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Delito de Opinião

A improbabilidade de uma escola feliz

Leonor Barros, 02.02.12

No meu tempo de escola, a vida era muito tranquila. Os professores faltavam e alguns faltavam muito, outros bastante e outros nunca. Como agora. Esperávamos todas as santas aulas pelo abençoado segundo toque que nos aliviaria de aulas de modorra e tédio, sem visualização, powerpoint, projectores ou quadro interactivos. O professor falava, os alunos ouviam. Esqueçam motivação e interesse. Ir à escola era aprender e ninguém disse que aprender era divertido e engraçado ou fácil. Naquele tempo não era. Quando os professores faltavam era-nos dada toda a liberdade. Lembro-me de ficar no pátio a apanhar sol, na conversa com os colegas, maldizendo a adolescência, os chatos dos professores, provavelmente a incompreensão dos pais, a soltar gargalhadas sonoras e estridentes salpicadas com a inconsequência da condição púbere ou ainda a catrapiscar os rapazes, meu deus quantas paixões secretas e contidas, ou ir ali ao café do lado fazer isso mesmo, ir ao café do lado: esticar as pernas, dizer disparates, respirar o ar húmido que se nos agarrava ao corpo e soltar os cabelos à sombra do convento. Tudo sem culpas ou recriminações. Livres, portanto.

Nesse meu tempo de escola, faltar à escola era apenas isso: faltar à escola e eu no meu tempo de escola também faltei às aulas sem que mal algum viesse ao mundo. Acontece que nessa altura quem ultrapassasse o limite de faltas chumbava. Ponto. Sem avisos nem colinhos. Sem cartas para cá e para lá, sem comunicações aos encarregados de educação porque o menino prevaricou, avisos de recepção, convocatórias, telefonemas. O povo estava avisado e sabia das consequências. Se faltasse de mais, estaria modernamente excluído por faltas e podia seguir uma vida livre de aulas e professores. Acarretávamos pois com a consequência dos nossos actos sem mais conversa. Não me parece que alguém se tenha dado mal.
Nesse meu tempo de escola os pais também não vinham à escola porque o professor deu cabo dos meninos, não está a cumprir o programa como eles, pais, entendem ou não cumpriu os critérios de avaliação. Pergunto-me como terei sido classificada então, nesse tempo de caos absoluto, tudo tão livre e solto. Que era isso de ‘critérios de classificação’ a propósito? Não me consta que tenham ficado mazelas.
Nesse meu tempo eu era incrivelmente feliz sem o saber. E livre. Livre para gozar os tempos que os professores nos deixavam livres, livre para faltar a uma aula porque algumas aulas me maçavam de morte, quem aguentou aquilo, aguenta tudo, livre sem pressão das notas e de desempenhos. Na medida inversa dos meus alunos. Não havia substituições, não havia planos individuais de trabalho, planos de recuperação, não havia as torrentes de palavreado bacoco, balofo e inútil, tão inútil como os seus significantes. E éramos felizes então.  Saltitando entre contrariedades, com os tostões contados e pontos altos tão ridículos como uma simples excursão a Sintra. Sobrevivemos aos  ABBA, aos Bee Gees e ao Stevie Wonder dando os parabéns a toda a gente e acalentado a esperança de um dia sermos proprietários de umas calças Levi's.  E sobrevivemos. A tudo. A inveja que me tenho.
Também aqui.

Querer e poder

Leonor Barros, 14.01.12

Vida de professor é feita de papéis, papelinhos, destacáveis, comprovativos e tudo o que tenha a ver com papeladas, burocracia sem fim. Nos intervalos de tudo isto sou professora e faço aquilo devia fazer e que o tempo em volta dos papéis me rouba. Entro na sala com um lembrete na cabeça, uma campainha que toca para que não me esqueça, não me posso esquecer, e mesmo antes da aula começar digo-lhes, Meninos, preciso dos destacáveis para a reunião com os Encarregados de Educação. Ergue-se uma pletora de respostas. Ai stora, esqueci-me! Trago-lhe amanhã ou Não trouxe o papel mas a minha mãe vem, O meu pai pode vir mesmo sem o papel? A minha mãe não sabe se pode vir. Alguns levantam-se entretanto e entregam-me o rectângulo branco. Recolho a papelada, organizo-me na secretária, ligo o computador e de lá do fundo ergue-se uma voz  Stora, eu já disse à minha mãe e ao meu irmão. E depois a voz descaída como um ramo despencado Mas nenhum quer vir. Arrumou-se ao fundo da sala e manteve-se estranhamente silenciosa. Não que o dia ou a hora fossem inconvenientes. Um qualquer outro dia e hora seriam igualmente maçadores. Substituíra-se querer por poder e talvez o mundo fosse outro. A diferença que um verbo faz.

Os primeiros dias de escola

Rui Rocha, 08.09.11

 

O país digeria ainda a revolução. O meu melhor amigo era o Preto. Um rafeiro negro, dócil e companheiro, com uma mancha branca no peito. É claro que teve os seus desentendimentos com as galinhas do Alexandre. Algures nuns territórios inóspitos que começavam exactamente no limite do quintal da casa dos meus avós. É certo, também, que algumas não sobreviveram. Mas, não me parecia, à época, que tal comportamento justificasse mais do que um olhar de censura. Que diabo. Eu já tinha visto uma galinha a passear-se sem cabeça depois de a minha avó lhe ter cortado o pescoço. E não me tinha zangado com ela por causa disso. Ao olhar de censura, o Preto respondia estendendo-me a pata. E eu abraçava-o sem mais recriminações. As manhãs de Outubro pareciam-me, então, bem mais frias do que as de todos os Outubros que vivi. Os acontecimentos, claro, devem ter levado o seu tempo. E hão-de ter-se sucedido todas as peripécias e rotinas próprias da saída de casa. Mas, antes de chegar à escola, só recordo daquela manhã um frio intenso enquanto, pela mão da minha mãe, cruzava a feira de Espinho. Os meninos foram entrando na sala, à medida que chegavam. Sentei-me no lugar que o Professor me indicou, respirei fundo e esperei com os olhos pregados na lousa. O meu companheiro de carteira começou a gemer e a bater com as pernas. O Professor Bigail aproximou-se dele e, por momentos, pensei ver nos seus olhos uma profunda compaixão. Depois da bofetada, a cabeça do Quim ficou a abanar como um pêndulo, ao mesmo tempo que os gemidos iam definhando e as pernas ficavam abandonadas em repouso. A lousa negra e a sala que a debruava tomaram-se de cores acastanhadas e sei, desde esse dia, que o castanho é a cor dos meus medos. O movimento pendular das cabeças esbofeteadas repetiu-se ao longo do dia, sempre que alguém tentou a fuga ou, por ignorância ou profundo terror, não respondeu às primeiras perguntas sobre o aeiou. O Bigail não recorria a varas ou palmatórias. A justiça grossa e inapelável que infligia tomava-a nas suas mãos, sem intermediários. Naquele primeiro dia, corremos no recreio, como todos os meninos. Mas, não era à apanhada que jogávamos. Ainda ali, era do Bigail que fugíamos. Nessa fuga desordenada, lembro-me de, a certa altura, ter cruzado os olhos com a feira. Vi o Alexandre que vendia galinhas. Ali estavam todas as que tinham sobrevivido ao ataque do Preto do dia anterior. O sacana tinha estado junto de mim, com focinho de quem não fazia mal a uma mosca, enquanto eu me pendurava na grande roda que puxava a água do poço. Depois ausentara-se para só regressar segundos antes de se ouvirem os primeiros gritos de indignação do Alexandre. Uma semana depois, fomos viver para Braga e eu mudei-me para a escola de S. Lázaro. A Professora Maria José recebeu-nos no recreio de terra batida onde estava a cantar numa roda de meninos sorridentes. Ouvi-a dizer à minha mãe que havia lugar na turma dela ou na do Professor Marinho. Puxei o braço da minha mãe e disse-lhe muito baixinho, enquanto as lágrimas das saudades do Preto se juntavam às da angústia provocada pela possibilidade de um novo Bigail: mamã, desta vez quero uma Professora.

Sinais

Ana Sofia Couto, 02.10.10

É, como diriam alguns comentadores, um sinal dos tempos. Na escola onde estou a dar aulas apareceram alunos que só agora, no 8.º ou no 9.º ano de escolaridade, conhecem o ensino público. Contaram-me que alguns pais mostraram grande preocupação quando souberam que numa turma haveria seis alunos a repetir o ano; o mesmo aconteceu quando, numa visita à escola, ninguém deu pelo “choque tecnológico” (não havia “quadro interactivo” e essas coisas). Os miúdos, pelo que tenho visto, estão a dar-se bem. No outro dia, um deles explicava a outro, mais velho, que a t-shirt que tinha era do Family Guy. E lá estava, em grande plano, o Stewie.

Planeamento

Ana Margarida Craveiro, 01.06.10

 

Confesso que me sobe o sangue a cabeça quando oiço falar em fechos de cuidados médicos e de escolas no interior. Percebo inteiramente os argumentos económicos, de racionalização de recursos num tempo em que estes estão particularmente escassos, mas discordo da maioria das medidas. Há pouco, a SIC noticiava que agora serão as escolas com menos de 20 alunos a fechar. Na complicada linguagem do Ministério da Educação, trata-se de mais um passo para a requalificação, modernização e reorganização (tenho a certeza de que ainda arranjavam mais um re-quaisquer).

Do ponto de vista pedagógico, é evidente que a diversidade e pluralidade são factores a valorizar. Do ponto de vista económico, ter menos escolas a funcionar, mas mais eficientes (menos funcionários/professores por aluno), também parece desejável. Falta, no entanto, um ponto de vista fundamental: o do país que queremos ter. E este, ao contrário do que nos querem impingir, é uma escolha. Assim, nós podemos escolher fechar todas essas escolas, a bem de um ensino mais barato. No entanto, temos de assumir as consequências dessa escolha: o êxodo rural passa a ser inevitável, para grande parte do interior, e a taxa de fertilidade pura e simplesmente desaparece em algumas zonas. Porquê? Simples: por que raio haveria um pai ou mãe de querer ter filhos num sítio onde a escola mais próxima fica a hora e meia de transportes públicos, por estradas velhas e com gelo? É que estamos a falar de fechar escolas em zonas onde as moderníssimas auto-estradas não chegam, nem sequer aparece o alcatrão necessário para remendar estradas com mais de 60 anos, zonas onde o progressista TGV e o novo aeroporto não entram nas conversas. Esse país, esse Portugal ainda tão parecido com 1950, ainda existe. E o governo - qualquer governo - tem a obrigação de governar também para esses portugueses. Fechar-lhes as poucas manifestações de administração central que têm não é a melhor maneira de manter o país habitado - agora já tão escassamente. Empurrar ainda mais esta gente para os subúrbios de Lisboa é a nossa escolha? Então que seja admitida; como já escrevi uma vez, construímos uma cerca à volta do interior e das zonas rurais e preocupamo-nos só com as Belavistas. É uma escolha.

A lei e a ética

João Carvalho, 14.02.10

Em Almonda, para os lados de Torres Novas, há três escolas: duas com vários anos e sinais de degradação e uma construída em 2002 que custou cerca de um milhão de euros. As duas primeiras para lá estão e hão-de estar, mas a escola mais recente vai ser demolida para dar lugar a outra mais nova ainda.

Porquê? Porque as obras de adaptação, segundo o Ministério da Educação, «tornariam a requalificação do imóvel uma opção desvantajosa, sendo preferível a construção de uma nova escola». E que obras de adaptação seriam essas que tornam preferível a demolição de uma escola com oito anos? O ministério diz que ela não obedece (e precisa de obedecer?!) às imposições legais destinadas aos edifícios públicos desde há quatro anos.

Por outras palavras: vai ser demolida uma escola construída em 2002 para obedecer às normas legais que vigoram desde 2006. Digam-me cá: é esta história que está muito, mas mesmo muito mal contada, ou é um sinal de que também têm de ser deitados abaixo os políticos em exercício que não obedecem às normas éticas exigíveis desde sempre?

 

AdendaUma notícia sobre um facto, mas  que veicula uma informação institucional dúbia e não questiona a fonte para cabal esclarecimento da dúvida óbvia que levanta, é o exemplo da notícia que não devia ser publicada por não estar acabada e, como tal, exemplo de mau jornalismo.

Orgia suspensa

J.M. Coutinho Ribeiro, 18.05.09

PS, BE e PCP apresentaram projectos para a introdução da educação sexual nas escolas. Tanto quanto sei, o caso é levado tão a sério que se prevê mesmo a distribuição de preservativos à gandulagem. Hoje, não me apetece discorrer sobre o que penso de tudo isto. Ao que venho? Manifestar a minha perplexidade pelo facto de uma professora de Espinho ter sido suspensa pela DREN por ter dissertado sobre uma orgia sexual numa aula. Suspensa? Mas, então, falar sobre orgias sexuais não tem a ver com educação sexual?