entendia assim. Paulo era o equivalente a um estado de conforto.

 

Não havia no consultório nada que o identificasse, nem os seus gostos, nem a sua família. Havia doentes que interpelavam a assistente:

O senhor doutor é casado?

Não, minha senhora.

Ah... que estranho.

Estranho, minha senhora?

Um desperdício. Um homem tão bonito.

Paulo ignorava estás conversas. Podia imaginá-las, porém fazia todos os possíveis para não imaginar nada.

 

Paulo não queria ir à festa. Preferia estar com Jaime numa outra ocasião, mas era impossível recusar, inventar uma desculpa. A festa era importante para Jaime. Tratava-se de reconhecer o seu lugar na empresa, a sua ascensão. Seria um evento cheio de pequenos pormenores, pessoas da moda, tutti quanti, um disparate de álcool e de fotografias, falar-se-ia de tudo e, em especial, seria um antro de maledicência. Paulo conseguia antever tudo, só não esperava receber uma sms do irmão para o informar que Carlota também estaria presente.

 

Carmen. Paulo recordou com precisão todos os traços da amiga de Carlota. Uma vez, há muitos meses, Jaime mostrara-lhe uma fotografia e ele, ingénuo, delicado, de forma impensada, dissera:

Parece-me uma mulher interessante.

Agora, Jaime levava-lhe a mulher interessante para conhecer na festa onde não queria ir. Era uma maneira, a maneira de Jaime, de pedir desculpa.

 

Tinham trocado palavras desagradáveis. Nenhum se lembrava porquê, do início de tudo. Era um jantar normal, o das quartas-feiras, Jaime parecia recuperar da separação de Carmen. Paulo estava ocupado com um seminário que daria em formação para o luto em famílias com doentes oncológicos. Não tinham falado muito e, de repente, estavam a trocar aquelas palavras.

 

A mãe não é um problema.

 

Estás a brincar, Paulo?

 

A mãe sempre foi assim.

 

Tu não estás a perceber, a mãe não se lembra da maioria das coisas.

 

Isso é cansaço.

 

Paulo, não é cansaço.

 

Caramba, pára com isso. A mãe está óptima e não entendo a tua preocupação, nunca a vais ver, não queres saber, eu trato de tudo.

 

Jaime levantou-se sem ruído e, ofendido, saiu do restaurante. Nunca se tinham chateado antes. Os irmãos.

 

 Carlota experimentava um vestido vermelho com uma racha do lado direito. Era um vestido de marca, porventura demasiado comprido. Era bonito. Custara uma pequena fortuna e ela nunca encontrara a ocasião certa para o vestir. Ao espelho, descalça, o vestido a colar-se à pele, apanhou o cabelo num gesto que era apenas uma experiência. O vermelho ofendeu-a. Despiu-se.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 29.09.15

Onde Paulo é salvador, a perdição é pensamento, a amizade se estilhaça, não existem pensamentos felizes, a festa podia ser outra

 

Jaime tinha garantido a Carmen que devia tudo a Paulo.

O meu irmão salvou-me. Não preciso dizer mais do que isto. Se não fosse o Paulo nunca teria feito nada da vida.

E depois contou, em resumo, por lhe ser tão difícil falar da mãe, da infância, da adolescência, que acabaram por ficar sozinhos de novo. Laura encontrou uns amigos de juventude. Iam a França, visitar uns familiares, ela podia ir, porque é que não ia? E ela, contente com o verão, feliz sem esfregona e outros utensílios, garantiu que eram duas semanas e foi.

Voltou três anos e meio depois com o François, com quem se manteve durante algum tempo. Paulo e Jaime tinham andado para a frente.

 

A nossa vida é sempre distinta do que pretendemos que seja, fica aquém dos sonhos e ilusões possíveis. Sobre isto não havia a menor dúvida, assim o pensava Carlota, ela que não sabia se deveria dizer a Carmen que estivera com Jaime, ela que não sabia como seria a tal festa onde conheceria Paulo, o salvador. Sentia-se perdida. Uma bola fora do sítio.

 

Não era nada, era apenas o mundo que a atingia em todo o seu esplendor. Carmen ouvira uma Carlota titubeante do outro lado do telemóvel. Não podia dizer do outro lado da linha, pois não? Os pensamentos atropelavam-se em disparates. Conseguia ver Carlota a sucumbir nos braços de Jaime. Conseguia ver a boca de Jaime na dela. Pensou:

Não. Calma. Não é nada disso. É tua amiga. Foi só um almoço.

Um almoço. Uma refeição como aquela que partilhavam todos os meses? Não, Carlota não tinha nenhuma ligação a Jaime, ir almoçar com ele era uma agressão. Uma agressão como um tabefe bem dado. Ou pior.

 

Carlota dividiu-se. Havia uma dentro dela que ansiava pela aventura do proibido, do moralmente discutível; era aquela que sempre pensara em Jaime como sendo seu, fantasiando com o namorado da amiga, sem o dizer, lamentando que fosse fiel a um ser tão “certinho”. A outra nela, dentro dela, mais ou menos poderosa consoante o minuto de determinada hora, insultava-se com o absurdo de considerar Jaime um potencial candidato amoroso quando ela, Carlota, tinha algumas amizades coloridas que cumpriam os desejos curtos que a assaltavam.

Sou uma contradição. Penso mal da minha amiga, gosto dela e penso mal dela.

Carmen não suspeitava. Que a sua amiga partilhasse uma refeição com o seu ex, não era natural? Não, não era.

 

Dificilmente, Carmen podia compreender. Carlota não tinha como explicar e Jaime estava fechado no seu mundo impossível de interpretar pelas redes sociais. Paulo estaria na festa naquela noite. A existência da festa, uma festa à qual Jaime queria ir, levando a sua melhor amiga, era algo que Carmen tomava como uma ofensa. Fez alguns telefonemas, espreitou o facebook e percebeu. Percebeu o onde e o porquê da festa.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 22.09.15

onde a mãe entra num documentário,  recupera a liberdade, lavar escadas é trabalho de soldado, a esgrima verbal é uma opção

 

Não sendo certo, os dois fizeram um caminho e Laura foi-se desligando deles, não por opção, mas por causa do “tipo”, o terceiro marido que a impedia de telefonar, que lhe controlava a conta bancária, todos os seus movimentos. Os filhos não entendiam como é que alguém tão livre quanto Laura podia viver assim, não entendiam que não morresse como certos animais. Jaime viu um documentário sobre baleias suicidas na televisão do café perto da universidade. Nessa noite, sonhou que a mãe podia ter o mesmo destino, matar-se na praia por falta de liberdade.

 

Laura não teve esse sobressalto, mesmo que vestida de tristeza, deixou-se estar por muito tempo. No ano em que Jaime começou o estágio e regressaram a Lisboa, Laura quis recebê-los, dar-lhes uma morada.

Os meus filhos.

O “tipo” não discutiu a possibilidade de fingirem ser uma família, de brincarem com essa ideia. Houve gritos e gestos violentos. Laura saiu nessa noite de casa e ficaram os três na rua a ver o sol a pôr-se. Paulo tinha alugado um quarto.

Onde dormiam dois, dormem três.

Foi o que ele disse.

 

Como é que um miúdo tem mais dinheiro do que a mãe? Podia ser essa a questão, tantas vezes repetida por quem os conhecia, quem os observava e fazia comparações. Uma comparação é já uma crítica, pensava Jaime. Escolhia ficar calado, deixar o irmão decidir. A mãe vogava. Como um barco de papel. Começou a trabalhar a dias. Pendurava o cabelo no rabo de cavalo e dizia

Sou um bom soldado. É preciso lavar escadas, lava-se escadas.

 

 

O destino não era tão miserável, não podia ser. Paulo começou o estágio e teve sorte. Gostavam dele. Jaime estava no liceu. Laura tinha duas casas fixas onde limpava, passava a ferro, cozinhava. Os filhos sabiam, intuíam o disparate imenso que se adivinhava. Laura não era feita para tantas amarras, ou seria o tempo e o terceiro marido? O tal que a tinha colocado debaixo de água, sem respirar e ela, tanto tempo, demasiado tempo, aguentara sem dizer nada? Eles não sabiam. Laura estava contente. Tudo era um jogo.

 

 

Um dia, domingo de manhã, depois de um pequeno-almoço sem novidade ou sabor especial, Paulo decidiu fazer contas. Estava na altura de mudarem de sítio. Outra vez. Jaime quis dizer que gostava de estar por ali, perto do liceu, mas reteve as palavras na cabeça. Não queria fazer barulho, já era suficientemente mau ter de ver o bailado de esgrima verbal entre a mãe e o irmão.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 15.09.15

onde o amor é nómada

Jaime e Paulo. A mãe espalhava as fotografias dos filhos pelas divisões todas. Nasciam nas casas onde moravam. Mudavam-se muitas vezes a pretexto de uma renda mais barata, do desejo de ter um espaço maior, uma varanda, uma determinada vista para o rio, do pouco dinheiro que existia na carteira de Laura. Os miúdos não se queixavam, eram nómadas mas tinham amor; eram diferentes, mas tinham amor; eram desregulados nos horários, mas tinham amor. Tudo se complicou quando Paulo foi para a escola primária. Laura, a mãe, era incapaz de o entregar a horas. Jaime chorava o dia inteiro.


onde a mãe é diferente das outras

A mãe dizia

 

Não chores, não chores.

 

Jaime sentia a falta do irmão. Deixou de falar. Paulo diria, muito mais tarde, que era um cenário “clássico” de abandono. Laura podia ser diferente de todas as outras mães, podia ser “saliente” – assim a designara a directora da escola -, porém era solidária. Durante meses, para que Jaime não chorasse tanto, Laura ficava à porta da escola com ele. Sentavam-se debaixo da árvore gigante que, reflexiva, deixava a sombra a protegê-los até às quatro da tarde. Paulo saía a correr, a bata cor de laranja cheia de nódoas. Jaime levantava-se e o abraço era imenso, não tinha fim. Era mais do que irmãos, eram protectores de Laura. Do céu que tinham em cima da cabeça.  

 
onde a cumplicidade dos irmãos assusta

Carlota não sabia nada da história aflita dos irmãos pequenos. Carmen suspeitara. Durante o tempo em que namorara com Jaime, via-o a falar com o irmão ao telemóvel. Várias vezes por dia. Eles tinham silêncios que eram momentos de cumplicidade que ela, a namorada, não entendia. Depois havia as brincadeiras que eram só deles e um jantar, matemático, infalível, às quartas-feiras, que não permitia qualquer intruso. Carmen contara a Carlota

 

Jantam. Até podem ver um jogo de futebol no restaurante e não dizer nada, mas jantam. Toda as quartas-feiras. É muito irritante.

Eu acho querido.

Pois.


onde a mãe se tenta organizar

Quando Jaime chegou aos dezasseis anos, Laura acabara de fazer trinta e três anos. Mantinha o mesmo emprego há meses. Uma novidade. Gostava de trabalhar no café, era uma estrutura de madeira com vista para o Tejo, uma pequena zona com livros e almoços tardios aos domingos. Laura sorria e bailava entre os pedidos, de mesa em mesa, como se fosse o seu destino dizer coisas como

 

O sumo do dia é maçã​e laranja.

 

A festa de Jaime foi no café onde a mãe trabalhava. O actual​ marido era dono do estabelecimento e estendeu-lhe a mão.

 

Parabéns, miúdo.

 

onde a coisa não se dá

Paulo detestava este terceiro marido. Nunca diziam o seu nome. Era “o tipo”. Com uma bolsa de estudo, na Faculdade, o irmão de Jaime optou por sair de casa e fez um ultimato à mãe

 

Vou levar o Jaime. Tu não tens condições.

Não vais nada.

Vou, mãe, é melhor.

Paulo...

Assim a coisa não dá, percebes? É melhor para ele.

 

Saíram os dois, um no liceu, outro na faculdade. Os jantares eram feitos com latas de atum e salsichas. Jaime dava explicações. O dinheiro era inexistente. Viviam num quarto de estudante. Na Faculdade, Paulo era considerado um aluno brilhante ​em Coimbra. Ninguém sabia que com ele vivia o irmão que gostava de ver as estrelas deitado no alcatrão.   

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 09.09.15

onde Laura começa a trazer destroços

Paulo e Jaime tinham crescido numa família pouco convencional. A mãe casara três vezes, eles eram fruto do seu amor de adolescência, aquele com quem casou aos dezassete anos para se separar três anos depois. Paulo tinha dois anos, Jaime tinha dez meses. O pai decidiu-se pelo Brasil e, até aos 12 anos do filho mais velho, manteve-se fora do radar dos afectos e das necessidades. A mãe, Laura, ria-se com facilidade, deixava os miúdos em casa dos amigos, dos tios, e trabalhava no que havia. Depois do amor que se esgotou nos dias mais jovens, Laura teve mais dois maridos, Jaime tentava não pensar nisso. Paulo tinha assumido o papel de pai. Laura brincava

O meu mini marido

 

 

onde assim não dá

Jaime não entendia a mãe, amava-a e isso era o bastante. Paulo entendia a mãe com facilidade estranha, até nos silêncios a conseguia ouvir pensar. Paulo amava a mãe e conseguia manter um nível de ódio latente, sempre pronto para a criticar.

 

Mãe, não vês que assim não dá?

Assim não dá era a expressão-chave da relação entre os dois.

 

 

onde o lençol esconde o medo

Jaime observava. Mantinha a sua distância, sempre resguardado pelo irmão, afastado dos melindres do dia a dia. A primeira vez que Paulo ficou sozinho com Jaime tinha cinco anos. A mãe tinha um trabalho, relações públicas num festival de música e de moda. Jaime não se recordava exactamente. A memória devolvia-lhe apenas a ideia de um lençol em cima da cabeça, o corpo quente do irmão ao lado, ele que repetia

Ninguém vem cá a casa, ninguém vem cá a casa

 

onde um clássico é um clássico

A mãe. Paulo convencera-se de ​que Laura era o motivo para o desarranjo emocional de Jaime.

Estás sempre à procura da mãe.

Lá estás tu...

Diz-me que não é verdade. Nenhuma mulher te serve. É um clássico.

Maldita a hora em que foste estudar psicologia, Paulo, não há pachorra.

Desculpa, mas tenho razão. Queres fazer uma lista das tuas namoradas e ver como são todas do mesmo modelo da mãe?

Do mesmo modelo?

Do mesmo género.

Paulo, ficamos por aqui.

Assim, a coisa não se dá, Jaime.

 

onde o sabor não é doce

OK, a coisa não se dá, Jaime acatava e, recolhido, dentro de si, revia as namoradas. Todas parecidas com a mãe. Sem a gargalhada e aquele ar de eterna menina, a brincar com a colher de pau pela casa

Anda cá, anda cá que eu vou mostrar-te como é que se faz um bolo.

Os bolos da mãe sabiam sempre a farinha.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 02.09.15

Onde Jaime ocupa espaço na cidade

Jaime não pensa em Carmen. Não pensa sobre a Carmen. Ela é um não assunto. Conduz pela cidade sem perceber que os cabelos dela ainda sobrevivem nos estofos do automóvel. Enumera tarefas mentalmente sem entender que, nesse instante em que considera a sua agenda, o seu horário, as coisas da vida, Carmen medita nos contornos do rosto dos dois. Era uma fotografia que tinham tirado por mero acaso, parecia que se confundiam, duas sombras estranhas. Ela mantinha a imagem; ele eliminara tudo o que se relacionava com aquela mulher com quem gostaria de ter gritado e, afinal, fora bonzinho. Jaime estava convicto da sua gentileza, do seu estatuto de cavalheiro.

 

 

Onde o vermelho é sangue, só sangue

Agora que já se conseguia ver ao espelho, percebia que a vida podia ser outra coisa. Na cidade, sem se deter nos dramas do trânsito, rotunda, ultrapassagem perigosa, semáforo inesperado, peão fora da passadeira, Jaime percebeu que estava atrasado. Impaciente guinou o volante para a esquerda, subiu a avenida, considerou os dois parques de estacionamento, mas conseguiu um lugar para o automóvel acabado de comprar. Vermelho sangue. Carlota iria gostar.

 

Onde a mudança é uma ilusão

No pequeno restaurante bem afamado, Jaime manteve os óculos escuros. Carlota estava atrasada. Pediu uma cerveja. Depois considerou, voltou atrás, viu a carta de vinhos, escolheu um alentejano. Carlota gostava de bom vinho. Na penumbra segura das lentes graduadas, o restaurante era um enorme desconhecido, pessoas a comer e a falar, pessoas que não sabiam nada de nada sobre a forma como o mundo gira dentro da cabeça de Jaime. O irmão tinha-o avisado

És o que és, não vais mudar.

Preciso de mudar, Paulo.

Não funciona assim, Jaime, desculpa. Para mudares tens de querer mudar e tu não acreditas nisso. Não verdadeiramente.

Não sabes nada sobre mim.

Sei tudo, mano, sei tudo.

 

 

Onde as palavras são assinatura

Jaime ouviu a mulher falar sem entender uma palavra. Era bom estar assim, focado nos lábios dela, a dança dos lábios, da língua, da boca que engolia um risotto qualquer, o vinho tinto a ser pintor, roxo, roxo nos lábios que não se calavam. Jaime nunca gostara de Carlota. Nunca gostara muito, nem pouco. Não pensara nisso. Estava fascinado com a boca dela e percebia na sua entoação algo de familiar, um registo, uma forma de falar com certas palavras. Percebeu que as palavras

Evidentemente

Sabes?

Pois...

eram palavras que Carmen usava. O mimetismo das amigas perturbou-o. Manteve-se calado. Quando tirou os óculos, por fim, Carlota sobressaltou-se

Jaime! O que aconteceu?

 

 Onde uma história de violência toma conta do resto

Jaime exibia um olho emoldurado em sangue pisado. Carlota insistiu, ele suspirou e explicou que fora assaltado depois do ginásio, há dois dias. Ela, muito célere, advogada na sua essência, quis saber pormenores. Jaime fez o relato com o maior número de pormenores, ciente de que a história do assalto iria ocupar o resto do almoço e, consequentemente, não teriam a conversa esperada, o inevitável tira-teimas que as mulheres têm por hábito querer possuir: o conhecimento, o porquê das coisas. Jaime não queria falar de Carmen e continuava a sentir que os lábios de Carlota podiam ser outra coisa.   

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 18.08.15

 

onde a hipótese de reabilitação é considerada

Uns meses depois, convenceu-se de ​que estava a perder a memória, não tinha tanta certeza das palavras atiradas no vazio da casa, na cama, no carro. Era como se ele se estivesse a desfazer e, apesar disso, sempre na sua pele. Jaime, a sua cicatriz.

Acedeu ao jantar com Carlota, ao ritual, mentalizando-se de que teria de explicar o mínimo, talvez fosse possível arranjar um pouco a cara, qualquer coisa passível de desfazer aquele terramoto em que tinha sucumbido. Carlota merecia algumas respostas. Carmen prontificou-se a verbalizar a separação. Era um passo concreto na direcção de qualquer coisa. Reconstrução. Reabilitação.

 

 

onde a lucidez se divide com o vazio

Reencontro. Carlota seria a sua salvação. Animou-se. Não tendo ninguém a quem provar que a vida é um acto de lucidez apesar de um coração desfeito, Carmen considerou o vazio instalado. O seu deserto humano. Com excepção dos alunos, que lhe permitiam a sensação inebriante de ter um palco, de brilhar através do conhecimento, não havia mais ninguém. Vítima de solidão ou vítima de pensamentos pouco realistas? Talvez ambas as teorias fossem válidas.

 

onde se explica o princípio da dor

Carmen saíra de Coimbra para estudar em Lisboa. Era uma jovem com boas notas de uma família com algumas posses. Tratava os pais na terceira pessoa do singular. Frequentara um colégio religioso. Mantivera um silêncio composto e muito cómodo, deixando ao irmão mais velho, Martim, o papel de rebelde e de coleccionador de castigos vários. Não se destacou em nada. Carmen frequentou aulas de ballet, mas nunca teve qualquer graciosidade. Experimentou, durante um trimestre, o piano, incapaz de entender uma palavra do que o professor dizia

Um tom? meio tom? A menina está a ouvir?

Martim ria-se sozinho. Chegava tarde. Não dava justificações. Quando chegou à adolescência, o irmão um ano mais velho do que ela, foi o responsável pela seguinte frase

A adolescência é a época mais infeliz de uma mãe.

 

onde o esforço não compensa

Carmen fez um esforço maior. Podia ser que a infelicidade da mãe conseguisse fazer com que visse que tinha uma filha, ela, Carmen, a menina que não se distinguia em nada, apenas nas notas medianas e altas a Português e História. Afinal, o irmão... Carmen herdara o nome da avó paterna e essa figura pequena, sempre vestida de negro, com rendas e cabelo num carrapito, uma personagem dos livros, era a salvação dos seus dias. Ia buscá-la ao colégio, faziam juntas os trabalhos de casa, lanchavam e Carmen regressava a casa dos pais apenas para o jantar, sendo certo que, durante a semana, jantava na cozinha com a Isabelinha, a empregada interna, e o Martim a fazer asneiras com a comida e a irritar a Isabelinha que quase chorava de desespero.

onde se explica o começo da amizade

Patrícia Reis, 03.08.15

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Aquela relação começara na faculdade, Carmen com vontade de ser professora; Carlota decidira guerrear – e vingar - no Direito Fiscal. Além de ser, já na época, militante de um partido de esquerda com raízes históricas e outras características, boas ou más, pouco importava, Carlota era o oposto de Carmen: viva, corajosa, saliente, capaz de falar sobre qualquer assunto, driblando a ignorância com uma qualquer graça. Raramente, falavam de política.

onde se pensa na importância da amizade

Patrícia Reis, 03.08.15

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As relações precisam disso, dizia Carlota. Trabalhar, manter o contacto, saber estar com as pessoas. Para que a amizade não seja apenas virtual, incapaz de grandes feitos. Há mais de dez anos que jantavam todos os meses. Com ou sem Jaime na vida de Carmen sempre jantaram. O menu era indiscutível: bife grelhado, batatas fritas, um copo de vinho tinto, vários cigarros, um café para Carmen, um descafeínado para Carlota. Não demoravam mais de uma hora e quarenta, duas horas no máximo.

onde a imaginação continua a dar mais trabalho que a vida

Patrícia Reis, 02.08.15

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Embora não fosse capaz de concordar com todas as opiniões de Jaime, era capaz de fazer like e gostara do nome, Portugal em Construção. Jaime sempre optara por um idealismo quase quixotesco que tinha o dom de a comover. Carmen conduziu lentamente o cursor até às mensagens privadas.

"Jantamos?"

Carmen esboçou um sorriso triste. Um desapontamento, outro desgostamento. A mensagem chegara acompanha de uma fotografia da sua amiga Carlota, uma mulher que sendo a única advogada num escritório de homens, tinha a paciência para escapar às obrigações e manter a amizade.

onde a mensagem pode ser mais um estalo

Patrícia Reis, 02.08.15

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Avançar significa sempre que se está preparado para deixar o sítio onde se está. Não és uma pedra, portanto mexe-te, pensava Carmen. Sentada em frente ao computador, a ver o mural de facebook de outras pessoas, de novo o dele, depois o dela, sem grande historial, excepto a colecção - cada dia mais extensa - de poemas de todas as proveniências. Mais uma volta no feed de notícias. O computador emite um estalido e percebe que recebeu uma mensagem no privado. Antes de abrir consegue imaginá-lo a escrever para ela. Ele, ponderado, com alguns remorsos, sem saber como alinhavar o português. Escreveria:

"Carmen, podemos falar? Com calma, sem cenas? Preciso de te dizer uma coisa."

Ou então escreveria:

"Estás bem?"

Ou outra coisa mais prosaica:

"Convido-te a fazer like na página Portugal em Construção."

Ela faria like.

onde a relação sobrevive no facebook

Patrícia Reis, 02.08.15

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Por isso, escolhe os poemas e coloca-os. Não tem muitos amigos. Ele nunca faz um like. Não sabe sequer se irá ver o mural dela, a página onde já não se diz que vive numa relação. Apagou todas as fotografias que o traziam, o corpo dele, os seus gestos fixos no momento, a sua cara. O cheiro. Eliminá-lo não foi fácil e, no fim, uma forma de branqueamento que lhe servia bem na dor. Apesar disso, foi incapaz de o bloquear e ele também a manteve no leque dos amigos. Ao fim de dois meses, um post anunciava que havia uma festa. Depois um jantar. Uma frase de um treinador de futebol. Um cartoon.

Onde a poesia podia salvar

Patrícia Reis, 23.07.15

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Desde a adolescência que conhece esse poder da música, de algumas canções serem nossas sem sabermos como nasceram, de quem nasceram. Os códigos escondidos do amor também se fazem valer de suportes a que não podemos chamar nossos. Ela começou a publicar poemas. Todos os dias, pelo meio-dia, vai ao facebook e publica os poetas de que gosta, os que aprendeu a ler. Homens e mulheres que, num desvario qualquer, conseguem colocar nas palavras as emoções que Carmen acredita serem só dela. O sofrimento é só seu.

Onde as canções são recados dos outros

Patrícia Reis, 22.07.15

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O barulho da porta foi apenas o ponto final, mas teimava em repetir-se, sempre o mesmo, um som que era a sua derrota.

Estiveram meses sem se cruzarem. Ela não o contactou. Ele não quis saber. Nenhuma mensagem escrita no telemóvel a anunciar má consciência. Durante dois meses, ele não escreveu nada no facebook. Manteve no mural um vídeo sem história de uma banda desaparecida. America. Não tem a certeza, a versão era qualquer coisa como I’ve been in desert with a horse with no name. Carmen ouviu várias vezes a canção para perceber. Às vezes, certas canções são mensagens. Ela sempre o soube.

onde o silêncio se fez de gritos

Patrícia Reis, 21.07.15

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Carmen não gritou, nem chorou. Lembra-se de ter inclinado a cabeça para a esquerda, como alguém que quer ouvir o coração e ouviu-o, com clareza, um cristal que se encolheu. Por fim, fez um gesto com a mão, um movimento apenas, o suor escorria pelo cabelo já, passou a mão na testa e, por fim, fechou os olhos. Deixou-se ficar ali até que sentiu que ele tinha recuado até à porta, os passos dele, o corpo a mexer, a mão que pegava no saco, a porta a fechar. Ela deixou-se ir até ao fim do mundo no chão da cozinha e então gritou.